A minha crónica de Natal em A Barca.
É Lucas, o evangelista, que nos conta a história do nascimento de
Jesus no presépio. A palavra, na sua forma latina (praesaepe e praesēpĭu(m)),
significa estábulo ou manjedoura. Aparentemente, na economia da mensagem cristã
esta informação sobre o local de nascimento de Cristo era dispensável. Contudo,
ela veio a revelar-se como uma atracção poderosa para a imaginação. E o
espantoso é que o poder atractivo não deriva daquilo que, por norma, empolga os
homens: o brilho, o esplendor, a riqueza, o glamour,
o poder. Provém do seu contrário, da carência total, da completa ausência de
poder, da mais pura pobreza. Cristo, o Deus feito homem, nasce no
desapossamento e no abandono.
Que significado civilizacional e cultural tem este facto? Ele
contraria a tendência natural dos homens para aquilo que distingue e dá
segurança. O que o homem, por natureza, admira não é a pobreza, a falta de
poder, a ausência de distinção. Olhamos para nós e para o que se passa à nossa
volta e percebemos que a nossa índole pede riqueza, brilho, dominação, fama,
glória. Muitas religiões são construídas de acordo com esse desiderato. O
cristianismo, mesmo que os cristãos sejam pouco exemplares, propõe o contrário.
Mais: faz com que o divino se revele no desprezível. Na óptica do que nós,
homens, somos, o presépio é um absurdo. E é tão absurdo que não se descansou
enquanto não foi colonizado pelo seu contrário. Basta ver as épocas natalícias
a que estamos sujeitos.
Não é apenas este absurdo que é interessante na cultura de raiz
cristã. É também espantoso que, apesar dos homens, o tema da pobreza e do
desapossamento tenho feito caminho nas sociedades ocidentais. A atenção que o
actual Papa, para indignação de tantos, tem dado aos pobres e à condição de
pobreza é um dos sinais. Outro sinal é a emergência, a partir do trágico da
Revolução Industrial, da preocupação política com os que nada têm, surgindo
organizações políticas que os representam e os tomam como modelo para a
transformação das sociedades. Sem a estranheza do presépio, um Deus que nasce
no abandono e na carência, a permear a cultura, isso seria impossível. O
cristianismo funda-se em dois grandes escândalos: a morte do Cristo na Cruz, o
mistério da Páscoa, e o seu nascimento num estábulo, o mistério de Natal. Este
é o tempo em que, apesar de tudo, o presépio trabalha sobre a nossa imaginação.
E isso continua a ser um verdadeiro mistério de Natal.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.