Estas músicas que vêm construindo a Alma Pátria relacionam-se comigo de maneiras diferentes. Algumas
acho-as absolutamente detestáveis, outras têm, a meus olhos, uma certa graça,
outras ainda são por mim reconhecidas como muito boas, mesmo que não sejam nem nunca
tenham sido a "minha" música. É o caso desta A
Rosinha dos Limões, de Artur Ribeiro (não encontrei vídeo
disponível), na voz de Max (Maximiano Sousa), um grande artista madeirense. Não
consegui encontrar a capa da gravação original da canção por Max, nem tive
tempo para procurar datas e outras informações. Mas a canção e a voz de Max
valem por si.
sábado, 31 de dezembro de 2016
sexta-feira, 30 de dezembro de 2016
Livro do Êxodo - 39. Os comedores de cerejas
André Louis Derain - Natureza morta com cerejas (1938-39)
Uma palavra, uma
frase, apenas uma, e tudo na história natural das cerejas se inclina, em momento
de fadiga, para a verdade, o Verão a traz. A memória sangra, vinha pelo granizo
de Junho devastada, os cachos a romperem-se pela violência da pedra, o tépido
bago invadido pelo exército de gelo, uma legião de anjos infernais, dir-se-á,
do céu, com espadas flamejantes e couraças translúcidas, descem, a lançar sulcos
pela terra, e dúvidas, como ogres, no espírito, animam quem sobre os campos o inquieto
olhar deixa pairar, ansioso olhar macerado pelo passar das horas e dos dias,
curta a vida, logo a morte por ela espera.
A mesa, com
todos os seus vasos e os pães da proposição, está agora vazia, aqui e ali,
tecem tecidas teias aranhas brancas, descoloridas, o sol há muito não entra, nem
os candelabros são acesos, nem uma vela de cera se incendeia; da almotolia o
azeite não corre. É uma fábula, a história que te contavam, se de ti cuidavam,
pela noite, antes de adormeceres: era uma vez… Assim, por aqueles incertos dias,
se adormecia, depois vinham sonhos, pesadelos, uma confusão disparatada de tudo
se assenhoreava. Um grito na noite, urro a libertar-se do centro dos pulmões,
dor pulmonar a semear grãos de terror na vigília dos que vigiavam, a cabeça
estonteada de sono movia-se em direcção ao peito, depois erguia-se, se
esfregavam os olhos, e ficava especado a ouvir as horas a passar, enquanto tu
dormias, na delicadíssima textura que o corpo sobre lençóis sentia.
Uma máscara de
fulgor cobria o rosto, quando colhias cerejas e com elas inventavas brincos, composições
astronómicas, famílias de pés doridos e mães famintas. Se Deus te livrar dos
teus pecados, poderás tomar o caminho que da serra, pedregosos são os montes,
vai para a cidade. Aí encontrarás avenidas abertas, uma luz de cinza e betão,
restos de relva, jardineiros a cortaram, bancos de madeira pregados ao chão.
Quando chegares, senta-te a ver as gaivotas a voltear no ar, a entregar o corpo
ao vento, enquanto desenham círculos, espirais, curtas elipses, códigos aéreos
para animais alados, ou anjos, ou demónios sem consciência e tão estranho modo,
eles o têm, de levar homens e mulheres a pecar, enquanto comem cerejas e cospem
os caroços para a rua, a saliva cai, infecta o alcatrão com leves escoriações, o
sol, se vier, as sarará, inclinado para a verdade, lugar de trevas e rectidão,
tudo vendido por um punhado de frutos maduros, pássaros na árvore os debicaram.
quinta-feira, 29 de dezembro de 2016
2016-2017
Paul Ackerman - Confrontation de deux conceptions (1967)
A minha crónica no Jornal Torrejano on-line.
O ano de 2016, do ponto de vista da política interna, foi
marcado pela descoberta, por muita gente, da inexistência em Portugal de
organizações políticas radicais e extremistas. Aquilo que para alguns, muito
poucos, já era claro – o facto de tanto o BE como o PCP perseguirem na prática,
para além da retórica discursiva para consumo interno dos respectivos partidos,
objectivos políticos moderados e de pendor social-democrata – tornou-se agora
patente. O país foi governado a partir de uma maioria de esquerda e, nem por um
instante, os compromissos de Portugal, com a União Europeia e a NATO, foram
postos em causa. O que se assistiu foi a uma recomposição tímida do tecido
social destruído pela intervenção da troika
e pelos governos de Sócrates e de Passos Coelho.
É verdade que a direita política e, fundamentalmente, a
direita presente nos blogues e colunas de opinião, tanto nos jornais como nas
televisões, não se cansa de gritar que somos governados pela extrema-esquerda
ou pela esquerda radical. O fascínio que o mantra provoca nesses grupos é tanto
que não têm percebido duas coisas fundamentais. A primeira é que fora desses círculos
ninguém leva o mantra a sério e, mais do que isso, ninguém tem medo, nas
actuais circunstâncias, da aproximação ao poder do BE e do PCP. Como arma
eleitoral não funciona. A segunda, mais grave para a direita, é que ela não
percebeu que o governo de Passos Coelho, cego pelo delírio neoliberal,
abandonou o centro (aquele centro que tanto Sá Carneiro como Cavaco Silva disputaram
com êxito à esquerda) e entregou-o de mão beijada não só ao PS mas ao BE e ao
PCP.
O ano de 2017 será diferente, por razões externas e
internas. Externamente, devido à vitória de Donald Trump nos EUA e ao
realinhamento geopolítico que isso vai implicar, independentemente do que se
passar nas eleições em França e na Alemanha. É possível que se assista a uma
reconfiguração dos processos de globalização e da pressão que esta tem exercido
sobre a vida política dos Estados-Nação. Internamente, as actuais movimentações
no PSD para defenestrar Passos Coelho são um sintoma de que a direita percebeu
que a aventura passista lhe alienou o centro. Neste momento, procura um condottiero que a reconduza à disputa do
centro e ao poder. Rui Rio parece ter as qualidades necessárias para ser esse
chefe da direita. Estas duas hipotéticas alterações trazem novos desafios à
esquerda. Se ela quiser continuar a determinar a evolução política do país, tem
de olhar para o que vem aí e deixar os fantasmas de Passos e da sua governação
na casa assombrada que é a deles.
quarta-feira, 28 de dezembro de 2016
Cinza de Pedra - 9. Estrela de fogo
Kazimir Malevich - River in the Forest (1908)
9. Estrela de fogo
Estrela de fogo
e corpo agreste
no bulício do dia.
Silêncio de vidro
e recusa
sob a lâmina do êxodo.
Silêncio!
Estrelas são
segredos.
Nascem no limiar
de um rio.
(Cinza de pedra, 1978)
terça-feira, 27 de dezembro de 2016
Descrições fenomenológicas 16. O bar
Howard Hodgkin - After Morandi (1989-94)
Os ladrilhos quadrados brancos e vermelhos, com dissimuladas fantasias
abstractas, recebem a luz vinda da porta do fundo, uma luminosidade que se
mistura com a que entra pelas grandes vidraças translúcidas da parede lateral.
