quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Thomas Mann, Sua Alteza Real


Publicado em 1909, sete anos após o primeiro romance, Os Buddenbrook, Sua Alteza Real é uma das obras romanescas menos conhecida de Thomas Mann. Terá, na época, divido o público e a crítica, tendo conquistado os favores do primeiro e deixado a segunda desapontada. Quando se pensa na obra do autor o que vem de imediato à mente são romances como Os Buddenbrook, Morte em Veneza, Montanha Mágica ou Doutor Fausto. O que terá desapontado a crítica de então e encantado o público foi a obra parecer um conto de fadas, com um casamento por amor e um final feliz, tudo passado num Grão-Ducado, o de Grimmburg, que, também ele, na viragem do século XIX para o XX, parece saído de um conto de fadas. Esta sensação de leveza que percorre toda a narrativa é tudo menos superficial, havendo nela um olhar crítico tanto das instituições sociais como das existências individuais.

O Grão-Ducado é, na verdade, uma visão simbólica de parte da Europa que continuava, por aqueles anos, em convulsão desde que a Revolução francesa, nos finais do século XVIII, pôs em causa o Antigo Regime e as próprias monarquias. Um século não bastou para definir os contornos de um mundo novo. Foi preciso esperar a grande guerra de 1914-1918. Aquilo que Thomas Mann manifesta é a clara disfunção da instituição real – no romance, grã-ducal – num mundo movido pelo desenvolvimento da revolução industrial e da economia capitalista, onde os empreendedores são os grandes heróis que rasgam os caminhos que o mundo vai trilhar. Quando o Grão-Duque João Alberto III morre, o filho Alberto sucede-lhe, mas é um homem doente, neurótico, incapaz de exercer as funções públicas que lhe dizem respeito, que as delegará sistematicamente no irmão Nicolau Henrique. Thomas Mann mostra a decadência da instituição política na doença daquele que lhe dá corpo. A estrutura política tradicional do Grão-Ducado está doente por desfasamento com a realidade do mundo. Essa doença mantém o país atrasado e contamina as próprias finanças do Estado e da coroa. Esta era já, por essa Europa fora, a situação de muitas monarquias.

As grandes decisões políticas já não passavam pela coroa. Esta aquiescia nelas e tinha uma função de representação da unidade do país. A recusa do Grão-Duque incumbente de cumprir as funções de representação abriu o caminho para que o irmão, Sua Alteza Real Nicolau Henrique, figura em torno da qual se desenrola o romance, as exercesse. Como segundo na linha de sucessão do pai e tendo em conta a debilidade do irmão, tinha sido preparado para essas altas funções de representação. Essas altas funções, porém, não desencadeavam absolutamente nada no país. Tudo teria acontecido sem que ele estivesse presente numa inauguração, numa festa, num jantar. A vida efectiva passava ao lado da vida representada. Apesar de aclamado e vitoriado em todos os lugares onde se encontrasse, apesar de amado pelo povo que nele se reconhecia, Nicolau Henrique começou a sentir um grande vazio dentro de si. Tudo era meramente protocolar, uma encenação que servia para dar um verniz à realidade, mas que nenhum poder tinha sobre ela. Não apenas os discursos, mas as meras conversas de circunstâncias eram movidas por hábitos de cortesia protocolares a que faltava o interesse vivo pelas pessoas e pela realidade. O vazio sentido por Nicolau Henrique não era mais do que o resultado da pressão da função sobre si-mesmo, sobre a sua identidade, sobre a pessoa e a sua subjectividade.

Para além de conto de fadas, Sua Alteza Real é também um romance de formação, na tradição do Bildungsroman iniciada com Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe. O romance começa com o nascimento de Nicolau Henrique, um rapaz perfeito, com a excepção do braço esquerdo encurtado e a respectiva mão atrofiada, devido a inibição amniótica, no dizer do médico pessoal do Grão-Duque. A aprendizagem da futura Alteza Real começa na prática com o saber lidar com a sua deficiência, o que o obrigava a um certo tipo de pose. O romance mostra-o, depois, nas diversas etapas de vida. Na escola, no serviço militar, na universidade. Em todo lado, porém, o seu estar ali é uma representação, marcada sempre por uma descoincidência entre a ipseidade, constitutiva da pessoa, e a função inerente ao estatuto. Na verdade, ele não foi um verdadeiro estudante, nem um autêntico militar. Toda a sua formação foi feita para que a realidade, incluindo a sua, lhe fosse invisível. O fundamental era a adequação à função social que o estatuto o obrigava. Mais, o fundamental é que a sua pessoa se reduzisse ao seu conteúdo funcional. A sua aprendizagem é uma aprendizagem do esvaziamento da vida interior e de tudo aquilo que poderia ser marca de uma subjectividade que estivesse para além da máscara social.

