sábado, 31 de agosto de 2019

Beatitudes (15) Arte combinatória

Nina Leen, Skyscraper hat and matching bag designed by Anita Andra, 1944
Decifrar o mistério das combinações é uma arte conjugada no feminino. Chamemos-lhe a arte combinatória. Encontrar semelhanças no diferente para as conjugar é o talento supremo de bem metaforizar, um exercício poético cuja finalidade é evitar que alguém se torne risível. E não é das menores infelicidades ser-se ridículo, isto é, destituído do poder de, ao vestir-se, fazer boas metáforas.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Bruno Schulz, As Lojas de Canela


Não é fácil determinar em que género literário se deve incluir As Lojas de Canela (Sklepy cynamonowe) (1934) do escritor polaco, de origem judaica, Bruno Schulz. A obra foi traduzida por Aníbal Fernandes, a partir do polaco e editada em 2012 pela Sistema Solar (há uma edição anterior na Assírio e Alvim). Aparentemente, estamos diante duma colecção de contos, havendo em cada um deles uma integridade que permite a sua leitura independente dos outros. No entanto, todos eles estão concatenados pela voz de um único narrador, também protagonista, das personagens e do espaço e tempo narrativos. Essas histórias, catorze no total, podem, todavia, ser consideradas como constituindo um único romance.

Não será uma perspectiva enviesada ver a obra de Schulz como uma tentativa de reencantamento do mundo, um contraponto à realidade burocrática e desencantada que o modernidade europeia foi fabricando desde o fim da Idade Média. A estratégia narrativa assenta numa descrição do mundo familiar e social a partir dos olhos de uma criança. Toda a obra é a expressão do modo como o narrador vê o seu mundo. Há uma clara rejeição do realismo e do naturalismo, uma recusa da descrição objectiva e da focagem comum da realidade. A narrativa tem um pendor claramente expressionista, o qual também se encontra nos desenhos do autor (Schulz foi professor de desenho, alguns dos quais surgem neste livro). É no exercício da subjectividade da criança que o autor encontra o caminho para reencantar o mundo, devolvendo-lhe o mistério que o triunfo da razão tinha dissolvido e descativando a imaginação da tarefa burocrática de reproduzir uma realidade exterior.

 A folhagem embaraçada das ervas daninhas e dos cardos arde e crepita no fogo do meio-dia. A sesta preguiçosa do jardim tem o zumbido que a agitação das moscas lhe dá. Os colmos dourados gritam ao sol como uma nuvem de gafanhotos ruivos, os grilos são estridentes na chuva torrencial do fogo, e as silíquias cheias de semente explodem com um ruído discreto de cigarra (pp. 46/7). Este excerto manifesta o modo como Schulz opera a remitologização do real. Encontramos constantemente uma antropormofização da realidade não humana, onde os próprios espaços – a casa de habitação e a loja de família, as lojas de canela ou a Rua dos Crocodilos – ganham vida, como se para eles houvesse transmigrado uma alma. Noutras passagens, porém, encontramos o processo inverso, e é o homem que se animaliza. Toda a escrita é um contínuo exercício de contaminação, na qual os géneros lógicos que organizam a linguagem perdem as fronteiras, tornando-se sujeitos de predicados que a visão comum do mundo não lhes atribui.

A personagem central e o modelo do reencantamento é, como não poderia deixar de ser para um rapaz narrador, o pai. Esta aventura do meu pai com os pássaros a última e a mais brilhante contra-ofensiva que o incorrigível improvisador, o estratega da imaginação, lançou às muralhas de um Inverno estéril e vazio. Só hoje entendo o seu heroísmo: solitário, fez guerra ao tédio infinito que entorpecia a cidade. Sem nenhum apoio e compreensão da nossa parte, esse homem extraordinário defendia sem esperança a causa da poesia. Nas rodas deste moinho mágico afundavam-se as horas vazias, para de lá saírem com perfume e cor (p. 69). O pai é assim o modelo de uma imaginação transbordante. De tal maneira que, o comerciante de tecidos, de uma imaginação delirante, vai sofrendo, ao longo da obra, múltiplas metamorfoses, onde não falta a da sua eventual transformação em barata. Estas transformações emergem na tessitura narrativa como formas de emancipação do mundo burocrático do comércio e dos interesses sociais.

Não se pense, no entanto, que se está perante um autor que se aproxima de Kafka. A imaginação deste é austera, as suas parábolas são, apesar de inusitadas, marcadas por um rigor e severidade que evitam os excessos da hipérbole. Schulz, pelo contrário, entrega-se, sem nunca cair no histrionismo, a um culto do excessivo, procurando levar a linguagem cada vez mais longe, conquistando pelo uso sistemático da metáfora novos poderes para expressar o mundo interior e, dessa forma, devolver o fascínio ao exterior. Kafka e Schulz, apesar de partilharem um ambiente cultural comum, de estarem ambos familiarizados com os mesmos textos bíblicos, apresentam duas formas de imaginação bem diferenciada, apesar de ambas serem profundamente criativas. Se Gregor Samsa tem por destino tornar-se uma barata gigantesca, as metamorfoses do pai do narrador, na obra de Schulz, impelidas pela sua imaginação transbordante, têm por finalidade torná-lo mais humano, como se ser humano fosse um longo e contínuo exercício da imaginação criadora, que se libertou da sua função meramente reprodutora, para usar classificações provenientes de Kant.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Pretérito Imperfeito 1. Ausência

Lucio Muñoz, 25-85, 1985

1. Ausência

Se a ausência fosse apenas
a negrura da noite ou
a esquadria aprisionada ou
o vidro quebrado pelo vento

se fosse apenas o limiar da porta
onde não passas ou
o sobejo de pão ao jantar ou
a tristeza tecida pelo tempo

se fosse apenas a mancha de café
sobre a saia ou
uma lagoa de lâminas ou
um novelo de névoa ao sol da tarde

se fosse apenas tudo isso, ainda
haveria na ruína de
Setembro um fogo de
palavras na penumbra dessa mão.

