sábado, 17 de dezembro de 2016

Livro do Êxodo - 37. Lençóis de linho, a camisa de algodão

Jean François Millet - Desnudo reclinado

Painéis de cobre, lençóis de linho, a camisa de algodão e os seios a baloiçar ao ritmo das ondas, iam e vinham, do vento soprado a fechar avenidas, em direcção ao mar fugiam. Das gárgulas, delas escorriam as últimas águas infectadas por ervas, lixo, vidas em ocaso, ali tudo se juntava, e na tua face não o fogo mas a fria madrugada no bolso da primavera. Um projéctil abria feridas na escuridão, desenhos de luz  já húmidos, uma mão erguida, para além do corpo ia, a chamar, táxi, táxi, e a corrida começava, entre trava e arranca, um semáforo riscado, pedras na algibeira, o chiar dos pneus na curvatura do alcatrão, tudo se ilumina no tic-tac do taxímetro, lançado ao vento mal a bandeirada caiu, com o estrondo de um vidro a partir-se ao fim da noite.

O terraço tinha desaparecido, o tempo o levara, nem Antígona nem Ísmene era, quando a ele vinha e se despia na noite, o corpo a sugar o orvalho, as mãos entre coxas, um toque suave na sombra do sexo. De longe, a um quarteirão de desejo, um olhar, o meu dizem, sobre ela avançou, prendeu-a em inquieto recato e cobriu-a de ouro puro e púrpura, por dentro e por fora. Nesses dias havia sonhos no linho dos lençóis, as pálpebras fechadas, mas tudo iluminado como nas festas de S. Pedro, fogueiras, rapazes e raparigas de mãos dadas, alecrim, carrasco, rosmaninho a crepitar ao fogo, como um painel tudo cobria.

Às vezes descobre-se, nas traseiras dos prédios, quintais, calcetados estão, sombreados de limoeiros, vasos de flores, no verão tomadas pela secura, malmequeres, gerânios, uma fila de aspidistras, três roseiras em arbusto espinhoso, mesas e cadeiras de plástico, numa grande superfície compradas, ali estão, e ninguém as usa, um campo exíguo sem astros nocturnos, nem segredo de faunos, nem mulheres de ciência a rezar o quebranto, apenas casas de betão, sem painéis de cobre, sem parreiras de uva-morangueira, sulfatadas se ameaçava o míldio, umas casas tristes, falhas de limos e de espáduas de mulheres, casas invisíveis, se as olho bem, casas como sarjetas, habitadas de rancor, o fígado desfeito, o barulho da tarde a passar tão perto. Se foras Antígona, se foras Ísmene, haveria ainda tempo para um golpe de luz, um tronco a incendiar-se, e o meu coração, embriagado coração, soletraria o teu nome, agora que deixei os lençóis de linho e a camisa de algodão sobre teus seios há muito se fechou.

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