À porta, cruzam-se um polícia, que se prepara para sair, impecável no aprumo do
uniforme castanho escuro, e um homem, de idade imprecisa, com um chapéu de aba
curta, como aqueles que se usaram há décadas atrás e, nos dias de hoje, ainda
nos fazem lembrar um detective de uma série negra norte-americana. Sobre o
fato, para confirmar a sensação detectivesca, o homem veste uma gabardina
azul-cinza, o que não deixa de fazer sorrir perante tal incongruência, pois o
dia está ensolarado e no céu não se pressentem nuvens. Ao passar um pelo outro, os homens mal se
olham e não há entre eles qualquer cumprimento. A luz diminui, quando a porta
se fecha. O homem da gabardina senta-se numa mesa e olha. Ao balcão, do lado de
fora, duas raparigas, na casa dos vinte e poucos anos, vestidas com saias
brancas, curtas, deixam ver longas pernas, terminadas por sapatos de salto
alto, que prolongam a sensação de que aquelas pernas, na sua elegância, não têm
fim. As ancas e as nádegas de ambas impregnam os corpos de uma ondulação que
não pára de atrair a avidez dos olhos masculinos. Conversam com os barmans, uma conversa sussurrada,
entrecortada por risos sardónicos e rápidos olhares para a sala. Tudo nelas, o
modo como se encostam ao balcão, o olhar que dirigem sobre as mesas, as
palavras que trocam, denota um longo hábito e, apesar da aparente jovialidade,
há nos seus rostos uma sensação de secura, como se, apesar da idade, não fossem
mais que o restolho abandonado de uma seara ceifada há muito. Uma terceira
rapariga, vestida de vermelho, talvez mais nova, coberta apenas por um pequena
saia e um top, oferece ao olhar o ventre despido, onde ainda não há marcas do
tempo. Dirige-se para uma mesa, ajeita os cabelos com a mão direita e senta-se,
ao lado do homem que persiste em não abandonar a gabardina e o chapéu. Ele
olha-a e escuta-a. Permanece silencioso. Sobre o rumor das conversas, ouve-se o
leve zunido dos aparelhos de ar condicionado. Junto à parede das janelas, a
meio da sala, um homem negro, coberto até ao peito, por um biombo de madeira,
espreita o ambiente, como se estivesse ali de vigia, à espera de que aconteça
alguma coisa que necessite da sua intervenção. A um canto, de pé, um homem na
casa dos cinquenta anos, vestido de fato castanho, com gravata vermelha sobre
camisa branca, sorve um enorme charuto, que segura entre dois dedos curtos e
grossos. A cabeça, sem cabelo, encima uns olhos frios implantados num rosto
quase esférico, com dobra no pescoço que se reflecte na proeminência da
barriga, que ele não tenta esconder. Não dirige um olhar para as raparigas.
Preocupa-se apenas com o charuto. Por vezes, fica a olhar as espirais que se
evolam para se perderem na nuvem de fumo que paira na sala, mas logo reconduz
os olhos e fá-los pairar no vazio, como se ali não se passasse nada e ele não
estivesse ali.
segunda-feira, 26 de dezembro de 2016
Alma Pátria - 10: Trio Odemira - Cartas de Amor
O Trio Odemira é um pilar essencial do imaginário musical do
nosso país. Em actividade desde os anos cinquenta, teve nas décadas de
cinquenta e de sessenta o seu apogeu. Era presença assídua na rádio e os seus
êxitos musicais foram muitos. Não consegui determinar o ano da edição do EP Trovas Populares, onde está Cartas de Amor, mas, segundo a Wikipedia, a gravação
foi feita entre 1955 e 1967. Refira-se que este universo musical não existia
apenas em Portugal. A América Latina, incluindo aí o Brasil, a Europa e os EUA
tinham muita música desta, uma música bem feita, uma música dirigida,
através da rádio, às classes populares. Também tinham outras coisas. Era isso
que nos faltava.
domingo, 25 de dezembro de 2016
Livro do Êxodo - 38. O poeta ridículo
Marc Chagall - The Poet or Half Past Three (1911-12)
Quando pisavam
os ladrilhos, abriam a boca e inalavam lentamente o ar, corriam com o olhar os
desfiladeiros de pedra e mata rasteira, sorriam. A noite deixara os últimos
vestígios, morrera nos braços esguios da aurora, tocados pelas folhas, o vento
as animava, e era uma ténue recordação a fugir diante dos olhos, animal bravio
do caçador se esconde. Não há regresso à terra de onde partiste, sussurraram ao
ouvido, quando a névoa, névoa iluminada por um sol indeciso, pairava sobre a
copa das casas, a cidade cobria. Mulheres, na sombra as havia, escutavam os
passos, portas fechadas, e um terror de pétalas rasgava como furúnculos a pele
do coração. Por vezes, deitavam-se sobre o pano verde das mesas de bilhar,
erguiam as abertas pernas para que alguém ao passar as tomasse e no desconcerto
as enchesse e ao útero, de tanta espera cansado, vida desse.
Amei ajuntando
os espelhos das mulheres para neles me rever, o sexo hirto, a carne a
chamar-me, a relva incendiada se abrasava. Quando respirava tudo me doía, mãos
e pernas, a língua, os lábios de tantos lábios tocar. Poeta ridículo, apedrejas
as palavras, feres a sintaxe, amontoas
as sílabas, pedras são, uma intifada o que de tuas mãos sai, disseram, ainda o
mosto fermentava, o leite coalhado já a envinagrar, verso a verso, histórias
entremeadas de outras histórias, água glaciar a correr na brancura do papel,
agora tingido de tinta incolor, de onde tudo parte, o som, o sentido, o sexo, o
sémen que semeia abismos no teu coração, feminino coração, delicada mão o
protege, se a mim, ridículo poeta, a amar me fora dado. Comecei com uma
variação para piano e orquestra, mas perdi do opus a numeração, e se ainda
reconstruo um incómodo pizzicato, a
memória recusa calar-se e então ladra na noite, ladra no poema, ladra como uma
loba esfaimada, as crias por alimentar, os rebanhos lá longe, cães de pedra os
guardam.
Ladrar, ladrar,
ladrar e depois vêm os uivos, fortes uivos, dos pulmões, mal respiram, saem,
vocábulos contra vocábulos, uma guerra civil alastra no campo da língua, gemem
moribundas as palavras, encrespam-se as ondas do mar e na lua, o luar o
anuncia, espelha-se a noite que nasce no ventre, no meu ventre, rugosos
intestinos, entranhas fétidas, o bandulho onde tudo desagua e de lá tudo vem.
Não há vísceras poéticas, apenas flores delicadas, como aquelas que minha mãe
ordenava no restrito espaço, jardim lhe chamava, onde eu corria, braços abertos,
as narinas a fumegar num céu riscado de corvos e de águias abertas sobre a
planície da solidão.
Não há na minha
terra choupos, salgueiros, os últimos carvalhos foram dizimados e as figueiras,
para a tua boca figos davam, são uma sombra inclinada para o chão de ladrilhos.
Nele, deitou-se a loba, as crias escanzeladas, e um poeta, ridículo poeta,
amontoa pedras feitas de letras, sílabas e sons vocálicos, gritos de horror no
som mecânico, roufenho som, do megafone: ao diabo a métrica, belzebu rima com
cu, ao diabo a rima. Deus expulsou-me do paraíso, não foi para que andasse, de
papel em papel, a compor metros, urdir rimas, sonetos ou redondilhas. Comecei
com uma variação para piano e orquestra, mas do opus perdi a numeração, quem quer saber de ciência assim funesta?
sexta-feira, 23 de dezembro de 2016
Um mistério de Natal
A minha crónica de Natal em A Barca.
É Lucas, o evangelista, que nos conta a história do nascimento de
Jesus no presépio. A palavra, na sua forma latina (praesaepe e praesēpĭu(m)),
significa estábulo ou manjedoura. Aparentemente, na economia da mensagem cristã
esta informação sobre o local de nascimento de Cristo era dispensável. Contudo,
ela veio a revelar-se como uma atracção poderosa para a imaginação. E o
espantoso é que o poder atractivo não deriva daquilo que, por norma, empolga os
homens: o brilho, o esplendor, a riqueza, o glamour,
o poder. Provém do seu contrário, da carência total, da completa ausência de
poder, da mais pura pobreza. Cristo, o Deus feito homem, nasce no
desapossamento e no abandono.
