segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Perfis 6. A actriz

Milton Greene, Marilyn Monroe, 1953
Se lhe tocassem os lábios, o corpo explodiria. Resignada, ela mostra-os envolvidos em ardis para atrair o desejo, que ela não deseja, mas que se lhe pega à pele como um animal viscoso, para a ferir com o anzol da peçonha. Vive a meio caminho entre o dia claro e a noite mais escura. Nos olhos, lê-se o espanto da culpabilidade tecido no véu da inocência. Os seus pensamentos são feitos de nada e por isso são puros, sem nódoa, sem a mácula que quem a observa logo neles espalha, cobrindo-a de escórias. Ela entrega-se ao devir, ao tumulto que lhe rasga a alma, que lhe dilacera o corpo coberto pelo tafetá da beleza, embora tramas e urdiduras não cheguem para tecer o sudário que lhe envolverá o corpo morto. Uma perna repousa sobre a outra, mas o medo que lhe transtorna os sonhos não encontra lugar onde descansar. Então levanta-se e corre rua a rua todos os recantos que há dentro de si. Quase canta nas grandes avenidas iluminadas, para logo, trémula e temerosa, se perder em ruas escuras e becos sem saída. Depois volta e torna-se a sentar. Poisa uma mão sobre uma coxa e cobre-a com a outra. Que fazer com estas mãos, pergunta-se. Que fazer com os meus lábios, murmura. Uma oração cresce-lhe no peito, ondula nos seios e ilumina-lhe o rosto. O público olha-a, preso ao fascínio, encadeado por uma luz que não sabe de onde vem, mas que brilha na escuridão, que lhe traz o dia claro, enquanto ela recua lentamente para dentro da casa da noite. Quanto maiores são as trevas onde se afunda mais intensa é a luz que irradia. Tão luminosa está na sua escuridão, que o público grita trouxe-nos o dia, trouxe-nos o dia. Dos seus olhos caem lágrimas amargas, enquanto os lábios se cerram para que segredo algum por eles se escape.

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