[Pretérito Imperfeito, 1981]

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Descrições fenomenológicas 46. Casa de férias

Zao Wou-Ki, 2-10-84
As paredes de madeira escurecida pelos anos são a pele de animais pré-históricos deixados ao abandono naqueles parques temáticos que, após a turbulência da novidade, se entregam a um interminável declínio. O telhado sonolento como uma manhã de Verão deixa ver as marcas do tempo, as telhas em falta nos beirais, ervas a despontar como pelotões de pioneiros a anunciar a chegada do exército verde da natureza. A porta para a varanda do primeiro andar está fechada, talvez para ocultar alguma intimidade que teima em esquivar-se à publicidade ou a rasura da vida marcada pelo arsenal imperioso das derrotas. Nos vidros, reflectem-se o arvoredo e a pureza azul do céu, em quadros multiformes a acompanhar a deambulação meditativa do dia. Vislumbram-se neles pássaros vendidos ao ócio e quase se é tomado pela ilusão de ali nascer o canto que por vezes se ouve. Mais ao longe, a neblina torna incerto o horizonte, povoando-o de sombras e insinuações, desenhando caracteres que só o inconsciente  decifra, fazendo crescer em quem olha uma angústia hermética, cuja obscuridade se propaga pela paisagem. Duas filas paralelas de velhos pinheiros lembram uma companhia de soldados veteranos, a quem o peso da idade retirou a jovialidade com que se entregavam aos prolongados amplexos com a morte. Perfilados, vemos as suas bocas desdentadas, os ramos partidos, o cansaço ao elevarem-se aos céus. Entre eles e a casa, abre-se uma pequena clareira, de terra negra, maculada pela caruma amontoada pelo tempo, sem que o trabalho dos homens se oponha ao desvario da natureza. Ali, uma mesa redonda recebe a cobertura de uma toalha branca, irrepreensível na alvura, uma marca de pureza na incontinência silvestre da floresta. Sobre ela, um velho bule e duas chávenas de chá, numa faiança a lembrar o requinte deixado como memória pelo século XIX. Um vestido longo, acrisolado pela luz da manhã, veste uma mulher de olhar preso pela música da melancolia. Fala baixo e evita súbitos pizzicatos. As palavras são ciciadas, mas não há hesitação no fluxo das frases. Enquanto deixa correr os sons da boca como se saíssem de uma fonte, os dedos da mão direita rodam os anéis que circundam os da esquerda. À sua frente, com um ar tingido pelo espanto, um homem, de óculos redondos de aros dourados, escuta. Veste-se de fato e gravata. Por vezes, ambos pegam nas respectivas chávenas e levam-nas à boca, numa encenação perfeita, timbrada pelo hábito. Depois, ela retoma o discurso e ele põe a máscara do espanto, sem dizer uma palavra, talvez com medo que lhe saiam da boca cogumelos venenosos que matariam o dia, envolvendo tudo num luto escusado. Caem dos pinheiros agulhas aceradas que se depositam, ressequidas, no chão. A mulher levanta-se, entra na casa, então ele pega no jornal que dormita sobre uma cadeira, desdobra-o e penetra, através da fuligem das palavras, nos segredos do mundo. A certa altura pára, tira os óculos, limpa-os com esmero a um guardanapo e volta a colocá-los, retomando a leitura. Lá dentro, impelida pela aragem, uma porta bate. Ouve-se um grito de sobressalto e depois o silêncio desce com asas de veludo sobre a velha casa de férias.

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Ensaio sobre a luz (69)

Saul Leiter, Raining On Two, 1957
Sob o denso aguaceiro, a mulher e o cão caminham por dentro dos dias desertos de Janeiro. Fogem da sombra que os ata à invernia com a esperança de encontrar, no fim do caminho, um frágil fio de luz. Aí será a sua casa.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Sonhos numa noite de Verão 19

Bill Brandt, Blackout in London, Crescent Moon and Street Lamp, The Adelphi, 1939
Uma mulher saiu da escuridão e entrou na zona iluminada pela lua. O quarto-crescente oferecia a cidade aos perigos que todos suspeitavam. Ao ver aquele rosto, senti-me perturbado. Amor à primeira vista. Segui-a. Via o seu corpo e a sombra que crescia na estrada. Ela percebeu que era seguida, mas não se apressou nem se voltou para trás. Talvez também se tivesse apaixonado. A perturbação atingiu o paroxismo quando pensei que a primeira coisa que faria ao alcançá-la seria pedi-la em casamento.  Pergunta-me se casámos. A certa altura, nuvens densas ocultam a lua. A escuridão era total. Ouvia os seus passos, mas estava já numa zona onde as ruas se emaranhavam. Passei a noite atrás daquele som. Uma dor de cabeça horrível misturava-se com um cansaço inexplicável, quando acordei pela manhã.