Que significado civilizacional e cultural tem este facto? Ele
contraria a tendência natural dos homens para aquilo que distingue e dá
segurança. O que o homem, por natureza, admira não é a pobreza, a falta de
poder, a ausência de distinção. Olhamos para nós e para o que se passa à nossa
volta e percebemos que a nossa índole pede riqueza, brilho, dominação, fama,
glória. Muitas religiões são construídas de acordo com esse desiderato. O
cristianismo, mesmo que os cristãos sejam pouco exemplares, propõe o contrário.
Mais: faz com que o divino se revele no desprezível. Na óptica do que nós,
homens, somos, o presépio é um absurdo. E é tão absurdo que não se descansou
enquanto não foi colonizado pelo seu contrário. Basta ver as épocas natalícias
a que estamos sujeitos.
Não é apenas este absurdo que é interessante na cultura de raiz
cristã. É também espantoso que, apesar dos homens, o tema da pobreza e do
desapossamento tenho feito caminho nas sociedades ocidentais. A atenção que o
actual Papa, para indignação de tantos, tem dado aos pobres e à condição de
pobreza é um dos sinais. Outro sinal é a emergência, a partir do trágico da
Revolução Industrial, da preocupação política com os que nada têm, surgindo
organizações políticas que os representam e os tomam como modelo para a
transformação das sociedades. Sem a estranheza do presépio, um Deus que nasce
no abandono e na carência, a permear a cultura, isso seria impossível. O
cristianismo funda-se em dois grandes escândalos: a morte do Cristo na Cruz, o
mistério da Páscoa, e o seu nascimento num estábulo, o mistério de Natal. Este
é o tempo em que, apesar de tudo, o presépio trabalha sobre a nossa imaginação.
E isso continua a ser um verdadeiro mistério de Natal.
Cinza de Pedra - 8. O silvo do silêncio na noite
Jaime Burguillos - Ocaso (1976)
8. O silvo do silêncio na noite
O silvo do silêncio
na noite
corre
na casa do tempo.
Cruza o mar
levado pelas
ondas,
rasga os dias
pela costura do
instante,
sorve a vida
na fímbria do
momento.
(Cinza de pedra, 1978)
quinta-feira, 22 de dezembro de 2016
Os dois grandes inimigos da direita
Juan Giralt - Ora Pro Nobis (2000)
Merece meditação o desprezo que uma certa direita social – aquela que
não está comprometida com a necessidade de ganhar votos e, por isso, diz o
que parte da outra também pensa – vota ao Papa Francisco e ao actual Presidente
da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Este desprezo consubstancia-se em
referências como o papa Chiquinho ou as marcelices do PR. Este desprezo provém,
como a generalidade dos actos de desprezo, da combinação da desilusão e da
impotência.
Desejariam, por exemplo, que o Papa fosse cúmplice do maravilhoso
mundo ultraliberal, que se calasse perante o problema da preservação do planeta
e, em matéria de relações com o Islão, tivesse já proclamado uma nova Cruzada
contra os infiéis. Como o Papa não esteve pelos ajustes com estes delírios, ela
desiludiu-se e, como se sente impotente, de momento, para nomear um novo Papa,
passou ao jogo do desprezo e do achincalhamento.
No caso de Marcelo Rebelo de Sousa, o problema centra-se no jogo
político nacional. O PR em vez de ter despedido a geringonça ou ter apelado a
uma fronda contra a esquerda no poder, tem tido a sensatez de valorizar o que o
actual governo tem feito, apesar do cumprimento das regras draconianas impostas
por Bruxelas, para estruturar a coesão do todo nacional e evitar confrontações
sociais. Também aqui, à desilusão com o facto do PR não se ter arvorado em
chefe de seita seguiu-se o desprezo e, sempre que possível, o achincalhamento
da figura política do Presidente.
Esta direita, ébria e radicalizada pelas possibilidades trazidas pela
globalização, desdenha os laços comunitários e a necessidade de encontrar
equilíbrios sociais, políticos, económicos, culturais e religiosos. Não por
acaso, revê-se em Trump e nas aventuras que este promete ao mundo. Cultiva o
mantra da incorrecção política, embora o que a crítica do politicamente
correcto pretende destruir é sempre direitos e garantias dos mais fracos.
Esta direita deseja, do fundo do coração, não apenas rupturas sociais
e políticas mas a confrontação que permita esmagar os mais fracos e submetê-los
à dominação. Travestido de desprezo, o ódio é dirigido para aqueles que, como o
Papa ou o actual PR, insistem em estabelecer pontes, encontrar equilíbrios e
não desistem de cultivar a velha virtude aristotélica da mesotês, esse meio termo entre o excesso e a deficiência, o lugar
onde se encontra a justa medida, que
nos permite viver, de forma decente, uns com os outros.
quarta-feira, 21 de dezembro de 2016
Descrições fenomenológicas 15. Duas mulheres
Wassily Kandinsky - Composición VIII (1923)
A mão branca e fina, de longos dedos, apoia-se na mesa. Dela, ergue-se
um braço esguio que suporta um corpo. De pé, assim amparada, uma mulher, ainda
nos verdes anos, deixa que a cabeça se incline para o livro que segura na outra
mão. Lê. Circunspecta, deixa sair dos lábios um murmúrio suave e cadenciado. Um
vestido branco, preso na cintura por um lenço cor de vinho, desliza pelo corpo,
como uma onda de feno batido pelo vento suave da tarde. Dos ombros aos pés,
toda ela se cobre de inocência, enquanto as palavras fluem dos lábios e ecoam
na sala, que a dimensão desmedida faz parecer vazia. O rosto, tão branco, traz
consigo um destino tempestuoso, marchetado por olhos de azul cobalto. O cabelo,
cor de fogo, cai pelas costas, e reflecte-se, no espelho de cristal, em
labaredas esquivas. Ao lado, outra jovem mulher, cabelos negros e uma face
pálida e meditativa, acompanha a leitura. O longo vestido verde seco deixa
perceber uma cintura fina. Abre-se, depois, em três largos folhos rodados, para
sobrevoar rasante o chão, mal deixando perceber os pés. Cobre-a ainda um xaile
cor de salmão, cortado por uma fantasia floral vermelha, onde esconde mãos e
seios. Escuta as palavras da outra, enquanto olha, sonhadora, para o livro.
Estão próximas, tão próximas que o seio da ouvinte roça por vezes o braço despido
da que lê. Nesses instantes, a voz treme levemente e logo retoma a cadência,
enquanto o seio se afasta. A voz canta nos ouvidos e brilha nos olhos de quem
escuta. São poemas, mas a entoação traz com ela a volúpia de um encantamento,
um terno chamamento que faz os dois corpos aproximarem-se, para logo se
afastarem, num jogo regido pelo ritmo dos versos, pela música das palavras,
pelo som que, como um íman oculto, os chama um para o outro, tão puros na
beleza ainda não macerada pela desilusão. Por vezes, a mão poisada na mesa ergue-se,
vira a página e logo volta ao seu lugar. O silêncio é então quebrado e os
versos evolam-se, enquanto o seio oculto no xaile se aproxima do braço despido
e o toca com pudor. O verso treme nos lábios, em disfarçada hesitação, e logo
se recompõe, mais encantatório no chamamento, filtro poderoso que traça
secretos laços na inocência dos corações.
terça-feira, 20 de dezembro de 2016
Wim Wenders, Os Belos Dias de Aranjuez
Há um momento do filme, Os Belos
Dias de Aranjuez, de Wim Wenders, em que um dos protagonistas imita,
histriónico, umas aves a voar em pequenos círculos. A mulher que está com ele
diz-lhe que qualquer acção está fora do acordado. Esta é a chave para compreender
o que faz o realizador alemão. Não há uma história, com intriga, onde a acção,
com as suas múltiplas peripécias, seja o objecto do filme. Ao espectador não é
proposto que acompanhe o desenrolar de uma narrativa, mas que pura e simplesmente
contemple, sem a ânsia de encontrar um fim e desfazer o nó, aquilo que se passa
no ecrã. Suspender a ânsia de um desenlace, eis uma das chaves
do filme. Entregar-se à pura contemplação num mundo habitado pelo desejo de
acção, pelo império do suspense e pelo culto da intriga.
