quarta-feira, 27 de novembro de 2019

A Origem da Luz 1

Jackson Pollock, Alchemy, 1947

Sol incendiando-me célula a célula, nasci.
Grande, o silêncio, o espaço aberto e côncavo.
Aí desconhecia medos e metáforas.
Da serra vinham ventos, ateavam rumores
nas árvores, opalas em teus olhos.

A luz levedava no murmúrio das laranjeiras,
acendia velas nas paredes, archotes nos dedos.
Palavra a palavra cresceu o universo, o enigma
da terra, uma haste de canções, ao
caírem fulgiam na errância dos espaços.

Água, ave de âmbar e coral, brotava
do poço e na poeira floriam ervas e agoiros.
Os cabelos eram cordas, pedaços de arame,
ao erguerem-se, acendiam a lua,
os astros, constelações de sílica e basalto.

(1981)

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Ensaio sobre a luz (74)

Sarah Moon, Yael Raich, 1993
Transfiguração. Vindo não se sabe de que fonte, o silêncio interior cresce lentamente na alma, toma conta do corpo e manifesta-se como luz no esplendor do rosto.

sábado, 23 de novembro de 2019

O desafio da direita democrática


Comecemos pelo trivial, mas que muitas vezes é esquecido. O papel do PSD e do CDS tem sido fundamental para a consolidação de um regime democrático-liberal no nosso país. Uma democracia representativa não pode subsistir sem a existência de pluralidade política e de partidos de direita e de esquerda. Quando a ditadura caiu a 25 de Abril de 1974, a construção da democracia enfrentava um enorme problema. Havia uma esquerda estruturada na oposição, com partidos organizados e passado político de combate à ditadura. A direita estava, com excepções honrosas mas raras, comprometida com o regime deposto. Dissolvida a ANP de Marcelo Caetano, a direita não tinha organização política.

É aqui que entram o PSD e o CDS – ambos com um conjunto notável de personalidades – que vão integrar a direita no regime democrático, contribuindo para a sua consolidação. Nestes 45 anos de democracia, tanto o PSD como o CDS mantiveram-se fiéis à democracia liberal. Defenderam e defendem propostas políticas discutíveis, como as dos outros partidos, mas nunca houve neles uma tentação autoritária. Ofereceram ao país uma direita civilizada, empenhada no jogo democrático, dando representação política a uma direita social com peso significativo na comunidade nacional.

Neste momento, ambos os partidos enfrentam um problema que também afecta o país político. O crescimento dos populismos iliberais de direita na Europa, a súbita explosão do Vox em Espanha e a eleição de um deputado do Chega podem pôr a nu uma situação que a bonança dos tempos ocultou. Uma parte da direita social portuguesa – um pouco à semelhança da espanhola – não se revê no regime democrático, nas suas regras e na obrigatoriedade de tolerar a esquerda. Esta direita, como se está a descobrir, não suporta Marcelo Rebelo de Sousa e não confia já nos partidos de direita do sistema, PSD e CDS, os quais sempre foram mais democráticos do que esses seus eleitores.

O PSD e o CDS – este em estado grave de saúde – enfrentam um desafio importante lançado pela direita autoritária e populista. Como vão reagir à possível deserção, nos próximos tempos, de uma parte da direita social para a extrema-direita? Vão ser fiéis à sua matriz fundadora – e fundadora do regime – ou vão deixar-se arrastar pela facilidade do discurso iliberal e populista do Chega? Este é um problema que a direita enfrenta, mas não só. Uma democracia liberal necessita tanto do suporte da esquerda como da direita. O problema que afecta o PSD e o CDS não é apenas deles, mas também do regime democrático e da própria esquerda que se revê no modelo ocidental de democracia.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O discurso às massas policiais

Kazimir Malevich, Quadrado negro sobre fundo branco, 1915
Penso, muitas vezes, que os agentes políticos são cegos para a realidade. Por mais que esta se exiba à sua frente, eles possuem uma capacidade inultrapassável para a cegueira. Ainda ontem Rui Rio afiançava aos seus correlegionários do Partido Popular Europeu que a extrema-direita era coisa quase inexistente em Portugal e a que havia não era assim tão extrema. A manifestação de polícias de hoje serviu para mostrar exactamente o contrário. Não pela manifestação em si, um acto dentro da conflitualidade democrática e que tem fundamentos justos, mas pelo discurso do deputado do Chega. Este não é um acontecimento trivial. Parece uma inversão simbólica do PREC, onde, numa coreografia leninista, o deputado Ventura fala às massas policiais. Há muita gente desejosa de fazer explodir o edifício democrático e o dia de hoje foi um passo, cuja dimensão desconhecemos, para isso. Não sei se a aritmética de Rui Rio e a geometria dos partidos tradicionais é suficiente para explicar o que está em gestação.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Alma Pátria 57: José Mário Branco, Por terras de França



