domingo, 5 de maio de 2019

Heinrich Böll, E não disse nem mais uma palavra


Escrito em 1953, E não disse nem mais uma palavra é apontado como um romance central na obra do Nobel alemão Heinrich Böll. Em Portugal foi presumivelmente publicado em 1960 pela Editorial Aster, com tradução de Maria Teresa e João Carlos Beckert d'Assumpção. A narrativa concentra-se em dois dias, num fim-de-semana, numa cidade alemã, nunca identificada, onde decorre, com exuberância e alvoroço, um estranho congresso de droguistas. Aparentemente, este congresso nada tem a ver com o enredo central, o qual gira à volta do casal Fred e Käte Bogner. No entanto, o omnipresente imperativo publicitário “CONFIA NO TEU DROGUISTA!” estabelece, de modo irónico, o problema da confiança como horizonte onde se desenrola o drama humano daquele casal.

Os dois dias em que decorre a acção do romance situam-se no pós-guerra, numa Alemanha devastada pelos bombardeamentos e, ainda mais, por uma derrota militar, que foi também a derrota de uma ideologia total que conferia um sentido e um destino históricos aos alemães, e que estes, na sua generalidade, não deixaram de abraçar seja por acção, comprometendo-se com o nazismo, seja por omissão de resistência. A devastação das estruturas físicas necessárias à vida, a derrota militar humilhante e a perda do sentido para a existência só poderiam conduzir a um abalo desse sentimento que funciona como um cimento que une as comunidades, a confiança. Como se poderá sentir um povo derrotado que acreditou na retórica da raça superior?

Fred e Käte são um casal separado com três filhos e, provavelmente, a caminho de um quarto. Apesar da separação, continuam a encontrar-se em hotéis miseráveis. Ele entrega-lhe praticamente tudo o que ganha. Dorme onde calha e vive de expedientes e empréstimos. Tem fama de alcoólico, embora raramente se embebede. Ela vive obcecada pela limpeza da parte de casa em que vive. O que Böll mostra de forma crua é os interstícios de uma vida marcada pela pobreza e a falta de esperança. Foi a pobreza que se imiscuiu na vida daquelas pessoas, que não apenas lhes retirou expectativas como as correu por dentro, incluindo no carácter. Fred sai de casa porque se tornou violento com os filhos. Essa pobreza, porém, tem uma raiz e essa é a guerra. Ele esteve na guerra, da qual não gosta de falar. Essa guerra, apesar de terminada, continua presente na paisagem da cidade, na vida social e no coração dos homens.

Um elemento central na estruturação do romance é a omnipresença do catolicismo. Heinrich Böll era católico, embora desde muito cedo crítico para com as opções da Igreja. Essa duplicidade perante a sua religião está bem presente na obra. Por um lado, o casal é católico. Ela reza e frequenta de alguma forma Igreja. Há uma cena onde Käte, antes de se ir encontrar com o marido, se confessa e fala da raiva que habita dentro dela. O padre, que também sente em si raiva pela vida dos seus superiores, fica hesitante se lhe pode ou não dar absolvição. Fá-lo apenas de forma condicional. Esta hesitação do sacerdote é central para se compreender até onde se coloca o problema da confiança. O próprio conhecimento da fé e a interpretação das condutas se tornam vacilantes aos olhos dos próprios pastores. Não são apenas as ovelhas que perderam o norte, também os pastores deixaram de saber o caminho e perderam a capacidade de interpretar os sinais.

No entanto, ao lado desta Igreja hesitante e perdida, mas que nessa hesitação e perda torna patente a sua autenticidade, existe uma outra fria, julgadora, imperturbável. Esta é encarnada pela mulher do casal que partilha a casa com os Bogner, ocupando a maior parte das divisões. Ela, com o seu farisaísmo, retrata uma Igreja que se considera infalível e acima das vicissitudes da humanidade. Böll, ao dissecar as estruturas sociais, põe de lado a configuração política emergente e olha para o papel da religião como elemento ainda central para a construção da vida das pessoas. Todo o romance é perpassado por um conflito entre duas formas de conceber a relação dos homens com a religião, isto é, com o absoluto. Se a confiança em si e nas estruturas sociais é abalada, apenas resta ao homem a confiança no transcendente. Se também aí não há lugar para a confiança, resta o irónico imperativo “CONFIA NO TEU DROGUISTA!”.

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