O que se passa no ecrã? Aparentemente, um homem e uma mulher, num belo
dia de Verão, estão situados num lugar paradisíaco e conversam. Melhor, ele
questiona-a sobre a vida dela e ela responde. Dois modelos filosóficos subjazem
ao que se passa. Por um lado, o diálogo platónico, onde uma espécie de Sócrates
do século XXI interroga e guia o interlocutor, aqui uma mulher, na descoberta
da verdade. Contudo, o diálogo é apenas o motivo para um outro registo
filosófico, cujo modelo está em Santo Agostinho. A confissão. Uma confissão
racionalizada e questionante, que, muitas vezes, termina, como vários diálogos
platónicos, numa aporia. No entanto, esta confissão não tem nenhuma finalidade.
Ela é um jogo. O homem e a mulher decidiram fazer um jogo, criaram as regras e
jogam-no. Um jogo onde a reminiscência da mulher, a rememoração da sua vida sexual
num regista de onde foi excluído qualquer erotismo, solda o diálogo e a
confissão.
No entanto, isso é apenas um aspecto lateral do filme. Um escritor é
filmado a escrever. O que se passa no jardim, entre o homem e a mulher, o jogo
dialógico e confessional, é o produto da imaginação concentrada no seu trabalho
produtivo, na sua poiesis. A beleza
do lugar – beleza sublinhada pelo recurso ao 3D – e o inusitado do diálogo são
uma ficção que se fabrica ali aos nossos olhos. O espectador contempla então a
própria criação, como a imaginação trabalha na construção textual e se ampara
na capacidade de produzir imagens. Há assim na obra de Wenders uma espécie de
inversão de papéis. O filme tem por base uma obra homónima do escritor
austríaco Peter Handke. A relação entre escrita e imagem é invertida no filme.
Enquanto na realidade a imagem (consubstanciada na obra cinematográfica) tem a
sua raiz no texto de Handke, no filme é a imagem projectada pelo escritor que,
ao ganhar corpo e cor, se torna a raiz do discurso literário. É esta inversão
que Wenders filma e dá a ver aos espectadores, através de uma fotografia
esplendorosa, de um paraíso recuperado, onde até a maçã está presente entre o
homem e a mulher, num perfect day, na
voz de Lou Reed. O que contemplamos é o labor da própria imaginação, o seu jogo livre, que se inventa e institui regras, que pode destruir, um jogo que mostra a imagem, na sua plasticidade, como o fundamento do literário e da própria racionalidade.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
Cinza de Pedra - 7. Palavras são frutos
Claude Monet - Morning on the Seine (1897)
7. Palavras são frutos
Palavras são
frutos
por colher,
império de rosas
no fogo do
vendaval,
aves de luz
e sangue ao
amanhecer
(Cinza de pedra, 1978)
domingo, 18 de dezembro de 2016
Alma Pátria - 9: Artur Garcia - Sombra de Ninguém
Hoje a alma-pátria com um dos símbolos daquilo que se chamou
nacional-cançonetismo. Esta é uma expressão equívoca. Por um lado, há uma clara
alusão a uma certa colagem ao regime do dr. Salazar. Por outro, a expressão é
irónica na conexão entre o nacionalismo e o cançonetismo. Os cantores, ou os
cançonetistas, assim apelidados nunca se reconheceram enquanto tal. Artur
Garcia é um dos que frequenta o Centro de Preparação de Artistas da Emissora
Nacional e, na década de 60, é um dos grandes animadores de Festivais TV da
canção. Tinha um enorme público tanto na canção romântica como no teatro de
revista. Sombra de Ninguém é uma
canção apresentada ao Festival TV da Canção, de 1969. Um exemplo entre muitos.
Embora ache insuportável este tipo de música, reconheça-se a enorme distância
que vai o chamado nacional-cançonetismo para a música pimba que a
democracia, para gáudio dos órgãos de comunicação social, tornou dominante na cultura popular portuguesa.
sábado, 17 de dezembro de 2016
Livro do Êxodo - 37. Lençóis de linho, a camisa de algodão
Jean François Millet - Desnudo reclinado
Painéis de cobre, lençóis de
linho, a camisa de algodão e os seios a baloiçar ao ritmo das ondas, iam e
vinham, do vento soprado a fechar avenidas, em direcção ao mar fugiam. Das
gárgulas, delas escorriam as últimas águas infectadas por ervas, lixo, vidas em
ocaso, ali tudo se juntava, e na tua face não o fogo mas a fria madrugada no
bolso da primavera. Um projéctil abria feridas na escuridão, desenhos de
luz já húmidos, uma mão erguida, para
além do corpo ia, a chamar, táxi, táxi, e a corrida começava, entre trava e
arranca, um semáforo riscado, pedras na algibeira, o chiar dos pneus na
curvatura do alcatrão, tudo se ilumina no tic-tac do taxímetro, lançado ao
vento mal a bandeirada caiu, com o estrondo de um vidro a partir-se ao fim da
noite.
O terraço tinha desaparecido, o
tempo o levara, nem Antígona nem Ísmene era, quando a ele vinha e se despia na
noite, o corpo a sugar o orvalho, as mãos entre coxas, um toque suave na sombra
do sexo. De longe, a um quarteirão de desejo, um olhar, o meu dizem, sobre ela
avançou, prendeu-a em inquieto recato e cobriu-a de ouro puro e púrpura, por
dentro e por fora. Nesses dias havia sonhos no linho dos lençóis, as pálpebras
fechadas, mas tudo iluminado como nas festas de S. Pedro, fogueiras, rapazes e
raparigas de mãos dadas, alecrim, carrasco, rosmaninho a crepitar ao fogo, como
um painel tudo cobria.
Às vezes descobre-se, nas
traseiras dos prédios, quintais, calcetados estão, sombreados de limoeiros, vasos
de flores, no verão tomadas pela secura, malmequeres, gerânios, uma fila de
aspidistras, três roseiras em arbusto espinhoso, mesas e cadeiras de plástico,
numa grande superfície compradas, ali estão, e ninguém as usa, um campo exíguo sem
astros nocturnos, nem segredo de faunos, nem mulheres de ciência a rezar o
quebranto, apenas casas de betão, sem painéis de cobre, sem parreiras de
uva-morangueira, sulfatadas se ameaçava o míldio, umas casas tristes, falhas de
limos e de espáduas de mulheres, casas invisíveis, se as olho bem, casas como
sarjetas, habitadas de rancor, o fígado desfeito, o barulho da tarde a passar
tão perto. Se foras Antígona, se foras Ísmene, haveria ainda tempo para um
golpe de luz, um tronco a incendiar-se, e o meu coração, embriagado coração,
soletraria o teu nome, agora que deixei os lençóis de linho e a camisa de algodão sobre teus
seios há muito se fechou.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2016
Franz Kafka
A minha crónica no Jornal Torrejano.
Quando li pela primeira vez O
Processo, estava longe de ser capaz de perceber a íntima conexão entre a
estranha narrativa do escritor checo e a natureza do mundo moderno, natureza
essa configurada na empresa e no estado burocráticos. Aliás, não tinha sequer
ouvido falar da Max Weber e da sua visão do estado moderno como uma organização
burocrática. O estado como burocracia, na perspectiva weberiana, não significa
um estado atolado em papéis, como acontece na visão popular do fenómeno
burocrático, mas um estado organizado racionalmente tendo em vista a eficiência
e a eficácia dos processos. Isto é fundamental para compreender a estranha obra
de Franz Kafka.
