Jean François Millet - Desnudo reclinado
Painéis de cobre, lençóis de
linho, a camisa de algodão e os seios a baloiçar ao ritmo das ondas, iam e
vinham, do vento soprado a fechar avenidas, em direcção ao mar fugiam. Das
gárgulas, delas escorriam as últimas águas infectadas por ervas, lixo, vidas em
ocaso, ali tudo se juntava, e na tua face não o fogo mas a fria madrugada no
bolso da primavera. Um projéctil abria feridas na escuridão, desenhos de
luz já húmidos, uma mão erguida, para
além do corpo ia, a chamar, táxi, táxi, e a corrida começava, entre trava e
arranca, um semáforo riscado, pedras na algibeira, o chiar dos pneus na
curvatura do alcatrão, tudo se ilumina no tic-tac do taxímetro, lançado ao
vento mal a bandeirada caiu, com o estrondo de um vidro a partir-se ao fim da
noite.
O terraço tinha desaparecido, o
tempo o levara, nem Antígona nem Ísmene era, quando a ele vinha e se despia na
noite, o corpo a sugar o orvalho, as mãos entre coxas, um toque suave na sombra
do sexo. De longe, a um quarteirão de desejo, um olhar, o meu dizem, sobre ela
avançou, prendeu-a em inquieto recato e cobriu-a de ouro puro e púrpura, por
dentro e por fora. Nesses dias havia sonhos no linho dos lençóis, as pálpebras
fechadas, mas tudo iluminado como nas festas de S. Pedro, fogueiras, rapazes e
raparigas de mãos dadas, alecrim, carrasco, rosmaninho a crepitar ao fogo, como
um painel tudo cobria.
Às vezes descobre-se, nas
traseiras dos prédios, quintais, calcetados estão, sombreados de limoeiros, vasos
de flores, no verão tomadas pela secura, malmequeres, gerânios, uma fila de
aspidistras, três roseiras em arbusto espinhoso, mesas e cadeiras de plástico,
numa grande superfície compradas, ali estão, e ninguém as usa, um campo exíguo sem
astros nocturnos, nem segredo de faunos, nem mulheres de ciência a rezar o
quebranto, apenas casas de betão, sem painéis de cobre, sem parreiras de
uva-morangueira, sulfatadas se ameaçava o míldio, umas casas tristes, falhas de
limos e de espáduas de mulheres, casas invisíveis, se as olho bem, casas como
sarjetas, habitadas de rancor, o fígado desfeito, o barulho da tarde a passar
tão perto. Se foras Antígona, se foras Ísmene, haveria ainda tempo para um
golpe de luz, um tronco a incendiar-se, e o meu coração, embriagado coração,
soletraria o teu nome, agora que deixei os lençóis de linho e a camisa de algodão sobre teus
seios há muito se fechou.
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