Javier Calvo, A partir de Keiser, 1985 |
sábado, 31 de outubro de 2020
Descrições fenomenológicas 59. O rei do mundo
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
A Garrafa Vazia 24
quinta-feira, 29 de outubro de 2020
Nocturnos 34
Nat Finkelstein, Bob Dylan, 1965 |
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
José Régio, As Raízes do Futuro
O segundo romance do ciclo A Velha Casa, As Raízes do
Futuro (1947), medeia entre o retorno de Lelito (Manuel Trigueiros, o
segundo de quatro filhos do casal Maria Teresa e Martinho Trigueiros) e a morte
de madrinha Libânia, a matriarca da família e a proprietária efectiva da casa.
Se Uma Gota de Sangue não dava qualquer pista que permitisse compreender
a época em que decorria a acção romanesca, o segundo informa que se estava em
1920. Esta indicação não é despicienda para a compreensão da trama narrativa.
Está-se no início dos chamados loucos anos 20. Não é que numa aldeia
rural, Azurara, do concelho de Vila do Conde haja referência existencial
ao modo de vida que a expressão consagra, mas de uma maneira ou de outra o Zeitgeist
haveria de encontrar maneira de ali se reflectir, ainda que de forma
imperceptível para os próprios habitantes.
A casa não é propriamente o edificado, mas antes a teia de relações sociais, familiares e afectivas que nela se entretecem. Não é que partes da casa não tenham, por si mesmas, um valor próprio na narrativa. O sótão ou o quarto da madrinha Libânia, mas não é o aspecto arquitectónico que é central. A situação é curiosamente ambígua. Uma casa, entendida do ponto de vista social e na época em que a narrativa decorre, tem por referência o nome e a pessoa de um homem. A velha casa, todavia, centra-se na figura de Libânia, uma solteirona, tia de Martinho e tia-avó dos filhos deste. Ela é o centro da casa, é para ela que se voltam os olhares e as expectativas, embora seja Martinho o gestor das propriedades da tia, assim como das suas. A família de Martinho é a presuntiva herdeira, embora a relação de veneração que todos, naquela casa, têm pela matriarca esteja muito para além do mero interesse. Martinho é um gestor rigoroso, um homem dos antigos, o representante de uma tradição de honradez e de fidelidade piedosa para com os valores do passado, onde se incluem os valores da religião em que todos foram criados.
A fortuna de Libânia resultou de uma herança de um irmão que, perante a pobreza e a dificuldade dos tempos, emigrou para o Brasil. De certa maneira, o romance de Régio ainda é um reflexo da saga dos brasileiros, isto é, dos portugueses que foram para o Brasil em busca de aventura e fortuna. Esse brasileiro enriqueceu, mas não tinha descendentes. Entre os inúmeros irmãos escolheu Libânia como herdeira e, de certa forma, tutora discreta das famílias dos outros irmãos, que tinham perante ela a necessidade de estabelecer relações cordiais e, por isso, de disfarçar a inveja e o azedume causados pela protecção ao sobrinho Martinho. Se Libânia é o centro vivo da família, o brasileiro é o espiritual. Também neste aspecto Régio não deixa de criar uma ambiguidade. Em cada aniversário da morte do emigrante, são rezadas três missas, cada uma por um padre da família. No entanto, o leitor percebe que o brasileiro talvez não fosse muito católico e que o seu compromisso seria com a Maçonaria, a qual surge como uma sombra ténue na obra.
