Na obra ficcional de José Régio (1901-1969), A Velha Casa, um ciclo de cinco romances, publicado entre 1945 e 1966, é o ponto mais elevado, o confronto decisivo do escritor, em plena maturidade, com a narrativa de grandes dimensões. Uma Gota de Sangue (1945), o primeiro romance do ciclo, não explora directamente o espaço da velha casa de família da personagem principal, Manuel Trigueiros, quase sempre referido por Lelito, em Azurara (Vila do Conde). Nesta obra inicial, o espaço da casa é mitificado e idealizado pela distância a que Lelito dela se encontra. Ao espaço mítico da origem, com o seu mundo íntimo, é contraposto o espaço desencantado, profano e opressivo do Colégio Familiar, na cidade do Porto, com as suas regras impessoais e os seus poderes, uns de direito e outros de facto.
Lelito fora ali parar como semi-interno. Residia no colégio, mas frequentava o liceu. Estaria a preparar o último ciclo dos liceus para entrar na Universidade. Desde o primeiro momento que a sua atitude contemplativa e de inclinação intelectual entra em confronto não apenas com muitos dos colegas, mas também com alguns dos adultos, entre eles um prefeito poderoso e ameaçador e o próprio director da instituição. A personagem é confrontada com um espaço e um tempo racionalizados, distribuídos segundo regras explícitas, cuja violação poderia acarretar sanções tanto da autoridade colegial como dos próprios colegas. Os espaços dos recreios, divididos escrupulosamente segundo níveis etários, bem como os das salas de estudo, do refeitório e do dormitório obedeciam uma ordem quase militar, que os despia de qualquer encanto para alguém que trazia consigo o peso da imagem idealizada do lugar de origem.
É neste sítio ominoso que Lelito se vai descobrir no confronto com os colegas e mesmo com os prefeitos. Naquela sociedade fechada, as relações organizam-se em torno de grupos, com os seus cabecilhas, e as rivalidades habituais entre bandos juvenis. Está longe de ser o melhor sítio para personagens singulares, meditantes, pouco interessadas nas brincadeiras mais ou menos inocentes a que a massa dos alunos, mesmo os mais velhos, se entregavam. Este é um dos traços mais marcantes do romance, o confronto entre um self em busca de si mesmo, da sua singularidade e a massa indiferenciada do nós comandada por pequenos chefes, aprendizes de tiranetes. Todo o romance é atravessado por este conflito entre o eu e o nós, entre a singularização do espírito e a massa anónima dos corpos, com a alarvidade dos seus desejos.
Neste espaço concentracionário, onde apenas existem membros do sexo masculino, a libido não se entrega a um prolongado sono. Régio não deixa de enfrentar romanescamente a suspeita da existência de uma homossexualidade mais ou menos difusa neste tipo de organização escolar. É com ela também que Lelito, sendo-lhe estranha, se confronta, num jogo violento e que, de forma enviesada, acabará por determinar não apenas o seu estatuto perante os colegas, os prefeitos e o próprio director, como acabará por decidir a sua relação com o colégio, a cujas regras implícitas, com o seu cortejo de servidões e derrotas, nunca se adequará. É também desse episódio de violência desencadeado por uma tentativa de sedução que ele descobre os limites do que é possível falar ou não com o pai.
Se o romance Uma Gota de Sangue é marcado pelo conflito entre dois espaços, não o é menos pela questão da família. Não por acaso, a instituição escolar onde Lelito se encontra tem o nome de Colégio Familiar. Isto permite ao autor esboçar uma contraposição entre a família, com os seus laços de solidariedade e regras de autoridade mediadas pelo afecto e a partilha de interesses comuns, e esses sucedâneos da família que, nas grandes cidades, acolhem os jovens que pretendem estudar. O Colégio Familiar era destituído de tudo aquilo que é essencial numa família. As suas regras, como aconteceu durante décadas em Portugal até à explosão do ensino público, aproximam-nos das instituições penitenciárias e disciplinares ou, num outro âmbito, das organizações militares. Nelas não há lugar para o emergir e florescer da singularidade do self.
Uma Gota de Sangue é, deste modo, um romance de formação, onde se acompanha, numa certa fase da vida, o processo de desenvolvimento moral, psicológico, intelectual e estético do protagonista. Contrariamente a certos romances realistas e neo-realistas, José Régio dá grande atenção à complexidade das personagens. Nenhuma das que tem importância na economia narrativa se deixa capturar por um arquétipo definido a priori. Todas elas possuem elementos mais luminosos e outros mais sombrios, embora esse doseamento não seja igual em todos. Há personagens mais tenebrosas e outros mais cintilantes. É neste jogo de luz e trevas que Manuel Trigueiros inicia a sua efectiva formação, é nele que se descobre e vai descobrindo aquilo que lhe é próprio e aquilo que não fará parte do seu acervo existencial.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.