O último post deste rubrica, Alma Pátria, foi o de Queixa das Almas Jovens Censuradas, de José Mário Branco. Não estava no horizonte mais próximo trazer aqui uma nova canção do mesmo autor. Todavia, José Mário Branco morreu hoje. Para além da importância que ele teve para a música popular portuguesa, não me esqueço do espanto que foi para mim descobri-lo no ano de 1973. Havia nele um mundo musical que ia muito para além do cantor de protesto. Os seus dois primeiros álbuns são aqueles de que mais gosto, talvez porque estejam associados a uma parte da minha vida em que descobria, com a inocência dos verdes anos, o peso da realidade e como, naqueles tempos, era pesada e escura a alma da pátria. 

domingo, 17 de novembro de 2019

Pretérito Imperfeito 10. Pretérito Imperfeito

Cesare Peverelli, Senza Titolo, 1965-66
10. Pretérito imperfeito

Voltamos ao tempo que fomos,
aos dias ungidos pelo sol,
as ruas gastas de tanto
caminhar. Regressamos,
mãos exaustas, olhos
presos na terra.

Voltamos aos dias de Março.
Sobre o pó a chuva cai
cantante e pura.

Voltamos ao que fomos.
Os dias são rosas secas,
caídos entre folhas
extasiadas em mãos
erguidas para a luz.

Na noite, ouve-se um grito
e voltamos.
Ninguém chama por nós.

[Pretérito Imperfeito, 1981]

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Descrições fenomenológicas 48. Rua à noite

Lucio Fontana. Ambiente spaziale, 1967-2017. Hangar Bicocca

Contra a noite vêem-se janelas iluminadas, montras, anúncios que prometem aliviar os homens das suas necessidades. Encostados aos passeios, carros alinhados, tomados pelo sono, suspensos na quietude, à espera que alguém venha, abra a porta e, sentado ao volante, lhes dê vida. Isso será só mais tarde, quando a manhã tiver firmado os seus direitos sobre a escuridão. Numa relojoaria, um relógio luminoso deixa ver o tempo a passar, mas é uma ilusão, pois não há quem para ele olhe e talvez o tempo não passe por aquele relógio. Choveu durante bastante tempo, mas já não chove. A estrada molhada e nos passeios há pequenos lagos onde a publicidade luminosa se reflecte para duplicar a mensagem e tornar o mundo mais ruidoso. Uma janela abre-se, uma mulher espreita. Estica o braço e logo o recolhe. Olha para um e para o outro lado da rua, depois volta-se para dentro e diz alguma coisa. No andar de cima, outra janela ilumina-se e vê-se um homem calvo a caminhar na divisão. Está de pijama e parece preocupado com alguma coisa. Pára, por instantes, e debruça-se sobre uma mesa ou uma secretária. Depois ergue-se e na mão tem um livro. Encaminha-se para a porta e apaga a luz. A vizinha debaixo fecha a janela e também ela escurece a casa. De súbito, um carro avança e pára diante de um prédio. De dentro deste, sai uma mulher jovem apressada. A porta do carro abre-se, ela entra, fecha a porta e a viatura desaparece no fim da rua. A noite prossegue o seu caminho na rua vazia. O relógio indica as horas mas ninguém as vê.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

O não chumbo no Ensino Básico e a revolução educativa

Fotografia daqui.

A questão do não chumbo no ensino básico que tanto atormenta certos sectores políticos é apenas um pormenor sem qualquer importância. Tive de dar uma especial atenção aos célebres decretos-lei 54/2018 e 55/2018. Não são alterações legislativas triviais e se levadas a sério não são acomodáveis às tradicionais práticas escolares e às crenças do professorado. Propõem uma revolução na escola portuguesa, não uma simples reforma ou melhoria, mas um virar o ensino não superior de pernas para o ar.

Quanto mais se medita naqueles decretos mais cresce a sensação de desconforto. Há neles qualquer coisa de profundamente tenebroso. Há a ideia de que os alunos são uma matéria plástica altamente moldável. Bastaria uma mudança da forma de trabalhar do professor, agora um diferenciador pedagógico atento ao estilo de aprendizagem de cada um, para que os alunos renitentes à aprendizagem se convertessem às delícias do saber.