O conto de fadas é desencadeado pelo interesse de Nicolau Henrique por Imma, a filha de um alemão, Samuel Spoelmann, cujo pai emigrara para a América, e lá fizera uma fortuna colossal. Spoelmann decide deixar a América e instalar-se no Grão-Ducado, pois as águas termais ali existentes ajudam à sua saúde. Imma é uma rapariga moderna, impetuosa, frequenta a universidade e interessa-se por coisas extraordinárias como a álgebra e outros ramos da matemática. Um longo processo de aproximação vai conduzir ao casamento do príncipe defeituoso e da bela, mas estranha, Imma Spoelmann. Thomas Mann não pinta uma paixão entre ambos, mas um amor que se desenvolve de forma apolínea, digamos assim. Não é um desvario dionisíaco provocado por Eros que os une, mas uma aproximação de ideais, na qual Nicolau Henrique se vê confrontado, para conquistar Imma, em dar conteúdo à sua pessoa, tornar-se um sujeito de si mesmo e até da sua função, dando-lhe um conteúdo pessoal e não meramente protocolar. Isto é, transformando-se num burguês, preocupado com as finanças do Grão-Ducado.

O casamento é visto pelo povo, pela corte e pelos os homens que possuíam o leme político como essencial para a subsistência do Grão-Ducado, à beira da bancarrota, devido a uma enorme dívida externa e sem uma economia capaz de a suportar. A transformação de Imma em princesa é apenas um pró-forma que dá colorido à transformação de um regime aristocrático decadente num regime burguês, assente na gestão rigorosa dos bens e fundado no poder do capital. O que Thomas Mann mostra no romance é a derrota da aristocracia, não porque tenha sido varrida do poder e da coroa por uma revolução violenta como a francesa, mas porque os próprios aristocratas se transformam em burgueses disciplinados. O vazio de uma função que se tornara meramente protocolar e que constituía a pessoa de Nicolau Henrique é, agora, preenchida pela descoberta da subjectividade, pelo interesse pela realidade material do mundo e por um amor apolíneo, onde as aventuras de Eros, movidas por Diónisos, estarão, por certo, rigorosamente vigiadas pelo duro e penetrante olhar de Apolo, com os seus imperativos de submissão à racionalidade.

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Nocturnos 111

George Braque, A Noite, 1951

A noite é um velho viajante que, carregado com o fardo da vida, se perde no caminho, vagueando por ruas e avenidas, saltando de praça em praça, procurando os cais onde terá aportado e que serão, segundo uma esperança nunca confirmada, os lugares de onde partirá para reencontrar o fio que o conduza, entre as sombras da cegueira, ao destino que o espera.

sábado, 25 de novembro de 2023

Leggio VI

Oscar Bluemner, Paterson Centre (Expression of a Silktown), 1914-15

Tudo tão distante se tornou, as casas, as silhuetas,

as ruas espinhadas de gente. Roncos de máquinas,

motorizados e frementes, tudo tão distante se tornou,

as praças abertas para o rio, o vento, o vento as traz

consigo, ao bater nos telhados. Ressoa um cântico,

horas que ao silvar longe se ouvem presas na solidão.

 

Em cadência imprecisa deixo os olhos vogar entre

ruas e avenidas e espero a súbita sombra que a luz,

ao morrer, em canto incerto faz cair. Abandonados,

entre quintais vis e esfacelados, muros cobrem-se

de ervas, memória da terra a germinar na cidade.

No céu, um tremor de nuvens, astros, o sol a cintilar.

 

As vozes sumidas entram pelas casas e escondem

o nada que as inflama. Tão cansadas, falam como se

a um deus orassem e nada dizem, e nada ouvem, vozes,

ecos, o tempo as esqueceu, debruadas de silêncio,

gradadas ervas sujeitas ao mar. Quando subo, de gente

mirram as colinas, moinhos à espreita de um vendaval.

 

A distância aumenta, se as ruas em desvario corro,

e há homens e mulheres afadigados entre hotéis

vazios e jardins fanados, castanheiros de úlceras

cobertos. Nas estradas, pombos, gatos alados, as

vísceras às varejeiras oferecem. Noite, tudo se cerra.

