segunda-feira, 30 de julho de 2018

O sacrifício de Robles


Queria aqui louvar Ricardo Robles pelo seu sacrifício altruísta e de elevado sentido teológico. Ele que é contra a lei Cristas que permite a especulação imobiliária, sacrificou a sua alma condenando-se ao inferno (na verdade, já lá está a arder e ainda não viu o dinheiro). E o que o motivou? O desejo turvo de enriquecer? Não, mil vezes não. Quis salvar a alma especuladora da direita e converter essa mesma direita numa encarniçada inimiga da lei Cristas. E não é que conseguiu? Desde que se soube as pretensões roblesianas de ir para o inferno dos ricos, que a direita, desde o Observador às redes sociais, passando pelos militantes de província, não pára de ser anti especulativa, de apontar a Robles aquilo que Robles apontava aos beneficiários da lei Cristas. Esperam-se agora as petições contra a lei Cristas (sim, petições como a esquerda costuma fazer), manifestações de rua e pedidos de audiência ao Presidente, além de uma procissão penitencial. Tudo isto levanta interessantes especulações (meu Deus, que palavra) teológicas. Será que Robles é um judas que trai os pobres por avidez ou um judas que, por amor aos pobres e preocupado com a felicidade do maior número, os trai para que a mole imensa dos que estavam perdidos se salvem e abjurem o pecado especulativo em que viviam? [Postado no facebook ontem.]

sábado, 28 de julho de 2018

Robles e a especulação

A questão Ricardo Robles é particularmente interessante, pois mostra que qualquer pessoa, mesmo do BE, sempre que pretende vender um bem, acredita nos mercados. O mercado é o sítio onde se forma um preço através de um acordo livre. Se o vereador do BE quer vender o prédio por 5 milhões de euros e ninguém lhos der, então o prédio não vale 5 milhões de euros. Se alguém estiver disposto a dar-lhe 10 milhões, então o prédio vale 10 milhões. Se ele achar que 10 milhões é pouco, é livre de não vender. O problema todo é que certa esquerda - como o BE - utiliza a palavra especulação a torto e a direito, incluindo no mesmo saco coisas que são ilegítimas e coisas que são absolutamente legítimas e que resultam da liberdade dos indivíduos. Há uma coisa que é muito difícil de explicar quando se usa desenfreadamente a palavra especulação. Se uma pessoa é dona legal (sublinho a legalidade) de um bem, se o pretende vender por um certo preço que implica ganho de enormes mais-valias, se há alguém disposto a pagar esse preço, por que razão deveria a pessoa vender o bem por um preço muito abaixo? Se há uma lição que essa esquerda deveria tirar do caso Robles é que a palavra especulação deve ser usada com muito maior rigor e parcimónia em vez de ser uma arma que se dispara tanto contra negociatas ilegítimas como contra o normal funcionamento da economia.

Torto e fora dos eixos

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Tornou-se um lugar comum aproximar duas ideias que emergiram na mesma época, mas em obras literárias diferentes. Em Hamlet, William Shakespeare fazia notar que “O mundo está fora dos eixos. Oh! Sorte maldita! … Por que nasci para colocá-lo em ordem!”. Miguel de Cervantes, em D. Quixote, escrevia, mais ou menos na mesma altura “… é o meu ofício e exercício andar pelo mundo endireitando tortos, e desfazendo agravos”. Tudo isto veio à luz logo no início do século XVII, esse momento inaugural dos tempos modernos. O que está em gestação, nesses dias, é o nascimento e a afirmação do sujeito – podemos dizer mesmo o nascimento da individualidade – e a revolução científica. Primado do indivíduo e conhecimento científico são, ainda hoje, os pilares em que assente o nosso modo de vida.

Aquilo que, visto retrospectivamente, poderia ser compreendido com um momento glorioso da humanidade ocidental talvez tenha sido compreendido, por muitos, de uma forma bastante mais obscura. O mundo está fora dos eixos ou, na versão de Cervantes, está cheio de tortos que é preciso endireitar. Alguma coisa está mal, fora do lugar e precisa de ser colocada onde deve estar, necessita de ser posta nos eixos. Em Hamlet há uma hiper-lucidez que vê, na tarefa de colocar o mundo em ordem, uma maldição. Maldita é a sorte daquele que foi destinado a pôr o mundo nos eixos. Contudo, no Quixote, a dissonância cognitiva, a persistente ilusão, permitem ver o ofício de endireitar o que está torto como uma tarefa gloriosa.