Este segundo romance acompanha a doença e recuperação de Lelito, mas também esboça o que poderá ser o futuro da família. Há uma grande tensão entre a tradição e as novas gerações. Não apenas Lelito desobedece aos imperativos paternos com a sua fuga do colégio no Porto, como o irmão mais velho, já engenheiro, se afastou de casa, pretextando a continuação da formação no estrangeiro, encontrando desculpas para adiar continuamente o seu retorno. O ramo masculino procura o seu próprio caminho. Lelito preparando-se para a Universidade, incendiado por interesses estéticos e filosóficos que estão muito para além daquilo que lhe poderá proporcionar a tradição familiar. João ter-se-á afastado decisivamente dos valores da casa, apesar da relação afectiva que mantém com os que dela fazem parte. Enquanto estudante em Lisboa, não deixou de levantar, na aldeia, suspeitas de interesse pela Maçonaria e por todo uma cultura que estava longe de se coadunar com o velho catolicismo do mundo rural. Estava-se em plena primeira República. Mais tarde, o narrador deixa a suspeita de que será o anarquismo e o combate social em nome dos desfavorecidos que movem João e o afastam de casa. Também as raparigas, mais novas que os rapazes, trazem nelas um enorme potencial para fazer explodir o apego à tradição e à venerabilidade dos velhos valores. A mais nova, Angelina, parece tocada por um fervor místico, o qual é intensificado pela descoberto de um caderno de uma tia que morreu louca, ou assim é contado, caderno esse que sugere uma intensa vida espiritual, marcada por experiências que ultrapassam em muito a mera devoção beata e convencional. Por fim, Maria Clara, que começa a tornar-se mulher tomou-se de amores por um desigual. Seja qual for a perspectiva, os valores da tradição que animavam a alma da velha casa encontram-se perante um desafio trazido pela nova geração. Seja como for, a casa, a velha casa, representa as raízes dessa nova geração. É ela que a segura e a alimenta, que a abre para o futuro.
terça-feira, 27 de outubro de 2020
Sonhos numa noite de Verão 24
Paulo Catrica, Sala 37, 3.a divisão, Liceu Rodrigues de Freitas, Porto, 1999 |
segunda-feira, 26 de outubro de 2020
Perfis 6. A actriz
Milton Greene, Marilyn Monroe, 1953 |
domingo, 25 de outubro de 2020
A Garrafa Vazia 23
sábado, 24 de outubro de 2020
A decapitação
O ataque terrorista perpetrado há dias em França por
radicais islâmicos está sobrecarregado de simbolismo. Não se trata de um mero
homicídio, como aqueles que resultam da deflagração de bombas, ataques com
armas de fogo ou atropelamentos com viaturas. O facto do professor francês de
História, Samuel Paty, ter sido decapitado é uma mensagem simbólica que deve
ser lida numa multiplicidade de sentidos. Não é uma mera represália por um
comportamento blasfemo para os crentes do Islão. Também o é. No entanto, seria
de uma enorme ingenuidade lê-lo apenas dessa forma.
A prática da decapitação não terá sido no mundo islâmico – e, por certo, nos conflitos com crentes de outras religiões – um evento fortuito. O acto de decapitar um ocidental em pleno Ocidente tem uma mensagem dirigida para milhões de muçulmanos, um exemplo que se inscreve numa longa tradição, o qual deverá servir como uma motivação para o empoderamento das vanguardas fundamentalistas do Islão. Por outro lado, a decapitação também toca numa corda muito sensível dos franceses. Apesar do instrumento ser diferente, a decapitação foi o símbolo daquilo a que se chamou o Terror na Revolução Francesa.
O facto de o professor decapitado o ter sido na sequência de uma aula onde se explicava a natureza da liberdade de expressão também é significativo. A liberdade de expressão é um dos grandes valores do Ocidente, uma imagem de marca das suas sociedades. Em nenhum outro lado ela tem o peso que possui no mundo ocidental. Se países de outras culturas a abraçaram, isso deveu-se à influência vinda da Europa e da América. É, porém, um valor que atormenta todo o tipo de fundamentalista – religioso ou político – que não está disposto a respeitá-lo. Esta decapitação serve para dizer aos ocidentais que estão enganados, a sua liberdade de expressão é irrisória perante a lei e a vontade islâmicas.