domingo, 25 de agosto de 2019

Pawel Pawlikowski, Ida


Ida (2013), um filme do polaco Pawel Pawlikowski, pode ser lido como uma meditação sobre duas questões centrais da existência humana. A primeira diz respeito à identidade: Quem sou eu? A segundo ao sentido que se deu à vida: O que fiz  da minha vida? O filme estrutura-se à volta de duas personagens, Ida, uma jovem noviça prestes a fazer os seus votos definitivos, e Wanda, a tia, irmã da mãe, e única parente viva da candidata a freira. A narrativa, de grande contenção e sem nenhuma concessão a  qualquer tipo de retórica inflamada, passa-se na Polónia, no ano de 1962. A fotografia a preto e branco permite um enquadramento social da história, dando a ver a sociedade polaca daquele tempo, sem comentários e avaliações, a não ser aqueles que estão subjacente à matéria fílmica.

Quando Anna se prepara para realizar os votos de consagração definitiva à vida religiosa, a madre superiora ordena-lhe que vá ter com a única pessoa da família que lhe resta e que ela não conhece. É desse encontro com Wanda que descobre que o seu verdadeiro nome é Ida. Fica a saber também que é judia e que os seus pais foram assassinados, durante a ocupação alemã, por uma família católica, que lhes ficou com a casa e a propriedade. É nessa visita ao passado que ela, ao descobrir a sua origem, vai testar a fé em que cresceu. Na verdade, foi a congregação que a salvou e criou. É também um momento de confronto com o mundo, aqui representado pela tia.

Esta, comprometida com a resistência ao nazismo e, posteriormente, com o regime comunista, acabou por não cuidar de um filho, também assassinado ao mesmo tempo que a sua irmã e cunhado, e, no pós-guerra, nunca se interessou pela sobrinha, apesar da insistência da congregação. O filme não é, assim, apenas a descoberta de uma identidade, de Anna/Ida, mas também o do confronto existencial de Wanda com a sua vida e com a dissolução em que, após os primeiros tempos ligados ao regime comunista, a sua existência entrou.

Que respostas a narrativa dá às questões centrais enumeradas mais acima? O confronto com o que se fez, o rememorar o passado, o cansaço do presente conduzem Wanda a uma espécie de destino análogo ao da mulher de Lot, quando na fuga da família olhou para trás. Perante o perigo do presente o olhar para trás é a pior das soluções. Ida, pelo contrário, descobriu-se. Não olhou para o passado, porque aquele passado não era o dela. Descobriu também o mundo e a sua natureza e, dotada de um novo conhecimento,  pôde decidir sobre o que queria para o seu futuro, numa Polónia católica (o que o filme permite ver), que tinha sido ocupada pelos alemães e se encontrava agora sob um regime comunista.

Tanto a situação social da Polónia como a situação existencial de Ida e Wanda são mostradas de forma despojada, sem intuitos avaliativos. Os acontecimentos históricos estão reduzidos à sua facticidade, assim como as opções existenciais. A beleza estética do filme não está apenas na forma como utiliza a luz, o preto e o branco, a estratégia narrativa, a contenção dos diálogos ou a delicadeza com que tudo é tratado. Reside também em mostrar as coisas como elas são, evitando o discurso normativo para privilegiar o descritivo, deixando o espectador ver aquilo que é, embora, como todos saibam, não há visão do real ou descrição de situações que não impliquem um ponto de vista particular. Dito de outra maneira, não há no filme qualquer tipo de proselitismo.

sábado, 24 de agosto de 2019

Villa Cardillio 40. No desvão da vida

Inscrição em Vila Cardílio, Torres Novas

40. No desvão da vida

Esqueceremos horas, dias, anos,
a água da aurora sobre a pedra,
o bafo dos animais se o Estio cintila,
a serena serenidade da morte.

Deixa a mão deslizar pela coluna,
a vila a baloiçar na voz do vento.
O coração ferido pende do nastro
preso ao puro peso da penumbra.

Caminhamos no desvão da vida,
enganados pela harmonia das ervas,
corrompidos pela coruja do amor.
Em silêncio, o céu serena-nos a sorte.

1979

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

A greve dos motoristas


PÔR O REGIME À PROVA. Na greve dos motoristas de matérias perigosas coincidiram duas vertentes que, para os próprios interessados, não deveriam ter coincidido. A luta laboral por reivindicações que merecerão respeito e um desafio às instituições políticas e ao regime. Havia quem – e não estou a falar dos motoristas – visse esta greve como uma possibilidade para pôr em causa o regime actual. Esperava-se que o caos se instalasse nos combustíveis, mas também no abastecimento de géneros de primeira necessidade e na saúde. Isto permitiria derrotar o governo apoiado na esquerda e, ao mesmo tempo, preparar o terreno para a emergência de movimentos inimigos da democracia liberal. 