Romances como O Processo ou O Castelo devolvem-nos uma visão sombria
do aparelho de estado, seja este olhado do ponto de vista do poder judicial,
como no primeiro caso, seja observado do ponto de vista do poder político, como
no segundo. No lugar de uma organização racional, onde as decisões são
plenamente justificadas e nessa justificação não deixam margem para duvidar da
sua racionalidade, o que descobrimos é o puro arbítrio, a irracionalidade dos
procedimentos e, em consequência, o esmagamento do indivíduo, sem que ele
perceba muito bem porquê. Em O Processo,
Joseph K., um bancário, é acusado judicialmente, vê-se envolvido num longo e
mirabolante processo jurídico e é executado, sem nunca saber de que é acusado.
Em O Castelo, o agrimensor K. é
contratado por um conde. Depara-se, porém, com uma teia burocrática tal que vê
continuamente defraudadas as suas expectativas, seja de exercer a profissão,
seja de entrar no castelo.
Nestes dois romances, Kafka mostra a irracionalidade da própria
organização do estado moderno, a irracionalidade que habita o centro da própria
razão. O resultado da pressão da racionalidade política sobre o indivíduo deve,
porém, ser procurado não no destino do bancário ou do agrimensor, mas na novela
A Metamorfose, onde, certa manhã,
Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, acorda transformado numa barata gigante. A
metáfora é poderosa. No mundo da modernidade, na época da racionalidade extrema
e da burocracia político-económica, o destino do ser humano, do animal racional,
é, estranhamente, converter-se num gigantesco insecto. O trabalho de Kafka é
uma interpretação em profundidade da natureza das nossas sociedades. Uma obra a
revisitar constantemente.
quinta-feira, 15 de dezembro de 2016
Descrições fenomenológicas 14. Um recanto da cidade
Sean Scully - Cuarteto (2000)
Não há pássaros. O céu vacila entre o azul claro e um cinza ténue.
Nuvens brancas, farrapos irrequietos arrancados a uma planície de algodão,
deslizam devagar, levados por um vento caprichoso e rodopiante. Alguém exclama:
parece um arquipélago. A voz dilui-se e a luz desce entrecortada pelo troar dos
carros. Ouvem-se buzinas, um concerto furioso e transbordante de ódio, mas logo
se calam para, daí a pouco, novos intérpretes se entregarem a outra exibição.
Olha-se para cima e vêem-se dois prédios, enormes no seu desamparo, que parecem
desenhar um ângulo de 90o. Uma ilusão de óptica de quem espreita de
longe e já não percebe que cada um se instala numa linha diferente e que ambas
correm paralelas em busca de um infinito onde, exauridas pela viagem eterna, se
encontrem e entrelacem para que o ângulo agora entrevisto se torne real. O mais
próximo tem uma cor de terra saibrosa. Enormes e fundas varandas rasgam a
frontaria. Há mesas e cadeiras, mas não se vê ninguém, apenas um cão, numa das
varandas, dorme ao pé de um vaso. Noutra, dois gatos, talvez siameses,
desafiam-se, ameaçam-se, correm um atrás do outro e, é-se levado a imaginar,
olham-se faiscantes, terríveis no repto. Depois, repetem o ciclo e percebe-se
que é apenas um ensaio de uma peça para cuja estreia ainda falta muito. O outro
prédio é um jogo de fachadas vítreas azuis e brancas, um edifício de
escritórios, por certo, de onde a privacidade parece ter sido banida pela
transparência das paredes. Movem-se sombras, fantasmas acorrentados nestas
novas cavernas, onde a luz nunca se apaga. Em cada uma daquelas salas
desenrola-se um drama. Projectam-se negócios, desenham-se peças, advogados
discutem com os seus clientes, uma mulher dorme, a cabeça caída sobre o tampo da
secretária. Por vezes, alguém se chega à parede de vidro e olha para a rua.
Depois o corpo transforma-se em sombra e flutua ao fundo da divisão. Por cima
do prédio saibroso, uma grua estende um braço gigantesco. O cão acorda e ladra.
Os gatos suspendem a corrida de orelhas espetadas. Ouve-se uma sirene e uma
ambulância atravessa a rua e desaparece ao longe. No céu vacilante, não há
pássaros.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2016
Cinza de Pedra - 6. Uma vertigem de lama
George Inness - Approaching Storm (1869)
6. Uma vertigem de lama
Uma vertigem de
lama
e violetas desce
no sopro da noite,
no fogo do vento.
Incêndio a
incêndio,
os campos
despem-se
de erva e luz
na água da
melancolia.
(Cinza de pedra, 1978)
terça-feira, 13 de dezembro de 2016
A retórica da escola inclusiva
Juan Botas - School (1989)
A falta de paciência para coisas idiotas é um sintoma claro que se
entrou na velhice. Como cada vez mais a velhice é a minha condição, tenho cada
vez menos paciência. Por exemplo, nem que fosse santo – e um santo que se presa
tem uma paciência infinita – teria capacidade para perceber a lamechice patética
que se instaurou à volta da expressão escola
inclusiva. Eu não sou contra a escola
inclusiva, sou a favor. O que me põe fora do sério é o entendimento que
corre por aí – infelizmente, até entre gente com responsabilidades e com poder
de decisão – de que a escola inclusiva
não deve ser exigente com os alunos, deve estar preocupada com a auto-estima
destes, fomentá-la e, mais que tudo, não os deve avaliar com provas externas,
pois as crianças ficam infelizes – e lá se vai a auto-estima e o prazer – e isso
destroça os corações benevolentes dos papás.
O grande problema é que às crianças e jovens, quando chegam às
escolas, não lhes falta auto-estima. Têm auto-estima a mais. O que lhes falta
são regras e competência para regular o seu comportamento. Falta-lhes
capacidade para colocarem objectivos a médio e a longo prazo e persegui-los. Quando
a escola começa a exigir regras ou algum ministro se lembra de avaliar o que lá
se faz cai o Carmo e a Trindade. Pobres crianças que ficam infelizes, pois têm
de prestar contas e, para terem êxito, têm de adquirir regras em vez de se
deixarem andar segundo os seus desejos. A visão patética da escola inclusiva acha que tornar os
alunos mais responsáveis e exigir-lhes a
prestação de provas, que não sejam a santificada avaliação contínua, é lançá-los
na exclusão e torná-los infelizes, contrariar o princípio de prazer que deve
orientar a educação.
Não há paciência para isto, para esta retórica patética da escola inclusiva. A escola só será inclusiva se der a todos
aquilo que só alguns – graças à sua situação social – obtêm. O que pagam os
pais que colocam os filhos nos grandes colégios privados (não me refiro aos negócios que há por aí)? É verdade que pagam
relações sociais. Mas pagam muito mais do que isso. Pagam escolas exigentes,
que colocam dificuldades e exigem aos seus alunos que dêem o máximo. Não pagam
para esses colégios se preocuparem com a auto-estima dos meninos, nem os
educarem segundo o princípio de prazer. Pagam para que eles se tornem mais
capazes.