Isto não é verdade. Os alunos não são uma matéria plástica moldável ilimitadamente. Como os próprios professores também não o são. Como se pode fazer uma revolução (que vai desde a reconceptualização do espaço e do tempo da aprendizagem até à gestão do currículo e da avaliação) fundado numa crença falsa sobre a natureza dos alunos e contra as crenças pedagógicas de grande parte do professorado? Só através de processos autoritários. Os decretos referidos são um exemplo do mais refinado voluntarismo, o qual faz tábua-rasa da realidade das escolas e dos seus actores.

Uma tentativa idêntica a esta – no tempo de Roberto Carneiro e de Cavaco Silva – falhou estrondosamente, apesar de ter havido um grande incentivo ao professorado, através de valorização da carreira. Onde é que chocou? Na realidade. Foi um choque entre as crenças pedagógicas dos professores, a realidade dos alunos e o voluntarismo maximalista dos governantes. Se tivessem tentado apenas reformar o primeiro ciclo, de forma consistente e com tempo, ter-se-ia avançado alguma coisa. Depois, viria o segundo ciclo e assim sucessivamente. Talvez as coisas fossem hoje muito diferentes.

Os mesmos erros cometidos naquela altura foram repetidos no tempo de Marçal Grilo e de António Guterres. Também Lurdes Rodrigues e José Sócrates ensaiaram a sua revolução educativa, deixando o campo pejado de cadáveres, os professores proletarizados e  furiosos, e tudo pior. Chegámos a António Costa e a João Costa (o autêntico ministro da Educação), também eles se acham revolucionários educativos. Quarenta anos de erros e não se aprendeu nada. Todos querem fazer a sua revolução. Todos se acham salvadores. Todos vêem a autoridade do Estado como um poder revolucionário e violento que dobra os actores. Todos querem tudo ao mesmo tempo. A vida não é assim. O não haver chumbos no básico – coisa que já quase não existia – é uma irrelevância. Em Portugal tem-se sempre a inclinação para discutir com grande alarido o acessório e deixar o essencial de lado.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Beatitudes (17) Vitória

Alfred Eisenstaedt, A jubilant American sailor clutching a white-uniformed nurse in a back-bending, passionate kiss as he vents his joy while thousands jam Times Square to celebrate the long awaited-victory over Japan, New York, 1945

Não há maior beatitude do que estar vivo para comemorar a vitória. Os mortos dormem o sono eterno e aos que a morte esqueceu é dado o instante onde toda a felicidade se resume no inesperado de um beijo, como se a vida fosse uma sombra de um filme de Hollywood.

sábado, 9 de novembro de 2019

Nazismo e comunismo


No mês passado o Parlamento Europeu aprovou uma resolução de condenação dos regimes nazi e comunista. Na verdade, ambos os regimes perseguiram e mataram adversários e o Estado teve neles uma configuração totalitária. No entanto, não se pode dizer que o nazi-fascismo e o comunismo são a mesma coisa ou que o nazi-fascismo foi um regime de esquerda, como pretendem agora alguns adeptos da adaptação da teoria da terra plana à política. Uma das coisas que mais atormenta certa gente à direita é o facto de haver uma reprovação moral do militante nazi mas não do comunista.

Os regimes fascista italiano e nazi alemão são tentativas de corte com a tradição cristã, uma ruptura com os valores que a Europa, a partir da Queda do Império Romano, criou. São regimes que tentaram fazer reviver o mundo imaginário do Império Romano, antes da conversão ao cristianismo, ou do ainda mais imaginário mundo ariano dos povos germânicos. Tentativas delirantes, apoiadas na tecnologia moderna, de inventar tradições míticas de um passado glorioso ou puro. Para além dos crimes, aquilo que não tem permitido acomodar moralmente nazis e fascistas é a sua recusa dos valores cristãos, mesmo que secularizados.

O comunismo pertence a outra tradição e a sua ligação com o cristianismo, apesar do ateísmo filosófico do marxismo, é real. Em primeiro lugar, o marxismo é uma radicalização do liberalismo. A emancipação política e jurídica defendida pelos liberais é radicalizada pelo marxismo como emancipação social. A igualdade formal perante a lei dos liberais é radicalizada em igualdade real na vida social pelos comunistas. O comunismo não é mais do que um liberalismo levado às últimas consequências. Em segundo lugar, o próprio liberalismo, filho do Iluminismo, é uma secularização dos valores cristãos, secularização mediada pela Reforma protestante. O comunismo, por seu turno, apesar de ver a religião como ideologia, não deixou de herdar esses valores cristãos, vindos através do liberalismo, orientando-os para a emancipação na terra e não para a salvação no céu.

