Rafael Alvarado - Apolo (2001)
Quando o cascalho rangia, o bolor
tomava conta das faces e um soldado tocava, pela manhã de Outono, o clarim. Um
deus invisível vinha sentar-se na esplanada, o vento a batia, por vezes alguns
chuviscos, se chuviscava. O imortal olhava as mulheres, pequenas flores de
oliveira, cigarros a arder e as palavras, tão soltas as palavras delas, fluíam,
corrente sem freio, o café a esfriar e a boca, dentes tinha, a abrir-se para o
ar. Se as mulheres fumavam, os soldados, ouvido o clarim, logo se reuniam e,
então, recebiam ordens, uma voz de comando as dava, e logo tratavam de marchar.
Esquerdo, direito, esquerdo, direito, e lá iam, espingarda no dorso, à procura
do luar, a boca cansada de saliva, os pés trementes, ao embater no chão, um
barulho de cascalho sob as solas, e as mulheres, café na boca e cigarro na mão,
os viam passar, condoídas da sorte e da noite que os esperava.
Assim se entreteciam paixões,
dedos orvalho dentro, a respiração entrecortada se o coração, dedilhado com
sabedoria, se inclinava e deixava-se, sob a música marcial dos soldados que
marcham, enredar nas armadilhas trazidas pelas borboletas, agora víboras
poisadas ao sol, à espera de passeantes incautos, à espera da erva seca e de
ramos de rosmaninho para as fogueiras de S. João. Depois, o deus murmurava,
dentro do seu silêncio, ao ouvir o ronronar das mulheres e o troar dos carros
na avenida, o pára e arranca nos semáforos, a chávena de café que se soltava de
mão inábil e, com piruetas de funâmbulo, se despenhava no solo, estilhaçada,
rios de café e cacos de loiça branca, agora suja, pelo chão. O deus então
encolhia os ombros e deixava arrefecer a esperança, enganadora esperança, que
trazia imaculada no imaculado coração.
A todo aquele a quem seu coração
mover, que se chegue à obra para fazê-la, dizia de si para si o deus, perdido
no lado de cá do umbral, como se a harmonia dos mundos fosse a obra de uma
comovida emoção e não fogo de pétalas esfaceladas, presas à moeda caída em
ruína, sem resgate nem intervenção miraculada. Ao longe, os soldados marchavam,
guiados pelo estandarte, iluminados pelo clarim, sedentos de glória, ansiosos
pela morte, em breve chegará. Ou talvez não. Talvez o imortal estivesse cansado
e no peito sentisse a opressão da passagem e assim cedia ao fulgor das imagens,
que homens, razão teriam, faziam nascer na cabeça das crianças, para as
proteger do orvalho ou do voo das águias, do céu vinham para semear lodo e lama
nas ruas, onde os pés não deixavam como marca uma pegada, nem um lampejo de
cardos havia no cascalho, o bolor o esfarelava na treva; não há coração que o
não seja.
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