O desafio da escola pública inclusiva é fazer o milagre de dar a todos
os alunos aquilo que o dinheiro compra para alguns. Dar-lhes regras, fomentar a
exigência, pô-los perante provas e obstáculos para se superarem. Ensinar-lhes
que o princípio de realidade se deve sobrepor ao princípio de prazer. O papel da escola pública é apoiar, sem desfalecer, os seus alunos nessa aventura. Isto é
tornar a escola pública verdadeiramente inclusiva. O resto é fomentar a exclusão, a
discriminação e a reprodução das desigualdades através da retórica dos bons sentimentos, que ficam sempre bem a
quem os tem, mas que custarão, no futuro, muito caro às crianças que foram
vítimas de tamanha bondade afectiva. Não há paciência.
segunda-feira, 12 de dezembro de 2016
Alma Pátria - 8: Maria de Lurdes Resende - Alcobaça
Se há cantoras da rádio em Portugal, Maria de Lourdes Resende é
uma delas. Começou a cantar no final dos anos 40 e em 1955 venceu, em Génova,
um concurso com a canção Alcobaça, autoria do maestro Belo Marques e de
Silva Tavares. O interessante desta história é a lentidão do tempo. Nasci em
1956 e tenho a memória clara, portanto uma memória já dos anos 60 e..., de
ouvir passar com insistência, na rádio e na TV, esta canção. A mim
parecia-me eterna, como tudo em Portugal da altura, ou talvez isso fosse apenas
a percepção infantil do tempo, que o confunde com a eternidade. Não menos
curioso é esta canção fazer parte de um enorme grupo de canções toponímicas. Os
artistas nacionais, como se diria na altura, cantavam tudo o que fosse cidade
de província. Desde a Figueira da Foz até Viana do Castelo, não faltavam
letristas para cantar a glória provinciana. E Portugal, onde só há província,
parecia encantado. Fiquemos, hoje, por Alcobaça.
domingo, 11 de dezembro de 2016
Para além da crença ideológica
Jiri Georg Dokoupil - Cabeza teórica (1983)
Há fenómenos sociais que são objectos de grandes paixões. Amores
desmedidos e ódios infinitos. Por exemplo, a religião ou a política. Considere-se
as crenças no além e na imortalidade da alma, no campo da religião, e a divisão
entre direita e esquerda no domínio da política. Discutir sobre a verdade ou
falsidade daquelas crenças religiosas é, na verdade, um exercício ocioso. Não
menos ociosa é discussão sobre se a razão pende para o lado da direita ou da
esquerda, ou a questão de saber se essa divisão faz sentido. Esse tipo de
questionamento inscreve-se na necessidade de tomar posição e, tanto no campo
religioso como no campo político, deriva da ideologia, procede de um olhar
perspectivista e enviesado.
A questão deixa de ser ociosa se, a partir de uma perspectiva
evolucionista, perguntarmos que vantagens competitivas e adaptativas a espécie
encontrou naquele tipo de comportamentos. Com isto, não se pretende negar a
pertinência do questionamento filosófico sobre tais assuntos. Contudo, o
questionamento sobre as vantagens que a espécie encontrou há muito nas crenças
religiosas ou, mais recentemente, na divisão esquerda-direita, por exemplo, é
mais humilde e talvez permita encontrar respostas que nos ajudem a compreender
os fenómenos religiosos e políticos, em vez de se procurarem justificações para
as nossas crenças.
Este tipo de questionamento e as eventuais respostas têm a vantagem de
nada nos dizerem sobre se as crenças no além e na imortalidade da alma são
verdadeiras ou falsas, assim como nada nos dizem sobre a superioridade política
da direita ou da esquerda. Estão para além da ideologia religiosa e política. Podem
ajudar-nos, porém, a compreender por que razão a espécie tem tido necessidade
dessas crenças religiosas e dessas práticas políticas. E isso, não sendo a
panaceia para muitos dos males que se abatem sobre a nossa pobre espécie,
poderia ajudar a enquadrar muitos dos fenómenos que hoje em dia se manifestam
no palco do mundo. Não seria pouco.
sábado, 10 de dezembro de 2016
Descrições fenomenológicas 13. O café
Lucio Muñoz - Collage rojo (1995)
A meio da sala, uma velha mesa de bilhar, de pano verde surrado sobre
uma armação sólida de madeira com incrustações de mármore, deixa correr, ao
sabor da arte dos dois jogadores, três bolas, duas brancas e uma vermelha, que
se atraem e repelem, enquanto, junto a um dos pés da mesa, um gato, sentado,
abre e fecha os olhos ao som das tacadas e das imprecações dos adversários.
Numa das mesas ao fundo, um homem dormita, a cabeça sobre o braço pousado no
tampo. Ao lado, entre cafés, dois casais conspiram. Falam baixo, pequenos
murmúrios atravessados pelo bater das bolas, risos nervosos na densa atmosfera
saturada de fumo. Por vezes, elas entreolham-se e sorriem. Uma nuvem de
condescendência ergue-se dos sorrisos e, por instantes, paira junto ao tecto
para desabar sobre os companheiros. Depois, voltam à conversa sussurrada,
deixando o manto conspirativo crescer. Um empregado atravessa a sala, equilibra
numa mão a bandeja cheia de cafés, pára junto a uma mesa e distribui as chávenas,
com um ar cansado, um rosto de onde se foram apagando, um após outro, todos os
sonhos que um dia, há muitos anos, aquecerem a juventude, como uma promessa que
nunca haveria de cumprir-se. Do outro lado da sala, está uma mulher só. Na
mesa, uma garrafa de sifão com soda. Entre a malha metálica avista-se o vidro e
tudo cintila na luz que se derrama dos três candeeiros arte nova que descem do
tecto para espalhar um oceano luminoso sobre as nuvens de tabaco. Ela recosta a
face, levemente inclinada, sobre a mão e olha para a porta. Um olhar lânguido que
repercute, na sua solidão, como um suspiro de alento. O cabelo, apanhado atrás
da cabeça, deixa ver as orelhas, sem brincos, e um pescoço fruste que nem o
colorido do lenço consegue dar brilho. O nariz afilado, porém, conjuga-se com
os belos dedos que, inesperadamente, terminam as mãos. Alguém atento não
deixará de se interrogar perante a incongruência nascida do contraste entre
beleza das mãos e a rude vulgaridade do pescoço. Os olhos, de um ébano macerado
pela volúpia, rasgam o rosto e deixam entrever o ardor de uma alma que vacila
entre o desejo dos homens e o abandono do mundo. Os minutos passam e ela olha,
perdida, para a porta. Por vezes, leva o copo à boca e sorve lentamente o
conteúdo, para depois o pousar ao de leve no mármore da mesa. Os dois casais
conspirativos saem em silêncio e o gato, cansado dos jogadores de bilhar, salta
para o colo da solitária. A mão afaga, lânguida e voluptuosa, o dorso do animal
e este ronrona, enquanto um outro casal entra e senta-se na mesa ao lado. Dois
cafés, diz ele para o empregado, e acende um cigarro.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2016
Livro do Êxodo - 36. Um deus aquém do umbral
Rafael Alvarado - Apolo (2001)
Quando o cascalho rangia, o bolor
tomava conta das faces e um soldado tocava, pela manhã de Outono, o clarim. Um
deus invisível vinha sentar-se na esplanada, o vento a batia, por vezes alguns
chuviscos, se chuviscava. O imortal olhava as mulheres, pequenas flores de
oliveira, cigarros a arder e as palavras, tão soltas as palavras delas, fluíam,
corrente sem freio, o café a esfriar e a boca, dentes tinha, a abrir-se para o
ar. Se as mulheres fumavam, os soldados, ouvido o clarim, logo se reuniam e,
então, recebiam ordens, uma voz de comando as dava, e logo tratavam de marchar.
Esquerdo, direito, esquerdo, direito, e lá iam, espingarda no dorso, à procura
do luar, a boca cansada de saliva, os pés trementes, ao embater no chão, um
barulho de cascalho sob as solas, e as mulheres, café na boca e cigarro na mão,
os viam passar, condoídas da sorte e da noite que os esperava.
