sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Linguagem, desejo e poder

Kuno Künster - Dos administradores de la felicidad suben a la nave del pintor (1993-1994)

A equivocidade da linguagem é um fenómeno sempre muito interessante. Não apenas como matéria para fazer humor, mas também para reflectir sobre as relações humanas que transparecem através da linguagem. Esta não é um mero instrumento inócuo e nunca é neutra. Falar é sempre tomar partido. Isto significa adoptar um ponto de vista, uma posição sobre o mundo, e nada mais do que isso. No blogue Um jeito manso escreve-se o seguinte: Por vezes escrevo, no fim, quando me despeço, 'Sejam felizes!' ou 'Tenham um dia feliz!' e, ao fazê-lo, estou apenas a exprimir o que vos desejo. Mas já li noutros blogues algumas pessoas dizerem que acham abominável que alguém dê aos outros ordens para serem felizes. Ora, nunca me ocorreria que, ao formular um desejo tão sincero, alguém pudesse lê-lo como uma ordem.

Alguém expressa um desejo e outro alguém entende-o como uma ordem. Não é o facto da expressão do desejo ter a configuração de uma locução no modo imperativo ("Sejam felizes!" ou "Tenham um dia feliz!") que é a fonte mais importante do equívoco. Do ponto de vista da pragmática linguística, estamos perante um acto ilocutório [o sujeito ao escrever ou dizer algo está a fazer determinado tipo de acção; para uma visão rápida dos actos de fala ver aqui], neste caso um acto que expressa um desejo. A finalidade ilocutória dos actos expressivos é manifestarem um estado psicológico (daquele que escreve ou fala) acerca de um estado de coisas no mundo (neste caso, exprimem um desejo sobre o estado afectivo dos leitores).

Se um professor, em plena aula, diz "Estejam calados!", estamos perante um outro tipo de acto ilocutório, o acto directivo, que se expressa, neste caso, por um imperativo. A finalidade deste acto é levar o auditório a praticar a acção referida, a calar-se. Mas esta expressão (este acto locutório) não tem a forma imperativa como os anteriores? Tem, mas... 

O problema começa na nossa afirmação anterior sobre o equívoco. Dissemos que o que está na base do equívoco não é tanto o uso do modo imperativo em ambos os casos mas outra coisa. Aqui afastamo-nos um pouco da Teoria dos Speech Acts, de Austin e Searle. O que gera equivocidade é que em ambos os casos se expressa um desejo. No primeiro caso, o desejo que os leitores sejam felizes. No segundo, que o auditório se cale. O que acontece é que não existe um desejo nu, despido das relações institucionais - formais ou informais - onde o desejo se expressa. 

A dimensão perlocucionária, retornando a Austin e Searle, ajuda a perceber a questão. Esta dimensão dos actos de fala refere-se ao comportamento que o locutor espera do interlocutor. A dimensão perlocucionária do "Estejam calados!" é o silêncio que os alunos deverão fazer, segundo as regras institucionais existentes. Alguém tem um poder e alguém tem um dever. Quando, porém, se diz ou escreve "Sejam felizes!", nem o locutor (a não ser a razão na moral kantiana) tem o poder de mandar alguém ser feliz, nem os interlocutores têm o dever institucional, ou mesmo o poder pessoal, para obedecer àquela injunção, caso fosse uma ordem.

No caso do acto ilocutório directivo do professor, há um poder, neste caso institucional e politicamente conferido, e um dever de obediência do mesmo cariz. O acto de fala é a expressão de uma relação de poder, onde um desejo de um tem a capacidade efectiva de se tornar ordem e gerar obediência, consumando um estado de coisas que satisfaça o desejo. No caso do acto ilocutório expressivo da autora do blogue, há uma irónica confissão de falta de poder. Ao tomar a forma imperativa, o acto ilocutório não está a dar uma ordem, mas a confessar uma impotência, uma fragilidade, está a dizer que desejaria que todos fossem felizes, mas que o seu desejo é impotente para se realizar. O imperativo usado é a confissão de ausência de império, um jogo linguístico que, ao camuflar a ausência de poder, a manifesta.

O interessante deste caso - aparentemente banal - reside na possibilidade de pensar a conexão entre linguagem, desejo e poder. Permite mostrar como a linguagem trabalha de forma multifacetada o desejo e o poder ou a sua falta. Por exemplo, quem sabe dirigir pessoas expressa ordens não através de imperativos, mas de actos locutórios com a aparência de actos meramente expressivos (Agradeço que compre fruta). Não há uma correspondência directa entre os actos locutórios e a sua dimensão ilocutória, pois a tensão, a um nível extra-linguístico, entre desejo e poder, ao repercutir-se na linguagem, força-a à plasticidade, que só os falantes competentes da língua conseguem decifrar na sua aparente equivocidade.

