Há um momento do filme, Os Belos
Dias de Aranjuez, de Wim Wenders, em que um dos protagonistas imita,
histriónico, umas aves a voar em pequenos círculos. A mulher que está com ele
diz-lhe que qualquer acção está fora do acordado. Esta é a chave para compreender
o que faz o realizador alemão. Não há uma história, com intriga, onde a acção,
com as suas múltiplas peripécias, seja o objecto do filme. Ao espectador não é
proposto que acompanhe o desenrolar de uma narrativa, mas que pura e simplesmente
contemple, sem a ânsia de encontrar um fim e desfazer o nó, aquilo que se passa
no ecrã. Suspender a ânsia de um desenlace, eis uma das chaves
do filme. Entregar-se à pura contemplação num mundo habitado pelo desejo de
acção, pelo império do suspense e pelo culto da intriga.
O que se passa no ecrã? Aparentemente, um homem e uma mulher, num belo
dia de Verão, estão situados num lugar paradisíaco e conversam. Melhor, ele
questiona-a sobre a vida dela e ela responde. Dois modelos filosóficos subjazem
ao que se passa. Por um lado, o diálogo platónico, onde uma espécie de Sócrates
do século XXI interroga e guia o interlocutor, aqui uma mulher, na descoberta
da verdade. Contudo, o diálogo é apenas o motivo para um outro registo
filosófico, cujo modelo está em Santo Agostinho. A confissão. Uma confissão
racionalizada e questionante, que, muitas vezes, termina, como vários diálogos
platónicos, numa aporia. No entanto, esta confissão não tem nenhuma finalidade.
Ela é um jogo. O homem e a mulher decidiram fazer um jogo, criaram as regras e
jogam-no. Um jogo onde a reminiscência da mulher, a rememoração da sua vida sexual
num regista de onde foi excluído qualquer erotismo, solda o diálogo e a
confissão.
No entanto, isso é apenas um aspecto lateral do filme. Um escritor é
filmado a escrever. O que se passa no jardim, entre o homem e a mulher, o jogo
dialógico e confessional, é o produto da imaginação concentrada no seu trabalho
produtivo, na sua poiesis. A beleza
do lugar – beleza sublinhada pelo recurso ao 3D – e o inusitado do diálogo são
uma ficção que se fabrica ali aos nossos olhos. O espectador contempla então a
própria criação, como a imaginação trabalha na construção textual e se ampara
na capacidade de produzir imagens. Há assim na obra de Wenders uma espécie de
inversão de papéis. O filme tem por base uma obra homónima do escritor
austríaco Peter Handke. A relação entre escrita e imagem é invertida no filme.
Enquanto na realidade a imagem (consubstanciada na obra cinematográfica) tem a
sua raiz no texto de Handke, no filme é a imagem projectada pelo escritor que,
ao ganhar corpo e cor, se torna a raiz do discurso literário. É esta inversão
que Wenders filma e dá a ver aos espectadores, através de uma fotografia
esplendorosa, de um paraíso recuperado, onde até a maçã está presente entre o
homem e a mulher, num perfect day, na
voz de Lou Reed. O que contemplamos é o labor da própria imaginação, o seu jogo livre, que se inventa e institui regras, que pode destruir, um jogo que mostra a imagem, na sua plasticidade, como o fundamento do literário e da própria racionalidade.
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