Assim se entreteciam paixões,
dedos orvalho dentro, a respiração entrecortada se o coração, dedilhado com
sabedoria, se inclinava e deixava-se, sob a música marcial dos soldados que
marcham, enredar nas armadilhas trazidas pelas borboletas, agora víboras
poisadas ao sol, à espera de passeantes incautos, à espera da erva seca e de
ramos de rosmaninho para as fogueiras de S. João. Depois, o deus murmurava,
dentro do seu silêncio, ao ouvir o ronronar das mulheres e o troar dos carros
na avenida, o pára e arranca nos semáforos, a chávena de café que se soltava de
mão inábil e, com piruetas de funâmbulo, se despenhava no solo, estilhaçada,
rios de café e cacos de loiça branca, agora suja, pelo chão. O deus então
encolhia os ombros e deixava arrefecer a esperança, enganadora esperança, que
trazia imaculada no imaculado coração.
A todo aquele a quem seu coração
mover, que se chegue à obra para fazê-la, dizia de si para si o deus, perdido
no lado de cá do umbral, como se a harmonia dos mundos fosse a obra de uma
comovida emoção e não fogo de pétalas esfaceladas, presas à moeda caída em
ruína, sem resgate nem intervenção miraculada. Ao longe, os soldados marchavam,
guiados pelo estandarte, iluminados pelo clarim, sedentos de glória, ansiosos
pela morte, em breve chegará. Ou talvez não. Talvez o imortal estivesse cansado
e no peito sentisse a opressão da passagem e assim cedia ao fulgor das imagens,
que homens, razão teriam, faziam nascer na cabeça das crianças, para as
proteger do orvalho ou do voo das águias, do céu vinham para semear lodo e lama
nas ruas, onde os pés não deixavam como marca uma pegada, nem um lampejo de
cardos havia no cascalho, o bolor o esfarelava na treva; não há coração que o
não seja.
quinta-feira, 8 de dezembro de 2016
Cinza de Pedra - 5. Na quietude do fogo
Caspar David Friedrich - Hut under Snow (1827)
5. Na quietude do fogo
Na quietude do
fogo,
uma voz canta
a morosa canção
tecida pela sombra
de um floco de
neve
a pairar na mudez
alvoroçada da
terra.
(Cinza de pedra, 1978)
quarta-feira, 7 de dezembro de 2016
Os burros e os cavalos
Chaim Soutine - The Donkey (1934)
Nem tudo o que nos ajuda a descarregar a bílis permite que pensemos mais fundo e compreendamos melhor. Um bom exemplo disso é o artigo de um dos nossos mais conceituados físicos teóricos, Carlos Fiolhais, sobre a situação política internacional. Parte da expressão latina "Asinus in tegulis" (um burro no telhado), que foi buscar ao Satyricon de Petrónio. Interpreta, a partir desta expressão, a ascensão de Trump à presidência dos EUA e o crescimento, na Europa, dos movimentos políticos em ruptura com as nossas crenças políticas correntes, aquilo a que, por comodidade de comunicação, se pode chamar populismos.
Eu percebo a necessidade de segregar o fel para ajudar a digerir a evolução da situação. Contudo, se o pensar a política com o coração é um passo decisivo para falhar completamente a compreensão do fenómeno, pensá-la com o fígado é, apesar de se fazer a digestão com mais tranquilidade, caminho certo para a desgraça. Imaginemos, então, que os asnos estão a tomar conta das nossas democracias, ainda por cima através de métodos democráticos. Chamar-lhes asnos não me parece que sirva para alguma coisa. Em vez da imprecação ou do ataque pessoal valerá mais colocar uma questão simples e que talvez dê que pensar. A questão, para nos mantermos ainda no âmbito da metáfora equídea, é a seguinte: por que razão partes substanciais dos eleitorados americano e europeu preferem burros a cavalos de corrida?
A própria metáfora talvez nos dê uma pista. Os cavalos, mesmo que não sejam de corrida, andam muito mais depressa que os burros, e a velocidade do galope está a assustar muitos milhões de pessoas. Em vez de culpar os burros, será melhor perguntar às pessoas o que as assusta no passo dos cavalos. Perguntar - se a pergunta não for de retórica - implica disponibilidade para escutar o que as pessoas têm a dizer sobre o passo, o trote e o galope dos nossos super cavalos. O problema está todo aqui. Os burros, porque são lentos, têm tido tempo de escutar o bruaá lamentoso das multidões. Os cavalos, entregues ao desvario do galope, nem dão pela multidão. E esta, cansada de algumas cavalgaduras, entrega-se nas mãos dos burros. Estes agradecem à fulgurante inteligência dos rocinantes.
terça-feira, 6 de dezembro de 2016
Alma Pátria - 7: Dr. José Afonso - Amor de Estudante
Balada do Outono, tanto
quanto julgo saber, é o primeiro disco gravado por José Afonso. Um EP de 1960.
Neste momento inaugural, José Afonso ainda não representa qualquer corte com o
meio musical português. O Fado de Coimbra era um dos esteios culturais de um
certo nacionalismo que suportava a ditadura do professor Salazar, também ele um
estudante e um lente de Coimbra. Existiam vários programas radiofónicos
dedicados ao fado e às guitarradas de Coimbra. Um desses programas era à hora
de almoço. Lembro-me muito bem de vir na circulação (assim se chamava o
autocarro, ou a carreira, que fazia, em Torres Novas, a ligação entre o Colégio
Andrade Corvo e a garagem dos Claras ou o Grémio da Lavoura) e escutar no rádio
o programa dedicado aos fados de Coimbra. Aqui fica um José Afonso ainda dr. e
não revolucionário.
Nota: Graças a uma informação de um leitor - João Jales - descobri que Balada de Outono não é o primeiro disco gravado por José Afonso. A primeira gravação é de 1953, ainda um disco de 78 rpm, que inclui os temas Contos Velhinhos e Incerteza. O meu muito obrigado.
Nota: Graças a uma informação de um leitor - João Jales - descobri que Balada de Outono não é o primeiro disco gravado por José Afonso. A primeira gravação é de 1953, ainda um disco de 78 rpm, que inclui os temas Contos Velhinhos e Incerteza. O meu muito obrigado.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2016
Descrições fenomenológicas 12. A rua
Lucio Muñoz - 27-85 (1985)
A rua era íngreme, a estrada empedrada, ladeada por passeios de terra
batida. Ouvia-se o som dos cascos de um cavalo a bater na pedra. O cavaleiro
endireitava-se, sem esforço, na sela e conduzia o animal com bonomia. Vestia um
fato de montar que a escassa luz da iluminação pública mostrava como se fosse
preto. Subia em direcção a uma curva apertada, que, depois de outra tão
apertada mas de sentido contrário, levaria ao adro da igreja. A porta lateral
desta, guarnecida por um pórtico triangular de granito, estava aberta, deixando
coar uma luz amarelada vinda do interior. De ambos os lados, candeeiros de vidro
lançavam sobre a noite um clarão breve e hesitante. Um padre de batina e
barrete subia a rua, impulsionado pelo arquejo do coração. Às vezes, parava,
parecia concentrar-se e reunir todas as forças para continuar. Tossia e
murmurava, mas não se distinguia se era uma ladainha ou uma imprecação. Três
mulheres, por volta dos quarenta anos, vestidas de negro, iam mais à frente.
Conversavam em surdina, como se estivessem já dentro da igreja. Esta era
antecedida pela casa paroquial, de janelas gradeadas no rés-do-chão e uma porta
estreita por onde entrou o sacerdote. O luar débil era recortado pelo
campanário. Dois sinos suspendiam-se ali. Quando o cavaleiro desapareceu na
última curva, ouviu-se o bater das dez horas. As mulheres pararam,
entreolharam-se. Pareciam hesitar, à última badalada, entraram na igreja. A rua
estava agora deserta, tomada de assalto por um vento frio e um cheiro a pedra
húmida, que dobravam o coração e o inundavam de uma estranha angústia nascida
da súbita solidão. Acabara de chegar à terra distante do passado.
domingo, 4 de dezembro de 2016
Jorge de Sena
Victor Couto - Jorge de Sena
A minha crónica no Jornal Torrejano.