A separação da cabeça do corpo tem ainda um outro valor simbólico, porventura o mais decisivo. Se a civilização ocidental se afirmou e tornou patente a falência da civilização muçulmana, isso deve-se ao conhecimento, ao projecto da ciência moderna e à valorização que se faz do uso da inteligência e da razão crítica. A mensagem é clara. Nem a inteligência nem a ciência chegarão para conter a ira dos fiéis do Islão. Facilmente se corta uma cabeça, e sem o corpo não há inteligência que assegure conhecimento ou superioridade civilizacional. Quem pensar que a decapitação do professor francês foi um acaso está muito enganado. Samuel Paty foi condenado à morte e a uma morte que significa muito mais do que a supressão de uma vida.
sexta-feira, 23 de outubro de 2020
Nocturnos 33
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
Ramón del Valle-Inclán, Sonata de Invierno
As Sonatas, no seu conjunto, são um autêntico exercício de desconstrução. A estratégia levada a efeito por Valle-Inclán reside no dissimulado contraste entre aquilo que a personagem do Marquês proclama e o modo como é reconhecido pelas outras personagens, por um lado, e, por outro, o que o desenrolar da acção romanesca nos mostra. A estratégia é subtil por que foge ao modelo da demonstração. Aquilo que é afirmado pelo Marquês e pela envolvência é que estamos perante um Don Juan, um católico e um tradicionalista fiel a Carlos VII. O que acontece é que os seus actos e, muitas vezes, as próprias opiniões em vez de confirmarem a tese, acabam por contradizer tanto a sua natureza donjuanesca, como o seu catolicismo e o seu carlismo. O autor constrói a personagem do marquês a partir da tensão entre um ideal, dado pelas três características referidas, e uma existência que, apesar daquilo que o discurso sublinha e engradece, não tem a potência para realizar esse ideal. O glorioso marquês é, a todos os títulos, um falhado.
As aventuras amorosas, quase todas, são inconsequentes ou, mesmo se chegam à consumação sexual, há nelas mais um rasto de derrota do que a afirmação de um D. Juan coleccionador de vítimas, que abandona e esquece. Na Sonata de Inverno, apesar de uma noite fogosa com uma antiga amante aquando da sua chegada à corte de Carlos VII, os seus dois objectivos eróticos – evitar que essa amante opte pelo marido em detrimento dele ou o consumar da sedução de uma jovem educanda num convento – saldam-se da mesma maneira, com um beijo apenas, na verdade um beijo de despedida. Esta natureza equívoca do grande conquistador desenha-se em todas as outras Sonatas, de forma mais acentuada nas de Primavera e de Outono. O donjuanismo é, na verdade, um elemento ideológico e não uma forma de agir ou um modo de existência. Esta visão de Valle-Inclán da figura de D. Juan é uma das mais interessantes, pois desmonta o mito – reduzindo-o a mera ideologia, no sentido marxiano de imagem invertida da realidade – através de um processo que, um leitor ingénuo, acreditará que o reforça.
Em qualquer das Sonatas o apregoado catolicismo de Bradomín choca com a sua aura erótica, mesmo que frustrada. Apesar de ser uma espécie de D. Juan anti-D. Juan, o marquês não deixa de se envolver numa ambiência sensual, na qual mergulha a generalidade dos contactos com o feminino. Os casos consumados ou não com mulheres casadas conflituam com um dos mandamentos que regem a moralidade católica, o de não cobiçar a mulher do próximo. No entanto, o autor é um modernista e como tal não deixa de ser tentado a desafiar as convenções e as próprias convenções religiosas. Tanto na Sonata de Primavera como na Sonata de Inverno o marquês seduz, embora sem consumação sexual, duas candidatas aos votos religiosos. No caso da irmã Maximina, na Sonata de Inverno, há que juntar um outro ingrediente. Há a suspeita de que ela seria filha bastarda do próprio marquês, feia como ele. Desrespeito pela sacralidade do matrimónio, tentativa de destruição através da sedução de vocações religiosas e indiferença perante a possibilidade de incesto, casos que não geram nele nenhum traço de arrependimento, dão a medida da natureza meramente ideológica do catolicismo de Xavier Bradomín.
