quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A sociedade da inveja

Giotto di Bondone - A inveja (1302-1305)

As sociedades liberais fundam-se no egoísmo dos indivíduos que procuram maximizar o prazer e diminuir a dor. Esta maximização do prazer conduz à busca do lucro na actividade económica, a qual, segundo a racionalidade própria dessa actividade, deve ser gerida de forma eficaz e eficiente. Ora o impacto desta ideologia sobre o corpo social não é idêntico em todo lado. Em algumas sociedades europeias, nomeadamente do norte e do centro, sob uma consciência ética proveniente do protestantismo, há um certo equilíbrio social e uma atitude de contenção geral que está presente em todos, desde os mais ricos aos menos afortunados. Um certo pudor e uma clara consciência social desaconselha a exibição da riqueza e, mesmo, uma desigualdade escandalosa. Isso permite o bom funcionamento das sociedades.

Noutras sociedades, como a nossa, o impacto ideológico do liberalismo é um factor decisivo na formação e solidificação de uma sociedade da inveja. Sejam os gestores que acumulam cargos executivos em múltiplas empresas (um deles é executivo em 73 empresas), sejam contratações como esta (a da sobrinha neta de um dos figurantes do regime e apoiante do governo actual), seja a compra do Pavilhão Atlântico por um grupo onde é figura preponderante um genro do actual Presidente da República, sejam os jovens especialistas contratados pelo actual governo (a exemplo dos anteriores), sejam os inúmeros casos de todas as espécies, tudo isso gera, numa sociedade tolhida e amarrada à pobreza, um sentimento de inveja. Basta ler as reacções nos comentários nos jornais online, nos blogues e no facebook para compreender que a inveja é um dos sentimentos dominantes da nossa vida social.

Esta inveja social, porém, não é um puro pecado capital derivado da maldade dos invejosos. Ela nasce do sentimento de impotência da maioria e do despudor com que uma minoria ostenta o seu poder e a sua capacidade, não se percebendo, socialmente, a razão desse poder e dessa capacidade. A inveja nasce de uma experiência, que talvez não seja meramente imaginária, que diz que o poder de uns nasce de uma situação de profunda injustiça e da sonegação efectiva, embora legal, dos direitos da grande maioria. Esta inveja social corrói a nação e, sem que as elites o percebam, está a gerar a ruptura do contrato social pelo qual queremos viver uns com os outros. A inveja não é apenas um problema teológico. É um problema político pois põe em causa o funcionamento e a persistência da comunidade. E a questão não está apenas, nem por sombras, na atitude dos invejosos, mas naqueles que, pelo seu comportamento, são geradores e disseminadores desse sentimento por todo o tecido social.

8 comentários:

  1. Os portugueses são invejosos desde dos tempos da Lusitânia, mas parece que quem lhes induziu o vírus foi o romano que terá assassinado o Viriato.

    Creio que faz parte da "nossa" idiossincrasía, provavelmente, porque formamos um país que tem sido mais padrasto do que pai e, mesmo nas escassas ocasiões em que a relação podia ter sido invertida, preferiu sempre "manter-nos" nessa situação de enteado. Ontem como hoje bastou-lhe tratar bem meia dúzia de filhos...da mãe.

    Além do mais, tirando a inveja e a preguiça, que outros dos cinco pecados "podemos nós" ter?...

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    1. De facto, caro JRD, até nos pecados mortais somos obrigados, há muito, a um exercício de austeridade. Se os sete pecados capitais fossem oito, como defendia Evagrius Ponticus, tínhamos direito à vanglória, que é como quem diz à gabarolice. Mas até nisso o destino foi cruel.

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  2. Acha que é ter inveja o ficar-se indignado por casos como os que referiu?

    Surpreende-me a sua análise de hoje. É que uma coisa é o ressentimento injustificado face ao mérito e ao reconhecimento do mérito alheio e outra, bem diferente, é um certa perplexidade ou indignação face a casos como os citados.

    Ou estarei a perceber mal o que escreveu?

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    1. Ao meu texto está subjacente a deficiente assimilação do liberalismo em países como Portugal. Enquanto nos países nórdicos e do centro da Europa há uma forte consciência social e um certo pudor, em Portugal não. As elites, pela sua voracidade e pelos privilégios injustificados de que gozam, geram um sentimento de inveja. Eu sei que há muitas pessoas, felizmente, que se indignam com a injustiça e a sua atitude tem um fundamento moral sólido. O seu desejo é de ver eliminado o privilégio. Julgo, porém, que a inveja é um sentimento dominante (aliás, esse é um dos traços dominantes descrito pelo José Gil nas suas reflexões sobre Portugal). Para muita gente, o grande problema não está no privilégio existir, mas no facto de estar excluída dele. Caso não estivesse, não se indignaria. Não sei, obviamente, ponderar a percentagem dos que sentem a imoralidade e dos que sentem apenas inveja. Temo que esta seja muito grande. Sou tão desconfiado com a natureza humana quanto o Kant da filosofia moral, além de não ter propensão para endeusar o povo e ver nele um repositório de virtudes. Haverá de tudo, mas... A leitura (daquilo que está implícito neles) dos comentário (e eles são sempre anónimos) nos jornais online e blogues é sempre um exercício revelador...

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  3. Meu Caro,

    Não acha que por cá já se cultiva a vanglória?
    É uma característica muito comum ao português, principalmente, ao "nórdico" passe a ironia (risos).
    Digo isto sem regionalismos bacocos, só que é esta a maneira como interpreto alguns comportamentos localizados na cena nacional.
    Mas o mal é geral e, se me permite, sem querer abusar de links para o bth, aqui vai o que penso:

    http://bonstemposhein-jrd.blogspot.pt/2011/04/o-cidadao-xxxiii.html

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    1. Claro que acho, e muito, apenas não faz parte da lista oficial dos pecados capitais. Abraço.

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  4. Eduardo Lourenço refere a Inveja como um motor de dinamismo social.
    Eu sustento as minhas reservas, a indignação perante a iniquidade não é a inveja, conheço várias pessoas de direita que resumem toda a luta de classes a processos de inveja primária, não estou de acordo, mas se repararmos na forma como as chamadas elites do poder se comportam, os sinais de riqueza que exibem, talvez sejamos obrigados a ver as coisas de forma diferente.
    Por mim, "só me inveja de quem bebe a água em todas as fontes".
    Ainda há poucos dias uma cigana, em pleno Marquês de Pombal, me disse que eu era muito invejada, sorri-lhe, assegurando-lhe que nada possuía que pudesse ser invejado, mas ela continuo garantindo que isso eles não sabiam.

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    1. O Eduardo Lourenço tem uma certa razão, julgo. Mas não vejo a inveja como o motor da luta de classes (os conflitos de classe nascem do sentimento de injustiça), mas do aquecimento da economia. A publicidade explora muito esse sentimento para vender determinado produto.

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