Enquanto no mundo ocidental o cristianismo e o liberalismo tiverem algum peso cultural, será difícil olhar para um comunista e ver nele alguém que é do mesmo tipo de um nazi. O comunista é um irmão mais novo que se radicalizou e tem uma visão extremada dos valores que todos partilham, julgando-os possíveis de realizar na terra, através da violência revolucionária, enquanto o nazi é aquele que quer dissolver a ordem que o cristianismo trouxe ao mundo. Isto não iliba o comunismo dos crimes que cometeu, mas ajuda a perceber a tolerância com que os comunistas, ao contrário dos nazis, são vistos. Eles pertencem à família.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Pretérito Imperfeito 9. Deus

Pedro Fernández Cuesta, Murmullos de Dios

9. Deus

Preso ao silêncio, Deus
é um sopro,
uma  história de seda,
fresta de cal, o
rasto de luz
libertado do sal.

[Pretérito Imperfeito, 1981]

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Alma Pátria 56: José Mário Branco, Queixa das Almas Jovens Censuradas



Chegou a vez de José Mário Branco aparecer no Alma Pátria. Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades é o seu primeiro álbum, editado em 1971, em plena primavera marcelista, em França onde se encontrava exilado. Surpreendente é a qualidade elevada de um primeiro álbum, um refinado gosto na escolha dos textos, mesmo nos que têm um tom mais interventivo, sem nunca deslizar para soluções fáceis e tonitruantes. “Queixa das Almas Jovens Censuradas” é um poema de Natália Correia e é um dos retratos mais exactos daquilo que a ditadura nos fez ser. A música de José Mário Branco parece ter sido a fonte original de onde brotou aquele poema e não uma música que se adaptou a ele, e isso diz tudo do génio musical de José Mário Branco.

domingo, 3 de novembro de 2019

Ensaio sobre a luz (73)

Emil Otto Hoppé, Mika Mikum, Poland, 1916
De súbito a luz degrada-se e a imagem projectada no espelho já não é um reflexo, mas a sombra baça que anuncia, na manhã estival, o inverno da noite.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

As direitas


Os resultados das últimas eleições vieram pôr a nu a crise que atinge a direita em Portugal. A direita parlamentar vale neste momento 34,6% dos votos e 86 deputados, enquanto a esquerda parlamentar vale 53,3% dos votos e 140 deputados. Isto coloca enormes desafios à direita democrática para se aproximar do poder. Mesmo que o entendimento parlamentar das esquerdas tenha acabado, nada garante que, em caso de necessidade, não volte a existir. A direita para governar precisa de ter mais deputados que a esquerda. Estamos assim num momento de crise e reconfiguração da direita. Vejamos alguns aspectos.

Comecemos com as novidades. O Chega alcançou o parlamento a partir de algum rancor social, nomeadamente em zonas onde pode haver conflitos com a comunidade cigana. Tem alguma margem de progressão fundada na exploração do ressentimento social e caso se prolongue a crise da direita democrática. A Iniciativa Liberal (IL) aproveitou o desencanto à direita e juntou uns quantos órfãos das políticas de Passos Coelho. Pode herdar algum eleitorado jovem do CDS e do PSD, caso este continue longe do poder. Seja como for, tem um programa que não se acorda nem com a realidade do país nem com a tradição da direita portuguesa. A margem de progressão parece curta e depende do que vier a acontecer no PSD.

A crise que atinge o CDS é gravíssima. Não apenas perdeu muito eleitorado como deixou de ser a única alternativa real aos descontentes com o PSD. Tanto a IL como o Chega podem pescar nas águas onde o CDS pesca. Os sectores mais ultramontanos podem encontrar no Chega a sua representação, enquanto os mais liberais têm agora a IL ao dispor. Não se vislumbrando a emergência de um líder carismático, estando o CDS acantonado num estrato social muito específico e idiossincrático, as últimas eleições podem ter sido o ponto de partida para o seu desaparecimento. Enfrenta uma ameaça real.

O caso mais interessante é o do PSD e a luta entre os adeptos do passismo, representados por Luís Montenegro, e uma velha tradição da direita portuguesa de carácter paternalista, com algumas preocupações sociais e com alguns toques, não exagerados, de conservadorismo, encarnada por Rui Rio. Se Montenegro ganhar o partido, este tenderá a ser mais liberal, o que poderá liquidar a IL mas encolher o campo social do PSD. Se Rio se mantiver, teremos um PSD menos liberal, mais na tradição de Cavaco Silva e mais próximo do centro e da doutrina social da Igreja. Caso saia vitorioso no embate dentro do PSD, não se pense que a esquerda recebe um bónus. Rui Rio, no parlamento e com a aprendizagem feita, será, para António Costa, um osso duro de roer.

[A minha crónica em A Barca]