2 comentários:

  1. Quando hoje aqui entrei, o que me atraíu logo foi a pintura. É bem o género de pintura que me agrada. Fiquei a vê-la, achando depois um piadão ao título. Geralmente, nestes casos, acho eu, pinta-se, tem-se o prazer de pintar e depois, no fim, olhando, tem-se uma ideia para o que possa representar ou sugerir.

    Depois comecei a ler o texto e, ao dar com a referência ao que escrevi, fiquei apreensiva pois já sabe que eu escrevo sem medir bem o que digo e temi que as minhas palavras não resistissem às suas análises profundas e rigorosas. Mas fui lendo e fui ficando mais descansada (e não estou a ser irónica, estou mesmo a ser sincera). Claro que gostei imenso do que escreveu e concordo completamente. E a relação que estabelece entre a linguagem, o desejo e o poder é um tema é interessantíssimo.

    Desde há muitos anos que exerço funções que me levam a ter equipas a meu cargo. Ao contrário do que geralmente acontece em empresas da dimensão daquela em que trabalho ou mesmo em geral, não gosto de estruturas pesadas, muito hierarquizadas. Podia ter a depender de mim apenas umas quantas pessoas que, por sua vez, chefiariam outras pessoas. No entanto, por minha opção, privilegio a relação directa com toda a gente da equipa e privilegio também a formação casuística de grupos ou equipas que se formam e se extinguem caso a caso, conforme o trabalho o vai requerendo. Esta mobilidade e flexibilidade torna-se aliciante para as pessoas pois não trabalham sempre com as mesmas pessoas nem sempre com os mesmos assuntos. Além disso, delego muito e responsabilizo imenso.

    Não sou nem nunca fui do género de dar ordens acéfalas. O meu estilo na gestão é bem diferente: motivo as pessoas, levando-as a atirarem-se a desafios complexos em matérias com as quais antes não trabalharam, levando-os, portanto, à aprendizagem e ao risco. Isto é muito aliciante. E eu incito-os a isso e estou dentro, ou seja, em primeiro lugar sou eu que assumo os riscos. E quando corre bem (e geralmente corre sempre bem porque nos atiramos com convicção aos assuntos) elogio-os publicamente e levo toda a organização a reconhecer o mérito deles. E mais que a remuneração, é o reconhecimento que mais motiva as pessoas.

    Ou seja, não sou do género de dizer 'Façam!' mas, antes, 'Acredito nisto, acho que vamos ser capazes, acho que isto é uma coisa boa; vamos lá'. E se eles me dizem que não é possível, que não sabem, que não há tempo, eu, reunida com eles, vou desmontando os receios, vou mostrando a minha confiança, vou fazendo com que o meu entusiasmo os contagie

    Isto é o meu dia a dia.

    Por isso, fico admirada quando leio que dizer 'Sejam felizes' é estar a exercer prepotência, a dar ordens, etc. Como é que se pode fazer essa leitura? Leituras distorcidas deste género deixam-me sempre admirada e, se bem que as ache absurdas, não deixo, a seguir, de tentar que o que digo, na melhor das intenções, seja de leitura inequívoca, que ninguém possa fazer leituras estranhas.

    Mas, enfim, a natureza humana é múltipla e, escrevendo nós sem podermos ter à nossa frente as pessoas a quem nos dirigimos, temos que perceber que este acto de escrever 'às cegas' comporta um certo risco. Quando falo, gosto de olhar os outros nos olhos e vou adaptando a forma do que digo às reacções que noto nos outros. Aqui faltam-me os olhos dos outros.

    Mas, seja como for, este foi mais um dos seus inteligentes textos. Como sempre, deixam-me a pensar.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pode ficar descansada que não sou assim tão má pessoa que pegue numa coisa que alguém escreve e desate a desfazer. Além do mais, acho o exercício fútil e sem qualquer finalidade construtiva. Este caso interessou-me por causa da maleabilidade da linguagem, como ao fazer uma certa coisa se pretende e faz exactamente o contrário.

      Um dos grande problemas de Portugal está na gestão das pessoas. Isto passa-se tanto ao nível das instituições públicas como das privadas (aqui talvez o problema ainda seja mais grave). A minha percepção, mas pode ser errada, diz-me que há demasiada prepotência e recurso imediato ao princípio de autoridade, por norma para camuflar incapacidades de direcção e de gestão de pessoas. O problema não está na falta de empreendedores, mas de pessoas que saibam dirigir e mobilizar outras pessoas. Foi um assunto que em tempos me interessou, mas que hoje em dia não me ocupa o espírito. Embora, se escondam por detrás das relações laborais problemas filosóficos (não apenas éticos) interessantes, aos quais não se presta sentido. Problemas ligados à teoria da acção, questões de reconhecimento, questões de ontologia (tanto a referente ao produto dessas relações como à ontologia social e pessoal), para não falar do enquadramento metafísico que suporta essas relações. Mas outras coisas me ocupam o espírito.

      Bom fim-de-semana.

      Eliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.