Se alguém fala, é na cidade a voz vinda com o vento.


(2006)
 

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Julien Gracq, Au Château d’Argol

 

Publicado em 1938, Le Château d’Argol é o primeiro romance de Julien Gracq, pseudónimo literário de Louis Poirier (1910-2007). André Breton considerou a obra como o ponto culminante do surrealismo. Independentemente desta relação com o surrealismo, está-se perante o início de um percurso literário – nomeadamente, no âmbito do romance – de grande qualidade, apesar de o autor estar longe de ser popular. Como o título indica, o acção romanesca passa-se num castelo/palácio da aldeia bretã de Argol, uma povoação realmente existente, incrustada na floresta armórica, a qual, no romance, se funde com o próprio château. Contudo, em Argol não há ou houve qualquer château. É no cruzamento entre a realidade da povoação e a irrealidade do espaço narrativo que o autor produz a mitificação do espaço, retirando-o da dimensão narrativa da existência quotidiana e, de alguma forma, operando uma espécie de consagração, embora de uma sacralidade tenebrosa, na qual emergem as forças obscuras do inconsciente como grandes protagonistas da acção.

O château e a floresta envolvente, pelo processo de mitificação que está na sua origem, tornam-se o espaço de uma utopia, não no sentido que podemos encontrar naquelas desenhadas por Platão na República ou por Thomas More na Utopia, onde se encontra uma idealização das relações humanas, mas num sentido denso em que se combina a ideia de um espaço estranhamente configurado, como se fora uma sugestão de não espacialidade, pelo menos daquela espacialidade onde habitamos, e a percepção de que ali, naquele lugar que é um nenhures, um não lugar, está suspensa a trivialidade com que os seres humanos gerem as suas relações, e as relações que ali decorrem obedecem a forças que estão adormecidas ou domesticadas na vida quotidiana, a qual só é possível pelo adormecimento e pela domesticação dessas forças. A esta utopia corresponde ainda uma ucronia assente em duas linhas de força. Por um lado, não é claro qual é o tempo histórico da narrativa, pois nela se combinam elementos modernos, como o automóvel ou a referência a Hegel, com intencionalidades românticas e mesmo pré-modernas. Por outro, episódios em que a linearidade temporal é subvertida, onde elementos do passado são, na realidade, elementos de um tempo a vir.

Albert, um jovem aristocrata de grande riqueza, comprou o château possuído pelo demónio do conhecimento. Aos quinze anos, via-se florir nele todos os dons do espírito e da beleza, mas ele desviou-se, com uma singular firmeza, dos sucessos que, em Paris, todos lhe prometiam. O demónio do conhecimento tinha-se já tornado senhor de todas as forças deste espírito. Visitou as universidades da Europa, de preferência as mais antigas, aquelas onde persistia ainda a recordação de um saber filosófico dos mestres da Idade Média raramente ultrapassado pelos modernos. Ao comprar o estranho château na afastada Bretanha, Albert procurava um lugar onde pudesse satisfazer a sua paixão filosófica num ambiente que se aproximaria, de algum modo, daquele que teria sido o dos velhos mestres medievais. O château em Argol era um sítio de meditação e, ao mesmo tempo, de viagem no tempo ao encontro de um passado que, na verdade, não tinha sido, aos olhos do jovem aristocrata, superado, como se a vontade do indivíduo pudesse superar a dialéctica do espírito no seu processo histórico, tal como era compreendida por Hegel.

A certo momento chega ao château Herminien, o melhor amigo de Albert e como ele alguém espiritualmente dotado, acompanhado por Heide, uma belíssima mulher. A partir deste momento suspende-se a vida banal e forças mais poderosas e inconscientes entram em acção, nesse lugar onde o tempo e o espaço tinham sofrido uma subversão. O que vai emergir, quando a vida trivial, com as suas regras sociais e jurídicas, é suspensa não é um hino sublime à beleza, mas a força da violência, de uma violência que vem do fundo do ser e se apodera dele. Essa violência anuncia-se em verdadeiras justas medievais entre os dois amigos, não em combates de cavalaria, mas de confrontos retóricos em torno do saber. Podemos pensar a retórica como uma primeira forma de domesticação da impetuosidade do logos, mas falhamos o essencial. A retórica apenas torna mais sofisticado o discurso enquanto arma de agressão e de luta pela dominação do outro. A tentação de confronto existente desde sempre entre os dois amigos é agora intensificada pela disputa de Heide, pelo triângulo erótico nascido da imediata atracção de Heide por Albert.

