Javier Calvo, A partir de Keiser, 1985 |
Ouve-se o
marulhar surdo das águas que, exaustas e cinzentas, vindas de muito longe,
chegam à foz, abrindo os seus braços, até se tornarem num imenso regaço que a
tudo parece acolher. Ao longe, avistam-se, através do véu translúcido da névoa,
as montanhas com os seus cumes afiados e incertos, os vales ronronantes de
mistério, as escarpas anunciando o perigo, o arvoredo que, em dias de sol, será
verde e agora não passa de um borrão escuro, viscoso, que o vento faz ondular
com lentidão. Nas águas, deslizam barcos tão diversos que dificilmente se fica
conformado com o uso da mesma designação para cada um deles. Impante e
orgulhoso, avança sem pressa um porta-aviões, com a sua carga que, erguendo-se
aos céus, leva a morte para a despejar sobre a terra incauta. Divisam-se os caças-bombardeiros
silenciosos, sonolentos, e na amurada perfilam-se homens que olham ansiosos e
sonâmbulos para terra. Um pouco mais adiante, uma pequena embarcação à vela,
talvez uma falua, sulca irrequieta as águas, como se temesse ser abalroada pelo
gigante que a segue. As velas são asas encardidas a fender o horizonte, estandartes
e pendões de um exército antigo e derrotado pelo tempo. Os ocupantes, nautas
experimentados e curtidos ao sol e à chuva, afadigam-se com tarefas que os
levem a bom porto. Entre uma e outra embarcação, num pequeno bote a remos,
ergue-se um homem. Solitário, contempla a desmesura da morte e da vida, da engenharia
com que se engalana a tarefa de fazer morrer o inimigo e a pobreza dos que, nas
águas, levam a morte aos peixes para dar vida aos homens. Inerte, o homem
contempla os mistérios da humanidade, depois espreita o horizonte cerrado pelas
montanhas, até que o seu barco é o único naquelas águas e ele sente-se, na estreiteza
do bote e na vertigem do coração, o rei do mundo.
Um texto magnífico.
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Muito obrigado.
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