A explosão de contágios pelo novo coronavírus, que tem vindo a acontecer no mundo ocidental, está a trazer à luz uma questão que tem passado despercebida e que é particularmente incómoda. Trata-se da disciplina dos cidadãos, da forma como gerem as suas relações sociais. Chega a ser patético observar os governantes de países como Espanha, França ou Inglaterra a esbracejarem para tentar convencer os cidadãos a obedecerem às regras de afastamento social, regras essas reputadas necessárias para conter a pandemia em níveis suportáveis. Isto para não falar de países, como os EUA ou o Brasil, onde a própria indisciplina cívica emerge de dentro do poder político. Também o que se está a passar em Portugal, depois do medo inicial, começa a aproximar-se do que sucede nos países europeus referidos.
A partir dos anos sessenta do século passado, o tema da disciplina comportamental das pessoas ganhou muito má fama. Por um lado, foram as revoltas estudantis e a emergência de culturas juvenis em conflito com a cultura das gerações anteriores. O mercado viu nelas uma enorme oportunidade de negócio e nunca deixou de fomentar essa indisciplina cívica travestindo-a de rebeldia. Por outro, a emergência de práticas sociais cada vez mais informais, onde se incluem as doutrinas pedagógicas que têm vindo a subverter a ideia de disciplina na educação. Também contribui para a anarquia social a proliferação das mais diversas e disparatadas teorias da conspiração, que as redes sociais multiplicam nas comunidades como se multiplicam as células cancerosas num corpo humano. Por fim, o aparecimento na vida política de correntes que contestam continuamente a autoridade do Estado e que são um foco contínuo de apelo a desobediência civil.
Se se quer evitar fechar de novo as pessoas em casa, destruindo a economia, e, ao mesmo tempo, precaver tragédias como as que se assistiu, meses atrás, em Itália, Espanha e França, o comportamento disciplinado dos cidadãos é central. Cumprir as regras das autoridades sanitárias, não facilitar nas relações sociais, ter uma conduta razoável e não propagar crenças delirantes, tudo isso é muito importante. O problema é que grande parte dos ocidentais perdeu a ferramenta necessária para o fazer. A disciplina da razão, inerente à própria democracia liberal, foi substituída pelo alvoroço das emoções e dos afectos. Agora que precisamos, para salvaguarda de todos, de uma resposta disciplinada de cada um, o que temos é a reivindicação do direito específico de desobedecer, como se isso não implicasse uma terrível ameaça para terceiros.
[A minha crónica em A Barca]
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