O destino das personagens vai ser marcado pelo desencadear da violência, que passa do conflito retórico para a violência física e a morte. A narrativa é construída sob a influência do romance gótico e das obras de Edgar Allan Poe, onde o doseamento do suspense está feito para criar um clima de tensão que antecede o desenlace. A culminação do surrealismo, como adjectivou Breton o romance de Gracq, é, contudo, equívoca, pois o que se manifesta ali não é uma sobrerrealidade, mas a vitória da infrarrealidade, o sucesso das forças tenebrosas que, aproveitando a combinação da paixão pelo conhecimento com a paixão pela beleza, furaram o cerco apolíneo da razão e abriram o caminho, como sempre acontece, para a destruição e a morte. Escrito em 1937, publicado em 1938, o romance de Gracq parece ser uma premonição e um aviso sobre aquilo que já nessa hora espreitava a Europa e o mundo, como se o tempo do futuro se tivesse antecipado e coagulado simbolicamente numa obra literária.


terça-feira, 21 de novembro de 2023

Simulacros e simulações (57)

Jesús María Cormán, 5,8 Richter Scale, 2001

A energia vinda do fundo da terra, movida pela fúria da novidade, rompe a crosta árida e simula um recomeço do mundo, a possibilidade de rasurar tudo e, numa nova figuração, trazer à luz uma outra realidade mais densa e mais venturosa do que aquela que o tremor do tempo submergiu no mar do abandono ou enterrou na fossa abissal no ínvio esquecimento.

domingo, 19 de novembro de 2023

Comentários (14)

Jakob Alt, The Garden of Laudaya, 1841

 De repente, de tudo o que é verde no parque,
ninguém sabe o quê, alguma coisa foi retirada
Rainer Maria Rilke

É grande o mistério da persistência das coisas, da sua perseverança em continuar na existência, em vencer o tribunal do tempo e adiar a sentença que entrega tudo o que existe ao grande império do não existente. Porém, ainda maior é o enigma da sua entrada na inexistência, na sua rendição à guarda pretoriano do nada. Usam-se expressões como de repente, de súbito para expressar uma perplexidade sobre aquilo que estando na existência dela se ausentou, não se sabendo como nem, muitas vezes, o quê. O que está deixa de estar, como alguém na sala de sua casa, em companhia de outros convivas, pretextando uma súbita dor de cabeça, se retira para o quarto, entregando-se em solidão à sua dor. Talvez tudo o que desaparece do mundo se retire para um lugar onde, solitariamente, convive com a dor de existir e assim abandona a existência.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Guerras culturais


Gostaria de falar neste artigo do acontecimento que, na semana passada, arrastou a queda do governo. Confesso, todavia, que ainda não percebi o que se passou. Deixo isso de lado e volto-me para uma revista. Tem o nome de Crítica XXI e é dirigida por Rui Ramos e Jaime Nogueira Pinto, dois influentes intelectuais da direita portuguesa. O interessante da revista, de que sou assinante, é ela ser uma revista cultural e inscrever-se num combate político em que a direita está empenhadíssima e a esquerda se comporta como moribunda. O combate cultural. Durante muito tempo, a esquerda foi hegemónica no campo cultural. Essa hegemonia permitia-lhe tornar dominantes um conjunto de valorações simbólicas e morais do mundo, enquanto a direita estava focada na questão da economia, dos negócios e do mercado.

A direita, porém, há uns anos, e não são poucos, começou a preparar um ataque cerrado à hegemonia da esquerda no campo da cultura. Iniciou-o por coisas de baixa cultura, como uma decidida ocupação da comunicação social, de onde a esquerda, outrora hegemónica, foi quase banida, como se pode ver nos comentários nas televisões do tal episódio que eu ainda não compreendi. Ao mesmo tempo, essa direita – aliás, multifacetada – preocupou-se com a ocupação da universidade, em criar nela pólos que disseminem, no campo da cultura, a visão das direitas, que ofereçam interpretações do mundo que, digeridas pela comunicação social, se tornem narrativas que oferecem às pessoas explicações sobre a vida social, lhes dão uma certa orientação sobre o que se pretende que seja a verdade, o bem e o justo. Nada que a esquerda não tenha feito, mas de um modo menos deliberado, fruto de uma resistência à atrofia intelectual imposta pelas antigas ditaduras de direita.

