segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Milagre e sacrifício

Max Klinger, Sacrifício

Há dias escrevi aqui que só um milagre salvaria a esquerda de uma derrota ignominiosa nas eleições de ontem. Houve um milagre. Não apenas o PSD não foi, nem de perto nem de longe, o partido mais votado, como os socialistas conseguiram uma maioria absoluta, com a qual ninguém contava. Aliás, mesmo nos círculos mais elevados do partido havia um temor acentuado pelos resultados. Mantendo a linguagem religiosa - mesmo em sociedades laicas a política tem muito mais a ver com a religião do que aquilo que se pensa - esse milagre foi obtido, como muitas vezes acontece, através de um sacrifício. Os resultados do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda representam um autêntico acto sacrificial. António Costa conduziu-os ao altar e, como cordeiros, imolou-os. Melhor, ofereceu o cutelo com que os portugueses, nas urnas, os imolaram. 

domingo, 30 de janeiro de 2022

Beatitudes (49) Imagens

Albert Renger-Patzsch, River Rhine (backwater), 1950s

Mesmo num mundo desencantado e tomado de assalto pela racionalidade tecnológica existem frestas por onde penetram as imagens míticas. Não vêm na figura de sereias, centauros ou dragões, mas no encantamento que a natureza oferece aos olhos do espectador ocasional. A passagem de um rio, as árvores que, ao erguerem-se para os céus, se reflectem nas águas, o mistério que toda a floresta traz consigo. Nessa hora, o mito retorna e com ele uma felicidade tingida de nostalgia.
 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Nocturnos 72

Kees Scherer, Paris
No cais da noite, os amantes encontram um precário abrigo, enquanto o sentimento convulso borbulha na corrente sanguínea, e a cidade se deixa envolver no algeroz do sono, na vertigem táctil de quem sonha.

terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Só um milagre

Arthur Tress, Cards and Checkerboard in Abandoned Locker Room for Railroad Workers, c. 1970

Cresce a sensação de que só um milagre poderá salvar a esquerda de uma derrota ignominiosa no domingo. Os eleitores não perceberam por que razão o orçamento de Estado foi chumbado, ainda por cima num momento tão difícil como actual. Os eleitores não percebem o que querem para o país as principais forças de esquerda. Os eleitores não percebem sequer o tacticismo com que os partidos de esquerda orientam a campanha eleitoral. Irresponsabilidade ao gerar a crise, inexistência de um projecto comum para o país, cacofonia eleitoral. Só um milagre pode evitar que domingo o PSD não seja o primeiro e a esquerda, no seu conjunto, não seja minoritária. É o que faz andarem a brincar aos aprendizes de feiticeiro.

sábado, 22 de janeiro de 2022

A futebolização da política


A recente ronda de debates pré-eleitorais teve o condão de mostrar ao que a política, em sociedades como a nossa, se transformou. Não me refiro aos debates propriamente ditos, ao desempenho dos protagonistas, mas à futebolização da política que eles consumaram. A comunicação social achou por bem transformar o acontecimento numa espécie de campeonato. Acabo de receber, vinda de um jornal de referência, a tabela com a classificação final. O campeão foi João Cotrim Figueiredo, que por certo irá participar no ano que vem na Liga dos Campeões. São despromovidos à segunda-divisão Francisco Rodrigues dos Santos e André Ventura.

Um dos problemas desta abordagem do confronto político é que o resultado depende totalmente dos árbitros. No futebol, por muito que um árbitro possa distorcer o resultado através de más decisões, há ainda os golos que são marcados e os que são falhados. O que os jogadores fazem em campo tem, por norma, relevo para o resultado. No caso dos debates, o que conta são as paixões políticas dos árbitros-comentadores. Os resultados dizem mais daqueles que atribuíram classificação que do desempenho dos políticos. Este problema, apesar de tudo, tem pouco relevo.