DEFESA DO REGIME. As duas principais forças que defenderam o regime foram o governo e o Partido Comunista. É evidente que tanto António Costa como o PCP têm interesses próprios a defender. Eleitorais, o primeiro, sindicais, o segundo. No entanto, na acção de ambos houve uma preocupação específica com a defesa do regime. O governo assegurou que, apesar da greve, a vida dos portugueses decorresse dentro da normalidade, evitando a emergência de movimentos sociais desestabilizadores. Através do sindicato afecto à CGTP, o PCP mostrou que oferece uma fiabilidade negocial e um respeito institucional que vão muito para além das emoções do momento. Não esquecer, contudo, que esta defesa do regime esteve sempre escorada no Presidente da República.

A FALTA DE COMPARÊNCIA. Os outros partidos parlamentares, perante a situação grave que se poderia viver, primaram pela ausência. PSD e CDS estiveram ausentes porque estão fora do governo. Se ocupassem o poder, perante a mesma situação, teriam um comportamento idêntico ao dos socialistas. Eram dispensáveis, porém, a disponibilidade do CDS para alterar a lei da greve e os tweets de Rui Rio na 25.ª hora. O Bloco de Esquerda esteve ausente porque a sua influência sindical é nula.

PROBLEMAS PENDENTES. As condições de trabalho dos motoristas e de milhões de trabalhadores estão muito longe de serem satisfatórias. A contínua genuflexão governamental perante os interesses patronais pode ser uma fonte de problemas no futuro. Uma segunda questão está na vulnerabilidade política do país perante certos sectores profissionais. A vida social não pode depender continuamente de requisições civis, uma espécie de declaração de estado de emergência. Um terceiro problema relaciona-se com o sindicalismo institucional e o desafio de sindicatos desalinhados e pouco comprometidos com a democracia. A UGT e, especialmente, a CGTP têm um desafio pela frente, que também é o da democracia liberal.

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Beatitudes (14) Música das esferas celestes

Eugène Atget, Organ-grinder, 1898-99
Há anjos que insistem em zelar pelos homens. Uns sentam-se nos telhados e olham sobranceiros pelos desvarios humanos. Outros, porém, descem às ruas e transportam os seus instrumentos musicais. Crêem que a música ainda pode salvar uma humanidade enlouquecida. Encontramo-los nos recantos mais inesperados. Só eles têm o poder de nos fazer ouvir o som que se desprende das esferas celestes.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Invasão da Checoslováquia

Crowd of protesters surrounding Soviet tanks during the first days of the invasion
Faz hoje 51 anos que as tropas do Pacto de Varsóvia invadiram a Checoslováquia e puseram fim à experiência liberalizadora do regime comunista por Alexander Dubček. É na sequência dessa invasão que tenho uma das imagens mais fortes da política. Trata-se da auto-imolação do estudante Jan Palach, meses depois, como protesto pela invasão. Não sei se são imagens visuais ou meramente auditivas. A minha impressão é que a televisão passou a imolação, mas pode ser apenas o trabalho da imaginação na produção de uma memória falsa. Naquela altura, não tinha suficiente consciência política para compreender o gesto do estudante checo. Impressionou-me, apenas. Anos mais tarde, descobri que naquelas chamas que devoravam Jan Palach ardiam muitas outras coisas, entre elas a maior ilusão que o século XIX produziu e que o XX quis tornar realidade pelo uso inexorável da força. A força de uma ilusão tornou-se na realidade da força pura, um exercício continuado de violência, que não alterou em nada a natureza dos homens, como os revolucionários almejavam, tornando-se eles próprios uma encarnação do mal que queriam erradicar.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Diálogos aporéticos (05) - Não é fácil

William Holman Hunt, Claudio and Isabel, 1850
- Meu pobre, o que fizeste?
- Melhor fora que tivesse feito alguma coisa.
- Omitiste algum dever?
- Por Deus, sabes bem que não sou pessoa para omissões.
- Então, porque te prendem.
- Quem te disse que me prenderam?
- Estas correntes significam o quê? Estás livre?
- Não, não estou livre.
- Pareces irado.
- Não pareço. Estou irado. Não é fácil.
- Claro, estar preso sendo inocente não é fácil. Compreendo.
- Não, não compreendes.
- O que te irrita tanto.
- A minha estupidez.
- Não compreendo.
- Eu também não.
- Não? Quem te prendeu?
- Fui eu.
- Então de que te queixas?
- De ter-me esquecido dos tampões para os ouvidos. Não é fácil.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Villa Cardillio 39. Avita

Vila Cardílio, Torres Novas

39. Avita

Olhar o poço perdido na terra,
a cinza que te serena a morte,
a ferida aberta na face ardente.

Falaremos de ti no silêncio do rio,
o cansaço de fêmea ao luar,
o tijolo do tempo sob as ancas.

Na cicatriz de sombra dos gestos,
na passagem das mãos pelo sol,
perpétuo fulgura o fogo deste dia

1979

domingo, 18 de agosto de 2019

Ensaio sobre a luz (68)

Dorothea Lange, Migrant mother, Nipomo, California, 1936
No rosto daquela mãe, a luz ilumina a fronteira invisível onde o desespero e a esperança se tocam, como se a fina película do presente tivesse ainda o poder de separar um passado de dor de um futuro no qual uma vida decente ainda será possível.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Hjalmar Bergman, Memórias de um Morto


Publicado na Suécia em 1918, o romance Memórias de um Morto, de Hjalmar Bergman, foi publicado em Portugal em 2011, pela Eucleia Editora, e em 2018, pela Cavalo de Ferro. Em ambas a tradução é de João Reis, presumo que a mesma. A obra pode ser encarada como uma polémica contra o livre-arbítrio, contra a ideia de que cada um é responsável pelo seu destino, pela vitória ou pela derrota que sofre na existência. Todavia, não se trata de um determinismo mecânico inscrito na natureza, mas a ideia de que o mal praticado por alguém é castigado na sua descendência, um pessimismo trágico. É isso que nos conta Jan Arnberg, personagem central e narrador do romance. Os desaires sofridos pelo seu avô, pai e por ele próprio mais que motivados por más opções são apresentados como o resultado de um acto pelo qual não foram responsáveis, mas que continuam a expiar, como nas tragédias gregas.

