Não é fácil determinar em que género literário se deve
incluir As Lojas de Canela (Sklepy cynamonowe) (1934) do escritor
polaco, de origem judaica, Bruno Schulz. A obra foi traduzida por Aníbal
Fernandes, a partir do polaco e editada em 2012 pela Sistema Solar (há uma
edição anterior na Assírio e Alvim). Aparentemente, estamos diante duma
colecção de contos, havendo em cada um deles uma integridade que permite a sua
leitura independente dos outros. No entanto, todos eles estão concatenados pela
voz de um único narrador, também protagonista, das personagens e do espaço e
tempo narrativos. Essas histórias, catorze no total, podem, todavia, ser
consideradas como constituindo um único romance.
Não será uma perspectiva enviesada ver a obra de Schulz como
uma tentativa de reencantamento do mundo, um contraponto à realidade
burocrática e desencantada que o modernidade europeia foi fabricando desde o
fim da Idade Média. A estratégia narrativa assenta numa descrição do mundo
familiar e social a partir dos olhos de uma criança. Toda a obra é a expressão
do modo como o narrador vê o seu mundo. Há uma clara rejeição do realismo e do
naturalismo, uma recusa da descrição objectiva e da focagem comum da realidade.
A narrativa tem um pendor claramente expressionista, o qual também se encontra
nos desenhos do autor (Schulz foi professor de desenho, alguns dos quais surgem
neste livro). É no exercício da subjectividade da criança que o autor encontra
o caminho para reencantar o mundo, devolvendo-lhe o mistério que o triunfo da
razão tinha dissolvido e descativando a imaginação da tarefa burocrática de reproduzir
uma realidade exterior.
A folhagem embaraçada das ervas daninhas e dos
cardos arde e crepita no fogo do meio-dia. A sesta preguiçosa do jardim tem o
zumbido que a agitação das moscas lhe dá. Os colmos dourados gritam ao sol como
uma nuvem de gafanhotos ruivos, os grilos são estridentes na chuva torrencial
do fogo, e as silíquias cheias de semente explodem com um ruído discreto de
cigarra (pp. 46/7). Este excerto manifesta o modo como Schulz opera a
remitologização do real. Encontramos constantemente uma antropormofização da
realidade não humana, onde os próprios espaços – a casa de habitação e a loja
de família, as lojas de canela ou a Rua dos Crocodilos – ganham vida, como se
para eles houvesse transmigrado uma alma. Noutras passagens, porém, encontramos
o processo inverso, e é o homem que se animaliza. Toda a escrita é um contínuo
exercício de contaminação, na qual os géneros lógicos que organizam a linguagem
perdem as fronteiras, tornando-se sujeitos de predicados que a visão comum do
mundo não lhes atribui.
A personagem central e o modelo do reencantamento é, como
não poderia deixar de ser para um rapaz narrador, o pai. Esta aventura do meu pai com os pássaros a última e a mais brilhante
contra-ofensiva que o incorrigível improvisador, o estratega da imaginação,
lançou às muralhas de um Inverno estéril e vazio. Só hoje entendo o seu
heroísmo: solitário, fez guerra ao tédio infinito que entorpecia a cidade. Sem
nenhum apoio e compreensão da nossa parte, esse homem extraordinário defendia
sem esperança a causa da poesia. Nas rodas deste moinho mágico afundavam-se as
horas vazias, para de lá saírem com perfume e cor (p. 69). O pai é assim o modelo de uma
imaginação transbordante. De tal maneira que, o comerciante de tecidos, de uma
imaginação delirante, vai sofrendo, ao longo da obra, múltiplas metamorfoses,
onde não falta a da sua eventual transformação em barata. Estas transformações
emergem na tessitura narrativa como formas de emancipação do mundo burocrático
do comércio e dos interesses sociais.
Não se pense, no entanto, que se está perante um autor que
se aproxima de Kafka. A imaginação deste é austera, as suas parábolas são,
apesar de inusitadas, marcadas por um rigor e severidade que evitam os excessos
da hipérbole. Schulz, pelo contrário, entrega-se, sem nunca cair no
histrionismo, a um culto do excessivo, procurando levar a linguagem cada vez
mais longe, conquistando pelo uso sistemático da metáfora novos poderes para
expressar o mundo interior e, dessa forma, devolver o fascínio ao exterior.
Kafka e Schulz, apesar de partilharem um ambiente cultural comum, de estarem
ambos familiarizados com os mesmos textos bíblicos, apresentam duas formas de
imaginação bem diferenciada, apesar de ambas serem profundamente criativas. Se
Gregor Samsa tem por destino tornar-se uma barata gigantesca, as metamorfoses
do pai do narrador, na obra de Schulz, impelidas pela sua imaginação
transbordante, têm por finalidade torná-lo mais humano, como se ser humano
fosse um longo e contínuo exercício da imaginação criadora, que se libertou da
sua função meramente reprodutora, para usar classificações provenientes de Kant.
Lido com muito interesse.
ResponderEliminarUm abraço
Obrigado.
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