sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Descrições fenomenológicas 48. Rua à noite

Lucio Fontana. Ambiente spaziale, 1967-2017. Hangar Bicocca

Contra a noite vêem-se janelas iluminadas, montras, anúncios que prometem aliviar os homens das suas necessidades. Encostados aos passeios, carros alinhados, tomados pelo sono, suspensos na quietude, à espera que alguém venha, abra a porta e, sentado ao volante, lhes dê vida. Isso será só mais tarde, quando a manhã tiver firmado os seus direitos sobre a escuridão. Numa relojoaria, um relógio luminoso deixa ver o tempo a passar, mas é uma ilusão, pois não há quem para ele olhe e talvez o tempo não passe por aquele relógio. Choveu durante bastante tempo, mas já não chove. A estrada molhada e nos passeios há pequenos lagos onde a publicidade luminosa se reflecte para duplicar a mensagem e tornar o mundo mais ruidoso. Uma janela abre-se, uma mulher espreita. Estica o braço e logo o recolhe. Olha para um e para o outro lado da rua, depois volta-se para dentro e diz alguma coisa. No andar de cima, outra janela ilumina-se e vê-se um homem calvo a caminhar na divisão. Está de pijama e parece preocupado com alguma coisa. Pára, por instantes, e debruça-se sobre uma mesa ou uma secretária. Depois ergue-se e na mão tem um livro. Encaminha-se para a porta e apaga a luz. A vizinha debaixo fecha a janela e também ela escurece a casa. De súbito, um carro avança e pára diante de um prédio. De dentro deste, sai uma mulher jovem apressada. A porta do carro abre-se, ela entra, fecha a porta e a viatura desaparece no fim da rua. A noite prossegue o seu caminho na rua vazia. O relógio indica as horas mas ninguém as vê.

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