O fado foi adquirido no século XVIII, quando o conde de Anrfelt, um general que teria estado envolvido em 1792 no assassinato, num baile de máscaras, do rei Gustavo III, da Suécia, tinha dois filhos, um legítimo e outro ilegítimo. Teria sido este que assassinou o próprio pai, atraindo para a sua descendência, primeiro com o nome de Fält e por fim com o de Arnberg, o zelo das erínias. Ao longo das gerações as relações entre os dois ramos do conde assassinado mantêm relações equívocas, onde a tensão e uma certa cumplicidade se misturam. O avô de Jan Arnberg é um industrial falhado que perde os seus bens para a linhagem dos Arnfelt. O pai de Jan sonha em retomar os bens perdidos pelo seu e, para fugir ao destino, emigra para os Estados Unidos, onde se torna inventor. Os seus negócios, porém, ficam nas mãos de terceiros, acabando o talentoso Arnberg na miséria, morrendo ao que tudo indica de tuberculose. Jan, para escapar ao destino dos Arnberg, também foge da sua cidade de Wadköping, designada apenas como W., instala-se em Hamburgo e sonha com um grande projecto transatlântico, que nunca passará de um sonho.

O romance é um ensaio genealógico, onde se estudam as duas linhagens do conde assassinado no século XVIII, onde se percebe uma repetição do destino, tanto na linhagem titulado como na que nasce na ilegitimidade. Deste ponto de vista, a obra é uma exploração do destino dos filhos de Abraão, Ismael, filho da escrava Agar, e Isaac, filho da mulher legítima, Sara, embora numa perspectiva pessimista contrária ao destino desses personagens bíblicos. Aliás, a religião não deixa de ter uma presença significativa no romance. Uma das figuras centrais é o bispo de W., Julius Arnberg, avô de Jan e sogro do pai deste. É uma das figuras do conservadorismo da Igreja sueca (protestante). O romance mostra que enquanto a linhagem Arnfelt se encontra ligada ao mundo da banca, a dos Arnberg se divide entre homens da Igreja, empresários falhados e, mesmo, alcoólicos.

O romance divide-se em três partes. I A Herança e a Lei; II Léonie – Um Interlúdio; III A Herança e a Promessa. A estratégia narrativa, apesar de ter sempre como narrador Jan Arnberg, não se mantém homogénea. A primeira parte estamos numa abordagem realista, onde se narra a vida dos Fält/Arnberg. Na última, o texto torna-se fragmentário, a precisão realista desaparece, parecendo estar perante uma escrita impressionista, com laivos que lembram o surrealismo. As personagens que rodeiam Jan Arnberg na sua estadia em Hamburgo são equívocas, como se fossem apenas sonhadas, perseguindo finalidades indefinidas e regulando-se por regras que pretendem provir de uma sabedoria que ultrapassa o mero senso comum. A segunda parte faz a mediação entre a primeira e a última, tanto do ponto de vista do conteúdo narrativo como no estilo adoptado. Léonie é uma prima de Jan. Estariam destinados um ao outro, mas também aqui o diferente destino das famílias Arnfelt e Arnberg interferirá.

A chave de leitura de toda a obra é resumida pela fala, a última do romance, de uma das personagens mais equívocas, a quem Jan chama pai Johannes. Diz assim: “Nem toda a gente que vive está viva; nem é a morte um portal que abre apenas numa direcção. O Imutável forma a vida como lhe agrada, e da morte faz uma brincadeira. Os nossos pensamentos são fogos-fátuos que o divertem com os seus voos. Mas as nossas vontades repousam na sua mão. E, quando te sentires condenado pela sua vontade, saberás que repousas na sua mão, que te deu o arco na nuvem como um sinal. Por isso não temas a tua vontade, pois não é o teu instrumento, mas daquele que te guia.” Se a morte é um portal que abre em mais que uma direcção, então este pai Johannes poderá ser o pai de Jan, morto há muito e o próprio Jan, apesar de vivo, ser um morto que escreve as suas memórias. O romance é, na verdade, um exercício pessimista, marcado por um humor por vezes excêntrico, e enquadramentos surrealistas, numa época em que o movimento surrealista estava a incubar, sobre o destino dos homens na terra.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Exercícios de sobrevivência