A esquerda, no campo cultural, está em acentuado recuo. Os herdeiros do neo-realismo e do realismo socialista nada têm para propor que interesse as novas gerações, e a orientação que certa esquerda adoptou, virando-se para os problemas de identidade, tem pouca capacidade para criar uma narrativa que consiga dar uma visão do mundo globalmente aceitável, uma orientação na qual as pessoas sintam que ali pode estar a verdade, o bem e a justiça. Hegel terá dito que quando as ideias mudam, a realidade não resiste. Mesmo que a citação seja apócrifa, o que nela se expressa está a ser levado muito a sério pela direita, enquanto a esquerda parece completamente desorientada, oferecendo de bandeja à direita o campo cultural, onde se decide como é que se deve interpretar o mundo, a sociedade e aquilo que pode e deve ser realizado.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Leggio V

Willem de Kooning, Ashville, 1947

Cresce, em dias de Setembro, um medo

emaranhado nas arribas do céu. As rajadas

abanam prédios e os muros em precário

equilíbrio dissolvem-se. Quando chove, pela cidade

 

rugem deserdados cães e o rio dilata, engrossa,

longe lança suas redes; os homens, ínfimos

peixes, correm rua abaixo, gritam de lama

inundados. Como barcos pela âncora surpresos,

 

carros travam na vertigem da água e em janelas

esconsas abrem-se olhos vítreos,

promessas de luz na polida pedra. As dolentes

 

árvores, em mansidão vegetal, cobrem

de sombras e suspiros as avenidas mármore

e cal. Ao arderem, gelam desmemoriadas.

(2006 )

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Ensaio sobre a luz (109)

Lyonel Feininger, The Village Pond of Gelmerode, 1922

Também a luz se deixa contaminar pelos sonhos da geometria. Desce em ondas e corpúsculos sobre a terra e logo encontra repouso na figura de um triângulo ou na lentidão de um quadrado. Então, abre-se submissa para acolher quem, cansado de viajar entre espessas trevas, encontra nela o caminho da transfiguração.

sábado, 11 de novembro de 2023

Beatitudes (64) Leitura

Anónimo, Agnes, entre 1900-1920

Reclinada sobre o livro, a mulher entra num outro mundo. Atrás de si fica a dura máscara do quotidiano, com o peso da estrita necessidade e os imperativos que a vida distribui ao acaso na hora do nascimento. A memória desloca-se então da casa do passado e, sem passar pelo beco do presente, entra na grande avenida do futuro. Tudo no seu corpo é expectativa e o próprio desejo esquece qualquer objecto real da sua afeição e e abre-se aos objectos imaginados, mais belos, mais dignos de ser amados.

quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Nocturnos 110

Hippolyte Flandrin, View of Rome at Night, 1836

As noites citadinas vêm embrulhadas no papel do esquecimento. A luz, ainda há horas tão viva, é agora um enigma nos interstícios da memória. Tudo se veste então na grande loja das sombras e abre caminho numa floresta de sussurros e murmúrios, onde uma voz humana é o canto de uma ave de mau agoiro.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

A imaginação no poder


Um dos slogans da revolta estudantil conhecida como Maio de 68 foi A imaginação ao poder! É possível que os estudantes revoltosos daqueles dias estivessem irados com o peso da razão na vida e no governo. A tradição liberal-democrática, que foi emergindo a partir do século XVIII, colocara a razão como fundamento das decisões políticas. A resistência à racionalidade liberal veio tanto da esquerda, com a mitologia da revolução, como da direita, na sua encarnação radical e nacionalista. Nestes projectos políticos, a razão foi destituída de guia político e tornou-se instrumento da imaginação política que se tinha apoderado do poder e punha em prática os mundos imaginários do paraíso social na Terra, à esquerda, ou da supremacia nacional e rácica, à direita. O resultado foi violência, campos de concentração e milhões de mortos.

Com o final da segunda Guerra Mundial e, posteriormente, com a Queda do Muro de Berlim, perante a multiplicação das democracias liberais, parecia que a razão ganhara a partida. Sol de pouca dura. O século XXI tem sido um tempo onde a imaginação está, paulatinamente, a tomar conta do poder. Os resultados são assombrosos. A guerra da Ucrânia é o produto de uma imaginação delirante sobre o destino da Rússia. A guerra na faixa de Gaza é alimentada pelas concepções imaginárias tanto do Hamas como da extrema-direita israelita. Combate-se, na verdade, por um Grande Israel imaginário ou pelo sonho de uma Grande Palestina livre de judeus. Foram vitórias da imaginação os triunfos de Bolsonaro e de Trump, cujas derrotas posteriores não asseguram que algo de semelhante não volte ao poder. As políticas imaginárias, baseadas sempre numa memória histórica fantasiosa, são o fundamento dos projectos políticos da extrema-direita e da direita radical em toda a Europa.