Um problema mais grave é a transformação completa da política num confronto entre hooligans de várias cores. A hooliganização da política é interessante para a comunicação social, pois gera continuamente tempo de antena. Os políticos preocupam-se em marcar pontos – isto é, golos – através daquilo que um hooligan pode perceber, ideias simples e soluções simplistas. Os grandes problemas, devido à sua complexidade, são arredados da campanha eleitoral, tornam-se secretos. A ânsia da comunicação social em dominar a política conduz a que esta se torne cada vez mais obscura, pois o recurso a uma linguagem básica e ao fogo-de-artifício oculta as dificuldades que estão por detrás das várias soluções propostas.

Não menos grave é que esta futebolização da política instaura um caldo cultural propício para projectos populistas. O populismo é uma forma de hooliganismo político. Vive de ideias simples e de afirmações bombásticas. Actua no campo das emoções e dos sentimentos e progride pela eliminação do debate sensato e do exame racional dos problemas. A comunicação social, que em tempos teve um importante papel na vida democrática, está a criar condições culturais e psicossociais favoráveis a projectos autoritários. A lógica de mercado a que essa comunicação social está sujeita impede-a de reconsiderar a sua actuação. Ela vive não da informação, mas do desencadear das emoções, tal como o futebol.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A Garrafa Vazia 77

Camille Pissarro, Morning, Sunshine Effect Winter, 1895
Caem as derradeiras folhas.
As tílias tremem
rasgadas pelo éter
da manhã.

Um punhal ergue-se na mão
do Inverno,
lacera o bosque,
tinge-me os dedos de sangue.

Sou a folha que cai da tília.
Desço a sangrar
na invernia,
tremo ao cair na terra.

Janeiro de 2022

segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Do moderno

Autor desconhecido, A modern kitchen (stove), 1870s
Não há coisa mais melancólica do que aquilo que é moderno. Num ápice torna-se obsoleto. Talvez o momento decisivo tenha sido a Querela dos Antigos e Modernos. Inclinou o coração dos seres humanos para o culto da modernidade. No centro desta está a inovação, mas para que esta possa existir é necessário que aquilo que foi moderno passe de moda, se torne obsoleto e sem préstimo. A posição dos antigos era o respeito pelos modelos decantados pelo tempo. Ninguém procurava ser inovador, antes queria chegar ao modelo que raptaria a obra da temporalidade e torná-la-ia eterna. Contra essa intemporalidade, o moderno reivindica os direitos do instante. Essa fugacidade, porém, torna-o num prolongado e contínuo equívoco.

sábado, 15 de janeiro de 2022

O progresso moral da humanidade (4)

Autor desconhecido, Ruined Richbourg cathedral during WW1, France, ca 1916
Talvez existam sintomas de que há um progresso moral na humanidade, de que as relações humanas, pois é no âmbito destas que se coloca a questão da moralidade, se tenham tornado menos más. Há, aliás, literatura que pretende corroborar essa ideia a partir da análise factual. Olhar, porém, para os efeitos devastadores da guerra, para o facto de nada nem ninguém estar ao seu abrigo, são sinais poderosos contra a verdade da crença nesse progresso moral. Uma catedral arruinada durante uma guerra não prova que a humanidade é pior moralmente do que era anteriormente, mas dificilmente será uma prova de que progrediu na vida moral e no respeito pelo outro.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

O combate de adolescentes

Adolphe Braun, Propylées, Athens, c. 1889
O debate de ontem entre Francisco Rodrigues dos Santos e André Ventura foi bastante esclarecedor. Esclareceu a ruína em que o CDS caiu. Esclareceu a real nulidade de André Ventura. Nem um nem outro possuem qualquer ideia para o país, para além de meia dúzia de slogans para atrair ressentidos ou incautos. O que se assistiu, na verdade, foi a um debate entre dois candidatos a presidente de uma associação de estudantes do ensino secundário. Uma briga de adolescentes. Nem faltou um Benfica - Sporting. Espanta que o CDS tenha chegado aqui. Espanta ainda mais que haja gente disposta a dar o voto ao Chega. Portugal não é uma associação juvenil para ocupação de tempos livres de jovens de cabeça perdida.

