Chaim Soutine - The Donkey (1934)
Nem tudo o que nos ajuda a descarregar a bílis permite que pensemos mais fundo e compreendamos melhor. Um bom exemplo disso é o artigo de um dos nossos mais conceituados físicos teóricos, Carlos Fiolhais, sobre a situação política internacional. Parte da expressão latina "Asinus in tegulis" (um burro no telhado), que foi buscar ao Satyricon de Petrónio. Interpreta, a partir desta expressão, a ascensão de Trump à presidência dos EUA e o crescimento, na Europa, dos movimentos políticos em ruptura com as nossas crenças políticas correntes, aquilo a que, por comodidade de comunicação, se pode chamar populismos.
Eu percebo a necessidade de segregar o fel para ajudar a digerir a evolução da situação. Contudo, se o pensar a política com o coração é um passo decisivo para falhar completamente a compreensão do fenómeno, pensá-la com o fígado é, apesar de se fazer a digestão com mais tranquilidade, caminho certo para a desgraça. Imaginemos, então, que os asnos estão a tomar conta das nossas democracias, ainda por cima através de métodos democráticos. Chamar-lhes asnos não me parece que sirva para alguma coisa. Em vez da imprecação ou do ataque pessoal valerá mais colocar uma questão simples e que talvez dê que pensar. A questão, para nos mantermos ainda no âmbito da metáfora equídea, é a seguinte: por que razão partes substanciais dos eleitorados americano e europeu preferem burros a cavalos de corrida?
A própria metáfora talvez nos dê uma pista. Os cavalos, mesmo que não sejam de corrida, andam muito mais depressa que os burros, e a velocidade do galope está a assustar muitos milhões de pessoas. Em vez de culpar os burros, será melhor perguntar às pessoas o que as assusta no passo dos cavalos. Perguntar - se a pergunta não for de retórica - implica disponibilidade para escutar o que as pessoas têm a dizer sobre o passo, o trote e o galope dos nossos super cavalos. O problema está todo aqui. Os burros, porque são lentos, têm tido tempo de escutar o bruaá lamentoso das multidões. Os cavalos, entregues ao desvario do galope, nem dão pela multidão. E esta, cansada de algumas cavalgaduras, entrega-se nas mãos dos burros. Estes agradecem à fulgurante inteligência dos rocinantes.
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