Resta o seu tradicionalismo, a sua fidelidade a uma aristocracia medieval e à glória antiga de Espanha. Já na Sonata de Verão, passada no México, a revivescência da glória imperial de Espanha, à qual o carlismo se declarava fiel contra a visão dos liberais, é atravessada por uma funda ironia. Na Sonata de Inverno, toda ela perpassada por acontecimentos da história política de Espanha da época em que decorre a acção romanesca, vemos o marquês próximo da Corte, a sua intimidade com Carlos VII, o risco que corre pela causa e até a perda de um braço num recontro com as forças militares inimigas. É aqui que, ao contrário do que tinha acontecido até aí, o discurso vai desmentir a acção. O que será o carlismo e a causa absolutista para o marquês, ele que combate e dá um braço pela causa de Carlos VII? Oiçamo-lo. “Eu achei sempre mais bela a majestade caída que sentada num trono, e fui defensor da tradição por estética. O carlismo tem para mim o encanto solene das grandes catedrais, e já nos tempos da guerra ter-me-ia contentado que o declarassem monumento nacional. Bem posso dizer, sem jactância, que como eu pensava o Senhor.”
Quase no fim da obra, Valle-Inclán deixa a chave decisiva
para compreender a personagem Xavier Bradomín, esse falhado D. Juan, falhado
católico e falhado carlista. “Eu não aspiro a ensinar, mas a divertir. Toda a
minha doutrina está numa só frase: Viva a bagatela! Para mim, ter aprendido a
sorrir, é a maior conquista da Humanidade.” A equivocidade do marquês não o
aproxima da personagem de D. Juan, mas de D. Quixote. Bradomín é um Quixote dos
tempos modernos, um esteta que se diverte com aquilo que finge ser, que ri das
suas crenças e da sua falência existencial.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Alma Pátria 66: Filomena Casado e Reginaldo Duarte, Muro do Derrete
terça-feira, 20 de outubro de 2020
A Garrafa Vazia 22
segunda-feira, 19 de outubro de 2020
Ensaio sobre a luz (87)
domingo, 18 de outubro de 2020
Nocturnos 32
Eduardo Nery, Nocturno, sd |
sábado, 17 de outubro de 2020
Beatitudes (30) Contemplação
Gustav Klimt, The Church in Cassone, 1913 |
sexta-feira, 16 de outubro de 2020
Sonhos numa noite de Verão 23
Luís Noronha da Costa, Deus morreu: Morte ao rei, C. 1971-1975 |
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
A Garrafa Vazia 21
Ana Hatherly, sem título, 1969 |
Novembro 2019
quarta-feira, 14 de outubro de 2020
A televisão e a destruição da vida política
Tom Wesselmann, TV Still Life, 1965 |
Quando alguém lê um romance, vê um filme ou vai ao teatro adopta uma atitude de espírito que Coleridge caracterizou como suspensão da descrença. Lemos ou vemos algo que sabemos ser ficcional, algo que temos a certeza de não ser mais que um produto da imaginação, como se se tratasse de um acontecimento da vida real. As personagens e as situações ganham uma densidade e uma realidade que, de facto, não possuem. Fazemo-lo por que isso nos dá um prazer específico. Fingir que é verdadeiro aquilo que não passa de uma mera invenção.
O facto de a comunicação social, com destaque para as televisões, apresentarem os acontecimentos mais ou menos banais da vida política como ficções tem um efeito contrário ao que foi assinalado por Coleridge para a ficção. As pessoas acabam por suspender a crença na realidade. A realidade política, através da ficcionalização a que é sujeita pela comunicação social, perde a sua densidade ontológica e as pessoas passam a senti-la como uma mera invenção telenovelesca, que não se deve levar a sério. As pessoas sentem prazer, agora, em tratar como mera ficção aquilo que é a pura realidade.