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

A persistência da memória (7)

Antoine Claudet,  Still Life in Attic, 1855
A memória é um sótão onde arrumamos uma massa composta por múltiplas naturezas mortas, objectos a caminho da poeira da indiferenciação. Os vestígios que ali vivem vão resistindo, mas o passar dos dias, as ocupações do mundo e o cansaço fazem perigar a persistência daquilo que ali guardamos. Por vezes, um súbito impulso conduz-nos a esse lugar de abandono e trazemos para a vida aquilo que pensámos estar morto há muito.

domingo, 9 de janeiro de 2022

A Garrafa Vazia 76

Lucio Muñoz, 2-85, 1985
Entro pela fúria do dever,
arrasto-me
no chão da piedade
e oiço o sinistro
no cântico da multidão.

Não há nos jardins flores
de coral,
nem nos altares velas
para alumiar
o caminho dos mortos.

Ao longe, o dever troa
na piedade
de um imperativo,
na rosa rubra desfolhada
na ara da miséria.

Janeiro de 2023

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

O equívoco dos homens fortes


A sociedade portuguesa, pouca habituada a uma conduta disciplinada, embasbacou com o Vice-Almirante Gouveia e Melo. Até aqui não vem mal ao mundo. Contudo, algumas declarações do novo chefe da Armada abrindo a possibilidade de se candidatar à Presidência da República podem trazer consigo um equívoco. Não por um militar se candidatar a um cargo político. Gouveia e Melo tem tanto direito de se candidatar à Presidência como qualquer outro português. O problema nasce na percepção errónea que o eleitorado pode ter. O trunfo do Vice-Almirante reside na forma militarizada como lidou com o processo de vacinação. Ora, isso não dá qualquer indicação de competência para ser Presidente da República. A virtude militar e a virtude política são coisas completamente distintas.

Um chefe militar pode ser mais ou menos talentoso, mas a hierarquia, a disciplina e a eliminação da conflitualidade no seio da instituição militar não se podem comparar com o que se passa na vida política, toda ela fundada no conflito de interesses e na necessidade de os gerir, evitando rupturas drásticas no consenso mínimo que deve existir. Vejamos uma comparação. Enquanto o Vice-Almirante comandava o processo de vacinação fundado numa liderança que não era contestada, um Presidente da República ou um Primeiro-Ministro não podem – felizmente, acrescento eu – exercer os respectivos poderes do mesmo modo. A um militar, basta-lhe ser eficaz na missão atribuída. A um político não basta ser eficaz. Ele tem de saber conjugar interesses opostos, lidar com fortes oposições, adequar-se ao facto de possuir poderes limitados. Um político necessita de possuir uma plasticidade que um chefe militar pode dispensar.

Os portugueses, por vezes, deixam-se seduzir por homens fortes e soluções simples, coisa que um militar pode apresentar como currículo. Em política, porém, nada é simples nem se resolve com voz do comando. Governar um país – ou qualquer tipo de comunidade – não é a mesma coisa que cumprir uma missão militar. Os cidadãos não são soldados que estejam às ordens do Presidente da República e do Primeiro-Ministro, aos quais devam obediência. São iguais ao Presidente e ao Primeiro-Ministro. Todos devem obediência apenas à lei. O que significa isto? Ser um excelente militar não dá qualquer competência para ser um político minimamente razoável, capaz de gerir os conflitos legítimos que espontaneamente surgem entre cidadãos livres. Seria um equívoco eleger-se um Presidente baseado numa competência que nada tem a ver com a virtude política.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Nocturnos 71

Harold Burkedin, London Night, 1934

Sem pavor, os rios atravessam a noite, trazem, ocultos nas águas punhais, de cristal e espadas de âmbar. Rasgam, com estudada demora, o lençol da escuridão. Quando chegam, exaustos, à foz, as trevas, no silêncio agonia, entregam-se no pano cru da morte. 

sábado, 1 de janeiro de 2022

Simulacros e simulações (30)

Bruce Davidson, Clown and circus tent, Palisades, New Jersey, 1958
Não é um simulacro de homem, tão pouco uma simulação. O palhaço, rico ou pobre, é um retrato do homem, porventura o mais fiel dos retratos. Muitas vezes, olhamos os seres humanos como actores. A realidade, porém, é que não actuamos num palco, mas numa arena, O mundo é um circo onde nos entregamos, sem remédio, a coreografias melancólicas e a jogos sem propósito.