Thomas Hoepker, Trás-os-Montes, Portugal, 1964
Ao vê-la, fiquei fascinado. O retrato de um retrato. Lembro-me perfeitamente de haver nas praias fotógrafos que transportavam às costas a câmara com que ganhavam a vida. Em casa da minha mãe ainda haverá umas fotografias minhas e do meu irmão sentados sobre uma rocha, talvez anteriores a esta. Também nas Portas do Sol, o jardim de Santarém onde podemos ir ver o Tejo, hoje moribundo, deslizar em direcção a Lisboa, havia um fotógrafo que, para fazer as fotografias, ocultava a cabeça sob um pano preto acoplado à caixa. O fascínio da fotografia não reside porém em ter desencadeado memórias pessoais, mas o de tornar patente o país que éramos em 1964. Um país rude, pobre, enterrado num canto de uma península, também ela separada do mundo pelo muro dos Pirenéus. Não nos faltava, porém, uma estranha e pouco razoável vaidade, e era essa que alimentava estes fotógrafos de rua, perdidos um pouco por todo o país, e que me fazem lembrar os amola-tesouras, embora destituídos da inevitável flauta-de-pã, com que estes se faziam anunciar. A si e à chuva, como se acreditava então. Um fotógrafo fotografa outro que, por sua vez, fotografa um homem em que um chapéu de chuva cobre um chapéu de abas, que, por sua vez, cobre a cabeça. A redundância era então um exercício fundamental para a sobrevivência.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Alma Pátria 53: Celeste Rodrigues, Meu Sonhar



Não deve ter sido fácil, no plano musical, ser irmã de Amália Rodrigues, a principal diva do fado. As comparações são inevitáveis, embora injustas e, na verdade, sem sentido. Num momento em que se recuperam alguns EP de Celeste Rodrigues, o Alma Pátria traz um fado, Meu Sonhar, do EP As Ruas, de 1961. A letra é de Castelo B. Mota e a música de Adelino Santos. O poema integra-se numa temática recorrente da época, em que o fado é interpretado como destino, um destino doente, triste. Um exercício de melancolia perante a esperança, os sonhos de uma vida e a morte da ilusão como a pior das decepções. Isso, porém, não é o mais relevante. A voz e a interpretação de Celeste Rodrigues são excelentes e mostram que ela era muito mais que a irmã da Amália.

domingo, 11 de agosto de 2019

Villa Cardillio 38. Esquecimento

Marble portrait of the emperor Antoninus Pius, ca. AD 138 - 161

38. Esquecimento

Como tu, Cardílio, seremos
traídos pelo voo do corvo,
pelo uivo do lobo ao luar.

Uma língua de fogo brilhará
onde os ramos se inclinam
para a poeira vinda no vento.

As folhas cairão no Outono
e no jardim a rosa esquecerá
o mudo murmúrio da sombra.

1979

sábado, 10 de agosto de 2019

Descrições fenomenológicas 45. Um espelho de água

Fernando Lerín, Sem título, 1984

O rio forma ali um pequeno lago de águas mansas, por vezes sobressaltadas se algum pato exausto decide descansar sobre elas. Um espelho, ouve-se dizer. Em verde sombrio, o mundo reflecte-se nele em camadas sobrepostas, como se se estivesse perante um velho palimpsesto, de onde o trabalho do decifrador vai resgatando com paciência os textos antigos e rasurados. A camada mais longínqua é a do céu. Ali convivem a pureza imaculada do azul, que, ao reflectir-se nas águas, desliza para aquele fronteira onde azuis e verdes se tocam, deixando o espectador indeciso sobre a cor que os seus olhos vêem, com o alvoroço das nuvens, umas brancas e leves, outras escuras, pesadas como uma ameaça suspensa sobre o destino dos homens. Passam no reflexo das águas em tumulto, sobrepondo-se, para logo se afastarem, abrindo clareiras, e logo as fechando, impotentes, porém, para evitar que o azul, de novo, desça dos céus para se reflectir nas águas. Sob a perturbação celeste, plátanos e salgueiros deixam que os seus ramos se reflictam na água, criando a ilusão de uma floresta aquática, ali mesmo onde a água desliza lentamente, quase imperceptível. Os olhos não conseguem desprender-se desta floresta ilusória, dotada de uma vida acesa pela luz da manhã. Em primeiro plano, esse texto mais recente, a imagem de quem está a olhar o espectáculo ribeirinho. Há quem converse e aponte para algum peixe que surge à tona de água, há quem olhe rapidamente e, temendo o fascínio, se afaste, desaparecendo dali, e há quem fique ali, apenas para olhar, em contemplação, elevando no silêncio uma oração para que o tempo não passe e a beleza de tudo aquilo permaneça para toda a eternidade. A luz, comandada pela dança das nuvens, porém, desfaz a ilusão e a sequência ininterrupta de claros e escuros lembra que é impossível parar as águas do tempo. Pouco a pouco, a margem fica deserta e o mundo reflectido no espelho de água perde-se na ausência de quem o observe.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Livros para férias


COMO MORREM AS DEMOCRACIAS. Autores Steven Levitsky & Daniel Ziblatt, ambos professores em Harvard. Uma reflexão com incidência americana, mas apoiada no estudo das mortes da democracia nos anos trinta do século passado, na Europa, e nos anos 60 e 70, também do XX, na América Latina. Um livro para os nossos tempos. Publicou a Vogais.

AS LOJAS DE CANELA. Autoria: Bruno Schulz. Um conjunto de pequenas histórias de um autor que é considerado um dos expoentes da literatura polaca do século XX. Schulz iniciou a sua vida artística nas artes plásticas, mas um acaso conduziu a que acabasse por se tornar escritor. A edição portuguesa de As Lojas de Canela contém um conjunto de desenhos do autor. Publicou a Sistema Solar.