É esta falta de seriedade e esta destruição de realidade com que a política é tratada que vai permitir a eleição do primeiro clown bem-falante que apareça. Para coisas que não são para levar a sério ou que são meras ficções qualquer um – de preferência se for mau – serve. Durante muito tempo a comunicação social foi vista como o quarto poder, um poder de controlo dos outros. Hoje em dia, ela não deixou de ser um poder, mas é agora um poder de destruição das instituições e da própria vida política. Faz parte das instâncias dissolventes da racionalidade política e daquelas que abrem o caminho do poder para a praga de aventureiros e oportunistas que parecem nascer debaixo das pedras.
terça-feira, 13 de outubro de 2020
Nocturnos 31
Jorge Barradas, Natureza Morta, 1926 |
segunda-feira, 12 de outubro de 2020
Beatitudes (29) Artesanato
Júlio Resende, O oleiro, 1954 |
domingo, 11 de outubro de 2020
Perfis 5. O soldado
Philip Jones Griffith, Soldier with bulletproof shield. Northern Ireland, 1973 |
sábado, 10 de outubro de 2020
A Garrafa Vazia 20
Miguel Angel Campano, Anunciación, 1998 |
Novembro de 2019
sexta-feira, 9 de outubro de 2020
Ler os nossos escritores
É possível que a maioria esmagadora dos portugueses tenha ouvido o nome de Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e Eça de Queiroz. São eles o fundamento a partir do qual se foi construindo a literatura de ficção nacional e que teve o seu grande momento de reconhecimento com a atribuição do Nobel a José Saramago. No entanto, a ficção portuguesa não vive apenas dos autores canónicos, um pequeno número que se distingue pela diferenciação das suas obras. Hoje ainda se ouve falar de Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro, Vergílio Ferreira e Agustina Bessa Luís, de Jorge de Sena e José Cardoso Pires. Há, todavia, um número muito significativo de autores de especial competência que começam a desaparecer da memória colectiva.
Rodrigues Miguéis, Augusto Abelaira, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Namora, Fernanda Botelho, Joaquim Paço d’Arcos, Maria Judite de Carvalho, Nuno Bragança, José Régio, Carlos de Oliveira, Rúben A, todos estes escritores ainda são conhecidos, terão leitores, mas a sombra do esquecimento cai já sobre eles. Desde o século XIX que Portugal produziu imensos romancistas, novelistas e contistas. Não serão todos excepcionais, mas a maioria tem obras interessantes e que nos dão a ver aquilo que somos. Merecem ser lidos por vários motivos. Em primeiro lugar, porque será possível encontrar na sua leitura prazer estético e tratamento depurado da língua portuguesa. Serão também um complemento ao conhecimento histórico do que temos sido. A História lida com a factualidade, com os acontecimentos, mas a ficção dá-nos a ver o que desejámos, o que nos fez sofrer e o que nos incitou a enfrentar obstáculos e a viver.
Um estudo recente mostra que os alunos do terceiro ciclo e do ensino secundário lêem cada vez menos. Temo que os jovens adultos e as gerações na casa dos quarenta e cinquenta anos sigam pelo mesmo caminho. O esquecimento dos nossos escritores e a desistência da leitura serão dois fenómenos que andam de mãos dadas e que deveriam merecer a maior das atenções da sociedade civil e dos cidadãos, mais até do que do Estado. É preciso que os cidadãos tomem nas suas mãos a memória da sua literatura. É preciso ler porque isso proporciona prazer e amplia a nossa capacidade de interpretar o mundo. É preciso ler os nossos escritores, os do cânone, mas também os outros, porque ali está a raiz da nossa imaginação, porque ali está um poder para, confrontando-nos com essas visões do mundo, termos capacidade para nos reinventar no presente e nos imaginar um futuro. A literatura também serve para isso.
