René Magritte - Time Transfixed (1939)
[Recuperação de um post, de 18 de Abril de 2007, do meu antigo blogue averomundo]
Leio avidamente a obra de W. G. Sebald. Pergunto-me, muitas vezes, o
que nos leva a preferir a obra de um escritor à de outro. A resposta não está
na mestria da escrita, ou pelo menos não está aí a sua verdade essencial. Há
escritores magistrais cuja obra pouco nos diz. Julgo, embora sem uma evidência
a corroborar o juízo, que a preferência radica numa espécie de reconhecimento
de “si-mesmo” nas páginas dessa obra.
Não se trata de uma identificação com o escritor. Sei muito pouco dos
escritores de que gosto. Evito as biografias. De Sebald, por exemplo, tirando a
sua nacionalidade e o facto de ter morrido de acidente, nada sei. E, no
entanto, pressinto que aquela escrita fala de mim ou, melhor, fala de alguma
coisa, indefinível e quase obscura, que me toca, como se me dissesse respeito.
É como se entre a obra e o leitor existisse uma comunhão.
Peregrino por “Vertigens. Impressões”, o último livro de Sebald
publicado em Portugal. Na página 40, de forma inopinada, surge o seguinte
texto: “No regresso fomos dar à Albrechtstrasse e Olga não resistiu à tentação
de entrar na escola onde tinha andado em criança. Numa das salas de aula,
precisamente aquela onde se sentava no princípio dos anos 50, a mesma
professora continuava a ensinar, quase trinta anos depois, exortava, com a
mesma voz, as crianças para que continuassem a trabalhar e não conversassem,
tal como antigamente.” Ao ler estas palavras senti um desconforto dentro de
mim, desconforto esse motivado, descobri-o logo de seguida, por uma experiência
semelhante vivida há alguns anos.
Talvez há uns 8 ou 9 anos, por altura das Festas do Espírito Santo, em
Meia Via, paro o carro, por um qualquer motivo que não importa, perto da escola
primária. Fiz aí a primeira e a segunda classes, antes de nos termos instalado
em Torres Novas. Saio e olho o desalentado bairro que nasceu, como um penhor
dos tempos democráticos, diante da escola, nuns terrenos antigamente
colonizados por sobreiros, se não me engano, e onde se realizavam, na altura da Festa,
picarias. Esforçava-me por reter, para além da visão ameaçadoramente suburbana,
as imagens dessas árvores sacrificadas ao arbítrio habitacional. A memória era
atravessada por vislumbres do passado. Invadia-me a imagem de aí ter havido,
nesses longínquos anos em que frequentei a escola, um acampamento de ciganos e
de eu ter levado, talvez numa daquelas caritativas iniciativas escolares que
haveria na época, material escolar como prenda de Natal para alguma criança do
acampamento. Neste andar absorto diante da escola, sinto o vento a bater-me no
rosto. É aqui que sinto uma comoção. Fico estático, perplexo, preso ao chão,
aspirando avidamente aquele ar. Um passado com mais de 30 anos chegava até mim
através do vento que corria. Mais do que as árvores mortas, mais do que o
estranho acampamento de ciganos visitado pelo Natal, era a forma do vento
correr que me perturbava. Desenterrava uma experiência de que eu não suspeitava
sequer a existência. A forma do vento correr diante daquela escola tinha sido,
para mim, tão peculiar que nunca, na verdade, a esquecera verdadeiramente. Ela estava
ali pronta para, na primeira oportunidade, me assaltar e me fazer regressar a
um mundo que eu julgara perdido para sempre.
Quando Sebald diz, logo a seguir, “Olga, como mais tarde me contou,
teve uma crise de choro. Pelo menos, quando saiu de novo para a
Alberchtstrasse, onde eu a esperava, encontrava-se num estado de comoção como
nunca lhe tinha visto”, diz algo que eu compreendo perfeitamente. Esse encontro
com um passado insuspeitado, esse reconhecimento de um acontecimento
constitutivo de “si-mesmo”, mas que se encontra soterrado, provoca uma comoção.
Como a personagem romanesca, também eu, perante o vento que corria, me senti
perturbado e inquieto por essa estranha visita do passado, dum passado que
vinha sob a máscara tão pouco definida do vento que corre. Ainda hoje, passados
anos, sinto uma estranha inquietação quando penso nessa experiência. Toma conta
de mim uma volúpia feita de prazer e terror. Prazer do reconhecimento; terror
de que entre o que sou hoje e o que fui nesse longínquo passado nada tenha
existido, ou o que existiu apenas tivesse sido uma longa e prolongada mentira.
A professora de Olga ensinava, tal como antigamente. O vento corria
diante dessa minha primeira escola, tal como antigamente. “Tal como
antigamente”; talvez baste esta expressão para iluminar por que razão gosto
tanto da obra de Sebald. Enganar-se-á quem pensar que este “tal como
antigamente” é uma expressão de saudade. Nessa expressão, encerra-se todo o
mistério do tempo e do ser no tempo.
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