Escrito em 1953, E não
disse nem mais uma palavra é apontado como um romance central na obra do
Nobel alemão Heinrich Böll. Em Portugal foi presumivelmente publicado em 1960
pela Editorial Aster, com tradução de Maria Teresa e João Carlos Beckert
d'Assumpção. A narrativa concentra-se em dois dias, num fim-de-semana, numa
cidade alemã, nunca identificada, onde decorre, com exuberância e alvoroço, um estranho
congresso de droguistas. Aparentemente, este congresso nada tem a ver com o
enredo central, o qual gira à volta do casal Fred e Käte Bogner. No entanto, o
omnipresente imperativo publicitário “CONFIA NO TEU DROGUISTA!” estabelece, de
modo irónico, o problema da confiança como horizonte onde se desenrola o drama
humano daquele casal.
Os dois dias em que decorre a acção do romance situam-se no
pós-guerra, numa Alemanha devastada pelos bombardeamentos e, ainda mais, por
uma derrota militar, que foi também a derrota de uma ideologia total que
conferia um sentido e um destino históricos aos alemães, e que estes, na sua generalidade,
não deixaram de abraçar seja por acção, comprometendo-se com o nazismo, seja
por omissão de resistência. A devastação das estruturas físicas necessárias à
vida, a derrota militar humilhante e a perda do sentido para a existência só
poderiam conduzir a um abalo desse sentimento que funciona como um cimento que
une as comunidades, a confiança. Como se poderá sentir um povo derrotado que
acreditou na retórica da raça superior?
Fred e Käte são um casal separado com três filhos e,
provavelmente, a caminho de um quarto. Apesar da separação, continuam a
encontrar-se em hotéis miseráveis. Ele entrega-lhe praticamente tudo o que
ganha. Dorme onde calha e vive de expedientes e empréstimos. Tem fama de alcoólico,
embora raramente se embebede. Ela vive obcecada pela limpeza da parte de casa
em que vive. O que Böll mostra de forma crua é os interstícios de uma vida
marcada pela pobreza e a falta de esperança. Foi a pobreza que se imiscuiu na
vida daquelas pessoas, que não apenas lhes retirou expectativas como as correu
por dentro, incluindo no carácter. Fred sai de casa porque se tornou violento
com os filhos. Essa pobreza, porém, tem uma raiz e essa é a guerra. Ele esteve
na guerra, da qual não gosta de falar. Essa guerra, apesar de terminada,
continua presente na paisagem da cidade, na vida social e no coração dos
homens.
Um elemento central na estruturação do romance é a
omnipresença do catolicismo. Heinrich Böll era católico, embora desde muito
cedo crítico para com as opções da Igreja. Essa duplicidade perante a sua
religião está bem presente na obra. Por um lado, o casal é católico. Ela reza e
frequenta de alguma forma Igreja. Há uma cena onde Käte, antes de se ir
encontrar com o marido, se confessa e fala da raiva que habita dentro dela. O
padre, que também sente em si raiva pela vida dos seus superiores, fica
hesitante se lhe pode ou não dar absolvição. Fá-lo apenas de forma condicional.
Esta hesitação do sacerdote é central para se compreender até onde se coloca o
problema da confiança. O próprio conhecimento da fé e a interpretação das
condutas se tornam vacilantes aos olhos dos próprios pastores. Não são apenas
as ovelhas que perderam o norte, também os pastores deixaram de saber o caminho
e perderam a capacidade de interpretar os sinais.
No entanto, ao lado desta Igreja hesitante e perdida, mas que
nessa hesitação e perda torna patente a sua autenticidade, existe uma outra
fria, julgadora, imperturbável. Esta é encarnada pela mulher do casal que
partilha a casa com os Bogner, ocupando a maior parte das divisões. Ela, com o seu
farisaísmo, retrata uma Igreja que se considera infalível e acima das
vicissitudes da humanidade. Böll, ao dissecar as estruturas sociais, põe de
lado a configuração política emergente e olha para o papel da religião como
elemento ainda central para a construção da vida das pessoas. Todo o romance é
perpassado por um conflito entre duas formas de conceber a relação dos homens
com a religião, isto é, com o absoluto. Se a confiança em si e nas estruturas
sociais é abalada, apenas resta ao homem a confiança no transcendente. Se
também aí não há lugar para a confiança, resta o irónico imperativo “CONFIA NO
TEU DROGUISTA!”.
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