quinta-feira, 8 de outubro de 2020
Um tempo tenebroso
Cid de Sousa Pinto, N.º 15, 1977 |
quarta-feira, 7 de outubro de 2020
Nocturnos 30
JCM, A Noite, 2018 |
terça-feira, 6 de outubro de 2020
José Régio, Uma Gota de Sangue
Na obra ficcional de José Régio (1901-1969), A Velha Casa, um ciclo de cinco romances, publicado entre 1945 e 1966, é o ponto mais elevado, o confronto decisivo do escritor, em plena maturidade, com a narrativa de grandes dimensões. Uma Gota de Sangue (1945), o primeiro romance do ciclo, não explora directamente o espaço da velha casa de família da personagem principal, Manuel Trigueiros, quase sempre referido por Lelito, em Azurara (Vila do Conde). Nesta obra inicial, o espaço da casa é mitificado e idealizado pela distância a que Lelito dela se encontra. Ao espaço mítico da origem, com o seu mundo íntimo, é contraposto o espaço desencantado, profano e opressivo do Colégio Familiar, na cidade do Porto, com as suas regras impessoais e os seus poderes, uns de direito e outros de facto.
Lelito fora ali parar como semi-interno. Residia no colégio, mas frequentava o liceu. Estaria a preparar o último ciclo dos liceus para entrar na Universidade. Desde o primeiro momento que a sua atitude contemplativa e de inclinação intelectual entra em confronto não apenas com muitos dos colegas, mas também com alguns dos adultos, entre eles um prefeito poderoso e ameaçador e o próprio director da instituição. A personagem é confrontada com um espaço e um tempo racionalizados, distribuídos segundo regras explícitas, cuja violação poderia acarretar sanções tanto da autoridade colegial como dos próprios colegas. Os espaços dos recreios, divididos escrupulosamente segundo níveis etários, bem como os das salas de estudo, do refeitório e do dormitório obedeciam uma ordem quase militar, que os despia de qualquer encanto para alguém que trazia consigo o peso da imagem idealizada do lugar de origem.
É neste sítio ominoso que Lelito se vai descobrir no confronto com os colegas e mesmo com os prefeitos. Naquela sociedade fechada, as relações organizam-se em torno de grupos, com os seus cabecilhas, e as rivalidades habituais entre bandos juvenis. Está longe de ser o melhor sítio para personagens singulares, meditantes, pouco interessadas nas brincadeiras mais ou menos inocentes a que a massa dos alunos, mesmo os mais velhos, se entregavam. Este é um dos traços mais marcantes do romance, o confronto entre um self em busca de si mesmo, da sua singularidade e a massa indiferenciada do nós comandada por pequenos chefes, aprendizes de tiranetes. Todo o romance é atravessado por este conflito entre o eu e o nós, entre a singularização do espírito e a massa anónima dos corpos, com a alarvidade dos seus desejos.
Neste espaço concentracionário, onde apenas existem membros do sexo masculino, a libido não se entrega a um prolongado sono. Régio não deixa de enfrentar romanescamente a suspeita da existência de uma homossexualidade mais ou menos difusa neste tipo de organização escolar. É com ela também que Lelito, sendo-lhe estranha, se confronta, num jogo violento e que, de forma enviesada, acabará por determinar não apenas o seu estatuto perante os colegas, os prefeitos e o próprio director, como acabará por decidir a sua relação com o colégio, a cujas regras implícitas, com o seu cortejo de servidões e derrotas, nunca se adequará. É também desse episódio de violência desencadeado por uma tentativa de sedução que ele descobre os limites do que é possível falar ou não com o pai.
Se o romance Uma Gota de Sangue é marcado pelo conflito entre dois espaços, não o é menos pela questão da família. Não por acaso, a instituição escolar onde Lelito se encontra tem o nome de Colégio Familiar. Isto permite ao autor esboçar uma contraposição entre a família, com os seus laços de solidariedade e regras de autoridade mediadas pelo afecto e a partilha de interesses comuns, e esses sucedâneos da família que, nas grandes cidades, acolhem os jovens que pretendem estudar. O Colégio Familiar era destituído de tudo aquilo que é essencial numa família. As suas regras, como aconteceu durante décadas em Portugal até à explosão do ensino público, aproximam-nos das instituições penitenciárias e disciplinares ou, num outro âmbito, das organizações militares. Nelas não há lugar para o emergir e florescer da singularidade do self.