O DESERTO DOS TÁRTAROS. De Dino Buzzati. Uma obra-prima da literatura italiana. Uma reflexão sobre a existência humana e o seu sentido. Serve também como indicação de uma coisas que esquecemos com facilidade. A Itália possui uma literatura extraordinária. Publicou a Cavalo de Ferro.

OS EXÉRCITOS DE PALUZIE. Autor: Manuel de Seabra. Uma descoberta pessoal recente de um autor português pouco conhecido. Escrito em catalão e, depois, em português, o romance acompanha, de forma irónica, quatro gerações de Rouredas, na Barcelona que vai desde finais do século XIX até depois da guerra civil. Publicou o Círculo de Leitores (encontra-se em alfarrabistas).

O MEMORIAL – RETRATO DE UMA FAMÍLIA. De Christopher Isherwood. Trata da vida de uma mãe e viúva de guerra, Lily, e do seu filho Eric, nos anos vinte do século passado, em Inglaterra. Os difíceis tempos do pós primeira Guerra Mundial. Publicou Livros do Brasil.

VICTORIA. Autor: Knut Hamsun. Um pequeno e belíssimo romance, uma meditação sobre as forças obscuras que dirigem a vida dos homens, concedendo a uns felicidade e a outros desventura. Uma história para ler nas tardes de Verão do Nobel norueguês. Publicou a Cavalo de Ferro.

O ESTUDANTE DE COIMBRA. De Guilherme Centazzi. Apesar de quase desconhecido do público português, Centazzi é o autor do primeiro romance moderno nacional, precisamente este O Estudante de Coimbra. Uma curiosidade que vale a pena ler. Publicou a Planeta.

FILOSOFAR – DA CURIOSIDADE COMUM AO RACIOCÍNIO LÓGICO. Autor: Timothy Williamson. Uma introdução à filosofia que pretende mostrar como ela se faz, segundo a tradição analítica. Dirigida a alunos e professores do secundário, é um livro acessível ao público que queira saber o que fazem os filósofos quando trabalham. Publicou a Gradiva.

Boas férias.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Ensaio sobre a luz (67)

Man Ray, Noire et Blanche (Black and White), 1926
De súbito, a luz revela a distância que vai do rosto à máscara. Se se dorme, o rosto torna-se visível mas, raramente, há quem possa contemplá-lo e suportar a visão. Mal se acorda, a máscara prende-se ao rosto e o que a luz então deixa ver qualquer um pode suportar.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

A hipocrisia do amor ao passado

Tabuleiros de figos a secar, Torres Novas, início do séc. XX
As imagens do passado são de tal maneira fascinantes, a sua luz é tão intensa, que a realidade vivida desses dias surge transfigurada, como se uma grande operação de limpeza tivesse o estranho poder de eliminar dores, impotências, injustiças acumuladas, dominações despóticas, humilhações sem fim. Raramente aquele que se deleita com o passado, no seu exercício narcisista da melancolia, se apercebe que o verdadeira prazer que aquelas imagens lhe proporcionam reside no facto delas não retratarem a sua realidade, mas aquela da qual se afastou e a que ele - sabe-o bem - nunca voltará. O prazer revivalista é um exercício hipócrita que anula aquilo que se oculta por detrás desses relampejos coagulados do tempo, e assim impede que no presente se resgate a dor e a humilhação para a dissolver no seu reconhecimento. 

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Villa Cardillio 37. Passagem do tempo

JCM, Praça 5 de Outubro, TN, 2015

37. Passagem do tempo

Naquele tempo… sempre é outro
o tempo em que a língua se perde
no sal, ou no silvo da seiva sequiosa.

Dois mil anos e no lugar das pedras
o reboco lascado na morada do olvido,
o alumínio que sutura as janelas.

Do segredo das folhas batidas de luz,
não restará uma aragem, um grito,
uma âncora balanceada no coração.

1979

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Alma Pátria 52: Beatriz Costa e Nascimento Fernandes, A canção do foot-ball



A Canção do Foot-ball faz parte do filme Trevo de Quatro Folhas (1936), dirigido por Chianca de Garcia (ver aqui). Cantam-na as duas estrelas do filme, Beatriz Costa e Nascimento Fernandes. Possivelmente, mas não averiguei, a cantiga deve ter feito parte do teatro de revista. É um retrato sociológico do país, numa altura em que Salazar tinha consolidado o seu poder, legitimando-o através da Constituição de 1933. Um dos refrões utilizados, porém, refere uma humilhação nacional sofrida em 1934 perante a selecção da Espanha republicana, ainda a dois anos da catástrofe da guerra civil. Diz assim: Se a selecção trabalha / Como eu quero / Agora é que não falha / Nove a Zero. Foi por nove a zero que Portugal perdeu em Chamartín (ver aqui). Parece que na altura o resultado futebolístico foi traumático para o nacionalismo que tinha tomado conta do país. A música é de Frederico de Freitas e a letra de Tomás Colaço.