A imaginação no poder significa que os agentes políticos se pautam pelos mitos fundadores da sua cultura ou da sua nação. Tomam estes mitos como descrições da realidade. Com eles seduzem as massas incapazes de uma leitura racional do mundo e da política. Ora, esses mitos são factores de identificação e de exclusão do outro. O resultado é invariavelmente a violência e a morte. A razão é uma faculdade frágil e exigente. A sensatez, um dos seus apanágios, é um antídoto pouco eficaz perante a imaginação alucinada e a memória delirante de elites políticas incendiárias, apostadas no desencadear de paixões na massa desorientada pela complexidade do mundo. Estamos a descobrir, ou a redescobrir, o que é a imaginação no poder. Ainda no Maio de 68 se dizia: Sejam realistas, exijam o impossível! Eis que o impossível nos está a bater à porta.

domingo, 5 de novembro de 2023

Leggio IV

Bernardo Marques, Tejo (aqui)
 

Ruídos de sirenes pela noite de transeuntes

ao acaso das ruas rendidos. Em estreitas ruelas,

flamejam avaras pequenas luzes e se pelo chão

imundos os destroços caem, é nas mãos

 

vazias que brancos e lívidos se trazem. Esqueceram

na senda da noite o nome que lhe deram e

sentados na calçada ao anjo pedem

pela manhã a memória venha, mesmo se branca,

 

mesmo se fria e gélida. Garrafas partidas,

estilhaçados copos, tudo a noite cobre,

e os corpos destilam abraçados; gavinhas

 

frágeis, logo a aurora as desfaz. No frio da cidade

o ar recobre-se de névoas e o Tejo embarca

pelo mar ali no lugar onde tudo se refaz.


(2006)

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

O paradoxo em que vivemos


Em 1992, Francis Fukuyama, ao publicar The End of History and the Last Man, gerou uma enorme controvérsia e o seu argumento sobre o fim da História foi ridicularizado. Todavia, Fukuyama não defendeu que a partir daquela altura, o pós-Queda do Muro de Berlim, deixaria de haver transformações nas sociedades e que o mundo se imobilizaria para eternidade. Sublinhou, apenas, que a democracia liberal é o melhor regime político que é possível imaginar e que, numa perspectiva evolucionista da História, todas as nações, mais tarde ou mais cedo, acabarão por se tornar democracias liberais. Podemos discordar, e haverá boas razões para isso, que possamos interpretar a História de uma forma evolucionista. Porém, será difícil, se não impossível, imaginar um melhor regime político do que a democracia liberal, com a sua preocupação com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Poder-se-á perguntar por que o desenrolar da história do mundo, nos últimos quarenta anos, nos parece afastar desse desiderato de ir vendo crescer o número de democracias liberais pelo mundo. Pelo contrário, tem havido, um pouco por todo o lado, regressão e perda de poder de atracção da democracia liberal. Ora, aquilo que reforçou a crença de Fukuyama no triunfo da democracia liberal é também o motivo que está por detrás do seu actual retrocesso. As democracias liberais floresceram no conflito contra os regimes comunistas. Num mundo bipolarizado, com fronteiras quase fixas, as pessoas sentiam-se atraídas pelo mundo aberto dos regimes democráticos. A derrocada do bloco soviético gerou a crença optimista na vitória das democracias.

Não se percebeu, na altura, que a Queda do Muro de Berlim não era apenas o fim do comunismo, mas também o fim de uma ordem internacional nascida no rescaldo da segunda guerra mundial, onde as fronteiras pareciam fixadas para sempre. O fim da rigidez das fronteiras acordou o espírito nacionalista um pouco por todo o lado. Lentamente, a afirmação nacional começou a preencher, no imaginário de muita gente, o lugar da democracia liberal. Em vez de liberdades individuais, passou-se a querer um Estado nacional, um Estado nacional cada vez mais forte, para chegarmos ao momento em que se quer um Estado nacional mais amplo, com a conquista de territórios de outras nações e a redefinição dos mapas. É aqui que estamos, com parte do mundo em chamas. Há em tudo isto um paradoxo. As democracias liberais precisam de Estados-nação para existirem, mas o exacerbamento do nacionalismo corrompe o espírito liberal e destrói a democracia. Como complemento, o nacionalismo ainda tem a guerra para oferecer como prémio.