A vocação literária, talvez toda e qualquer vocação, possui sempre uma
dimensão misteriosa, a qual está muito para além das aparências quotidianas.
Jorge de Sena não foge a esta regra. É um dos intelectuais portugueses mais
importantes do século XX, um dos escritores mais polifacetados e interessantes
dessa época. O curioso é que se tornou escritor apesar da sua formação estar
muito longe daquela que nos leva a pensar que a escrita é o caminho natural a
seguir durante uma vida. Sena começa por ser um candidato frustrado a oficial
da Marinha, tendo frequentado com insucesso a Escola Naval. Acabou por se
licenciar em engenharia civil, que chegou a exercer.
A obra literária de Sena é ampla e complexa. Possui uma sólida obra
poética, mas também escreveu ficção, drama e ensaio, sendo este centrado na
literatura e, em especial, na poesia. O que é notável em Sena é a qualidade
geral da sua obra, a capacidade de rasgar caminhos com uma clara marca pessoal
nas diversas áreas que o interessaram. Uma obra vasta e complexa para alguém
que morreu, em 1978, ainda antes de completar os 59 anos. Uma obra onde
perpassam, também, as vicissitudes da vida em Portugal, tanto na época do
salazarismo como na dos primeiros tempos da democracia portuguesa. Na verdade,
Sena exilou-se em 1959, primeiro no Brasil e depois nos EUA, e nunca voltou a
viver em Portugal, com cuja sociedade manteve uma tensa relação de amor-ódio.
O meu primeiro contacto com Jorge de Sena foi através da poesia. Foi um
dos poetas que, juntamente com Eugénio de Andrade, mais li nos verdes anos. O
que mais me marcou, porém, foi o seu romance Sinais de Fogo, uma obra inacabada e publicada postumamente em
1979. A acção desenrola-se entre Lisboa e a Figueira da Foz, tendo por pano de
fundo a guerra civil de Espanha (1936-1939). É um extraordinário romance de
formação, onde a transição para a idade adulta se tece sobre os efeitos de um
dos conflitos mais negros do século XX. Apesar de inacabado, é, para mim, o
romance português do século XX mais importante. Agora que caminhamos para o
quadragésimo aniversário da morte de Sena, esperemos que isso não signifique a
entrada na obscuridade de uma grande obra, nomeadamente na poesia e na ficção. Sena pertence por direito próprio ao
cânone da nossa literatura.
sábado, 3 de dezembro de 2016
Cinza de Pedra - 4. No silêncio do musgo
Christian Morgenstern - Árvores junto à água (1832)
4. No silêncio do musgo
No silêncio do
musgo,
perfumes de água
e restolho de
estrelas.
As aves de
Setembro
declinam então
a cinza de tuas
mãos.
(Cinza de pedra, 1978)
sexta-feira, 2 de dezembro de 2016
A espera
A minha crónica em A Barca.
Vivemos em tempo de interlúdio. O país – governado à esquerda ou à
direita – não possui os mecanismos necessários para a resolução dos problemas
que atravessam a economia portuguesa. Esses mecanismos foram hipotecados pela
adesão ao Euro. Uma das soluções seria a saída da moeda única, mas essa é uma
aventura cujas consequências são imprevisíveis. Na verdade, todas as forças
políticas estão convictas de que fora do espartilho do Euro seria mais fácil
pôr a economia a crescer, mas nenhuma está disposta a arriscar uma saída
unilateral e a arcar com o ónus de um possível apocalipse social.
Para além da retórica política e dos floreados parlamentares, toda a
gente está à espera. Espera que o Euro se reforme – uma possibilidade improvável
tendo em conta a posição alemã – ou que, por um qualquer acidente político,
acabe. Até lá tratam-se de questões de mercearia, que foi aquilo que o governo
anterior fez, roubando no peso, e é aquilo que o actual está a fazer, sendo
generoso com os fregueses. Esta situação de impasse não deixa, porém, de ser
perigosa. Independentemente da orientação política do governo, o que ela nos
mostra é a fragilidade de Portugal.
A Europa e o Euro foram a saída encontrada por um país periférico e de
escassos recursos. Agora descobrimos que estamos presos e que pela frente só
parece haver duas possibilidades: ou esta dependência passiva sem fim à vista
do Euro, que nos torna impotentes, ou esperar a implosão do projecto europeu, o
que nos libertaria das grilhetas da moeda única, mas que nos confrontaria com o
desconhecido. Na verdade, Portugal não está preparado nem para continuar no
Euro nem para enfrentar a implosão do Euro e da própria Europa. Portugal
espera. Espera porque não sabe o que fazer. E esta é a pior das atitudes que um
país pode ter.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2016
Aplaudir ou não aplaudir
Deveria o Bloco de Esquerda levantar-se e aplaudir o discurso do Rei
de Espanha? Aqui estou de acordo com o ministro Santos Silva: Era
o que faltava estarmos todos obrigados a aplaudir. Portanto, toda a
retórica condenatória do BE é, no mínimo, exagerada, mas compreensível no
âmbito da luta político-partidária. Sendo em absoluto legítima, a decisão do
BE parece-me, no entanto, absurda. Absurda porque funciona contra o próprio
BE. Porquê? Em primeiro lugar, porque é
uma atitude que é compreendida apenas pelo núcleo de eleitores mais fiéis do
BE, mas não é entendida pelos eleitores potenciais. Estes eleitores potenciais,
sem uma identidade política clara, têm tendência a não gostar de atitudes que
lhes pareçam falta de educação e de cortesia (coisa que nunca se deve confundir,
em política, com subserviência) e acabam por penalizá-las, sentindo que quem as
comete não tem maturidade política suficiente para merecer o voto. Num regime
de concorrência política, o reconhecimento pelos eleitores é essencial. Agir contra esse reconhecimento é irracional.
Em segundo lugar, e esta é a razão pela qual escrevo este post, é absurda do ponto de vista dos interesses
mais gerais da esquerda e do próprio país. A pergunta que se deve colocar é a
seguinte: uma atitude como a do BE – ou mesmo a do PCP, embora esta seja mais
madura e sensata – ajuda a alargar ou a diminuir os aliados de Portugal perante o diktat de Bruxelas, das regras do
Euro e da Alemanha? É claro que a atitude adoptada pelo BE, mais uma vez, vai
contra os próprios desígnios da organização, já que, se fosse adoptada por
todos os partidos portugueses, isolaria o país e eliminaria, num futuro mais ou
menos próximo, aliados que serão preciosos perante forças que se podem tornar
muito ameaçadoras para Portugal e para os portugueses, principalmente, para
aqueles que fazem parte do universo eleitoral das esquerdas. Não me parece uma conduta racional afrontar possíveis aliados.
Perguntará o leitor: sendo o BE uma organização republicana, antimonárquica,
aplaudir o discurso do Rei de Espanha, não seria uma quebra dos princípios? A
resposta parece-me clara: não. A monarquia espanhola é um problema dos
espanhóis. Por outro lado, desde Juan Carlos que ela tem sido um garante das
instituições democráticas, e Filipe VI, até hoje, não evidenciou qualquer tique
autoritário. A pureza principial e ideológica não seria manchada no que quer que fosse. O aplauso dos republicanos portugueses ao monarca
castelhano é um gesto político de respeito institucional e de alargamento dos
potenciais aliados. Em todos os actos políticos há que saber hierarquizar os
objectivos, coisa que, para os lados do BE, nem sempre é muito clara. E digo
isto apesar de ter um grande prazer pelo
facto de Portugal ter o 1.º de Dezembro e o 5 de Outubro como datas políticas essenciais para comemorar.
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