domingo, 4 de agosto de 2019

A noite

Jacques Henri Lartigue, Renée Ciboure, 1930
Acossada, encostava-se à parede. A palma da mão sentia a frescura e o ouvido tentava captar alguma mensagem que o mundo, se é que existia um mundo para além daquele quarto, lhe enviasse. Nos olhos, a expectativa desenhava um terreno pantanoso onde medo e esperança se confundiam. Ficava assim durante muito tempo, sem se mexer, a respiração quase suspensa. A certa altura ouvia o eco do coração dentro da parede. Conforme ia crescendo, ela acalmava-se. Os olhos mediam o espaço e o pântano desaparecia, por milagre. Não esperava nada, mas também o medo a abandonara. Nesse momento, com passos firmes, dirigia-se para a cama, deitava-se e adormecia de imediato. A manhã chegara.

sábado, 3 de agosto de 2019

Descrições fenomenológicas 44. Neve no parque

Virginia Lasheras, ABC, 1979

Um candeeiro de iluminação pública ergue-se da terra, rodeado por uma grade de madeira, uma espécie de canteiro onde crescem uns arbustos, agora crestados pelo frio denso e persistente do Inverno. Nele brilha, contra a claridade funerária do dia, uma luz mortiça. Ter-se-ão esquecido, chegada a manhã, de apagar a iluminação eléctrica. Talvez haja outra razão imponderável. A alguns passos do candeeiro, um pequeno monte, coberto de neve, suporta um velho plátano, cujos ramos despidos mais parecem raízes hirtas suspensas nos ares, em contraponto com a claridade frouxa que se desprende do céu. A larga e comprida álea central do parque está, também ela, coberta de neve, como estão os arbustos e os pequenos montes rochosos, deixados ali para criar uma imagem de natureza agreste. Vistos de longes, os renques de árvores fazem lembrar grandes cortinas escuras, plantadas para proteger a intimidade do que se passa naquele lugar. Mais atrás erguem-se os prédios da cidade, altos arranha-céus, envoltos em betão e sombra. Os anúncios luminosos lutam contra a obscuridade geral, na ânsia de transmitir uma mensagem, de desencadear um desejo, de penetrar no coração dos homens. Num banco, uma figura humana, talvez um mendigo, parece uma estátua. Imóvel e indiferente aos ligeiros flocos de neve que caem lentamente, vacilantes se tocados pela brisa. Um casal, ainda apaixonado, atravessa o parque de mão dada. Riem-se. Talvez façam projectos ou apenas se entreguem à ilusão do amor. Sobre tudo isso, um céu de chumbo, aqui e ali atravessado pela difusa luz do Sol. O dia, coagulado, parece ter suspendido o tempo.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

O retorno do quarto-estado



Até há pouco tempo, havia políticos que, apesar de não darem vontade de rir aos seus povos, nos faziam a nós, ocidentais, pelo menos sorrir com um esgar sarcástico. Kim Jong-un, na Coreia do Norte, ou Nicolás Maduro, na Venezuela, apesar de líderes autoritários, há neles qualquer coisa de risível, como se lhes faltassem as virtudes que na antiga Roma eram reputadas essenciais para o exercício político, a gravitas e a dignitas. A gravitas é uma virtude atribuída a pessoas com elevado sentido ético, comprometidas com a honra e o dever. E essas características concediam um determinado peso a quem as possuía. A dignitas estava ligada ao bom nome, à reputação e também à honra, tudo isso proveniente dos feitos realizados ao longo da vida.

Durante muito tempo, nas democracias ocidentais, os políticos preocupavam-se em construir uma imagem pública em que essas nobres virtudes romanas estivessem presentes. Na verdade, apesar dos sobressaltos da história, o fim do Império Romano não representou a morte política tanto da gravitas como da dignitas. Elas permaneceram nas monarquias medievais, depois no absolutismo monárquico e transferiram-se para os regimes do terceiro-estado, como as democracias representativas.

Nos últimos tempos, porém, chega-se ao poder, no mundo ocidental, através do corte com estas virtudes. A eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, foi um sinal decisivo. Há outros, como a coligação no poder em Itália e a eleição de Jair Bolsonaro, no Brasil. Agora é a escolha de Boris Johnson, pelos militantes do Partido Conservador, para líder do partido e primeiro-ministro do Reino Unido. Todos estes políticos perceberam uma coisa. Gravitas e dignitas não são já condições necessárias para chegar ao poder. Pelo contrário, são obstáculos e não têm pejo em deitá-las pela borda fora.

Em tudo isto desenha-se uma profunda revolta plebeia. Se a Gloriosa Revolução inglesa, no século XVII, se as Revoluções Americana e Francesa, no XVIII, se o triunfo do pensamento liberal nos últimos dois séculos, se os próprios partidos operários como organizações de elites militantes, se tudo isso manteve sempre um ideal aristocrático ligado ao exercício do poder, assistimos agora a uma revolta contra esse ideal, a uma recusa da velha ordem ética e das suas virtudes políticas. Esta revolta é acompanhada pela rejeição da verdade como ideal epistémico de avaliação das condutas governativas e duma rebelião estética contra o gosto das elites. O quarto-estado, que tinha propulsado as derivas fascista e nazi, voltou em força à cena política.

[A minha crónica e A Barca]

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Villa Cardillio 36. Ruínas

Andreas Trepte, Conímbriga, 2007

36. Ruínas

A tarde é um caminho rumoroso.
Então, sigo entre pedras rente à sombra.

No lugar onde o sol se despede
ergo a bandeira à beira do abismo.

As ruínas reverberam no silêncio do sol,
e eu murmuro na maresia da mudez.

1979