Uma Gota de Sangue é, deste modo, um romance de formação, onde se acompanha, numa certa fase da vida, o processo de desenvolvimento moral, psicológico, intelectual e estético do protagonista. Contrariamente a certos romances realistas e neo-realistas, José Régio dá grande atenção à complexidade das personagens. Nenhuma das que tem importância na economia narrativa se deixa capturar por um arquétipo definido a priori. Todas elas possuem elementos mais luminosos e outros mais sombrios, embora esse doseamento não seja igual em todos. Há personagens mais tenebrosas e outros mais cintilantes. É neste jogo de luz e trevas que Manuel Trigueiros inicia a sua efectiva formação, é nele que se descobre e vai descobrindo aquilo que lhe é próprio e aquilo que não fará parte do seu acervo existencial.
segunda-feira, 5 de outubro de 2020
A Garrafa Vazia 19
Amadeo de Souza-Cardoso, sem título, 1910 |
Novembro de 2019
domingo, 4 de outubro de 2020
A destruição da família
Paul Gauguin, La familia Schuffenecker, 1889 |
sábado, 3 de outubro de 2020
Uma doença
Adriano de Sousa Lopes, Mar e Céu, 1923 |
sexta-feira, 2 de outubro de 2020
Pandemia e indisciplina
A explosão de contágios pelo novo coronavírus, que tem vindo a acontecer no mundo ocidental, está a trazer à luz uma questão que tem passado despercebida e que é particularmente incómoda. Trata-se da disciplina dos cidadãos, da forma como gerem as suas relações sociais. Chega a ser patético observar os governantes de países como Espanha, França ou Inglaterra a esbracejarem para tentar convencer os cidadãos a obedecerem às regras de afastamento social, regras essas reputadas necessárias para conter a pandemia em níveis suportáveis. Isto para não falar de países, como os EUA ou o Brasil, onde a própria indisciplina cívica emerge de dentro do poder político. Também o que se está a passar em Portugal, depois do medo inicial, começa a aproximar-se do que sucede nos países europeus referidos.
A partir dos anos sessenta do século passado, o tema da disciplina comportamental das pessoas ganhou muito má fama. Por um lado, foram as revoltas estudantis e a emergência de culturas juvenis em conflito com a cultura das gerações anteriores. O mercado viu nelas uma enorme oportunidade de negócio e nunca deixou de fomentar essa indisciplina cívica travestindo-a de rebeldia. Por outro, a emergência de práticas sociais cada vez mais informais, onde se incluem as doutrinas pedagógicas que têm vindo a subverter a ideia de disciplina na educação. Também contribui para a anarquia social a proliferação das mais diversas e disparatadas teorias da conspiração, que as redes sociais multiplicam nas comunidades como se multiplicam as células cancerosas num corpo humano. Por fim, o aparecimento na vida política de correntes que contestam continuamente a autoridade do Estado e que são um foco contínuo de apelo a desobediência civil.
Se se quer evitar fechar de novo as pessoas em casa, destruindo a economia, e, ao mesmo tempo, precaver tragédias como as que se assistiu, meses atrás, em Itália, Espanha e França, o comportamento disciplinado dos cidadãos é central. Cumprir as regras das autoridades sanitárias, não facilitar nas relações sociais, ter uma conduta razoável e não propagar crenças delirantes, tudo isso é muito importante. O problema é que grande parte dos ocidentais perdeu a ferramenta necessária para o fazer. A disciplina da razão, inerente à própria democracia liberal, foi substituída pelo alvoroço das emoções e dos afectos. Agora que precisamos, para salvaguarda de todos, de uma resposta disciplinada de cada um, o que temos é a reivindicação do direito específico de desobedecer, como se isso não implicasse uma terrível ameaça para terceiros.
[A minha crónica em A Barca]
quinta-feira, 1 de outubro de 2020
Nocturnos 29
Alfred Eisenstaedt, View of Los Angeles by night from the hills above city, 1936 |