Durante os quatro séculos que entretanto se passaram, nunca o mundo deixou de ser sentido como estando fora dos eixos. Apesar das revoluções científicas, políticas e tecnológicas, apesar de um crescimento exponencial da civilização, do bem estar das populações e da esperança de vida, o mundo continua fora dos eixos e cheio de tortos que será necessário endireitar. O que as frases de Shakespeare e de Cervantes nos ensinam, porém, mata qualquer quimera. Aquele que estiver plenamente consciente de si sabe que pôr o mundo nos eixos não passa de uma maldição insuportável de carregar aos ombros. Só aos loucos lhes é permitido o logro de que têm por destino endireitar o mundo. Esta é uma lição que se adapta demasiado bem aos dias de hoje. Não faltam no mundo loucos que, sob o aplauso da multidão errante, tomam conta do poder crendo ser seu ofício endireitar o que está torto e desfazer agravos. Esta não é, por certo, a melhor receita para combater insónias. Boas férias.

sábado, 14 de julho de 2018

Sem enredo


Alguém se queixa não sem indignação, numa caixa de comentários de um grande armazém de livros, de que os contos de uma certa autora não têm nada que se pareça com um enredo. Com um plot, pois a queixa vem em língua inglesa. Percebo o drama dos que contestam a literatura sem enredo. Usam a leitura como uma fuga ao mundo, uma consolação que os protege do facto inaceitável de a sua vida não possuir qualquer enredo. Coisas acontecem, umas repetem-se e outras não, mas, na verdade, nas nossas tristes vidas o arbitrário, o ocasional e o acidental são a regra e não a excepção, mesmo que teimemos no contrário, mesmo que pareça o contrário. "O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai." Também o evangelista João sabia que a vida não tem enredo. E se estamos todos in media res isso significa apenas que estamos no meio de um turbilhão sem sentido nem trama, esbracejando até morrer de cansaço.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Um concubinato de conveniência


A minha crónica no Jornal Torrejano.

Desde o início que a actual solução governativa sofre de um pecado mortal. Este reside num governo onde só um dos partidos de esquerda tem assento. Ao escolher o caminho mais fácil, a esquerda resolveu alguns problemas de momento. António Costa evitou o fim da sua carreira política e o Partido Socialista conseguiu não passar pelas humilhações que outros partidos socialistas europeus sofreram. O Bloco de Esquerda alcançou o estatuto de força política respeitável. Veja-se a condecoração póstuma de Miguel Portas, fundador e dirigente do BE. O Partido Comunista, por seu lado, pôde apresentar-se como uma força de construção de soluções governativas e não de mera contestação. Durante mais de dois anos a fragilidade da solução foi disfarçada pelos aparentes sucessos governativos.

Quando nos aproximamos do último orçamento da legislatura, mesmo que haja uma convicção geral de que será aprovado, os problemas saltam aos olhos de toda a gente. Estes problemas pouco têm a ver com as leis laborais, a distribuição do dinheiro no próximo orçamento ou com as reivindicações dos vários corpos da função pública. Tudo isto é apenas um simples reflexo de uma debilidade estrutural existente desde o início desta solução governativa. As esquerdas não têm um projecto político para o país, um projecto ponderado, negociado e partilhado pelos vários partidos. Viveram até agora num concubinato de conveniência meramente circunstancial. De facto, seria muito exigente negociar um governo com todos os parceiros de esquerda, pois isso implicaria duas coisas.

Em primeiro lugar, haveria que olhar seriamente para a realidade do país. A debilidade financeira, a inconsistência da economia, a frágil situação de grande parte dos portugueses (pobres e com pouca autonomia), a dependência perante os parceiros da União Europeia e os chamados mercados financeiros. Em segundo lugar, seria necessário um forte espírito de compromisso, com todas as partes a terem de aceitar não apenas coisas agradáveis mas também aquilo que lhes desagrada. Um governo assim fundado evitaria tudo a que estamos a assistir, desde as aproximações de Costa a Rui Rio até ao retorno do BE e do PCP às políticas de contestação. Teria outra virtude. Asseguraria ao eleitorado que a esquerda possui um projecto credível para o país e não um mero programa de entretenimento enquanto a direita se recompõe para chegar ao poder e executar as suas políticas. Temo, porém, que os partidos de esquerda sejam mais sensíveis às suas conveniências particulares do que aos anseios do eleitorado.

domingo, 1 de julho de 2018

Futebol e Estado-Nação

A minha crónica em A Barca.

Olhamos para um campeonato do mundo de futebol e percebemos, de imediato, uma das causas dos problemas políticos que atingem o projecto europeu. O campeonato do mundo é um hino ao Estado-Nação. As selecções representam os Estados-Nação e recebem um inequívoco apoio popular. As pessoas sentem-se representadas pela sua selecção, vibram por ela, alegram-se com as suas vitórias e sofrem com os seus desaires. A causa principal não reside no facto de serem equipas de futebol mas de serem selecções nacionais. Um campeonato do mundo é uma manifestação global de um nacionalismo soft.

Em nome do nacionalismo cometeram-se atrocidades sem fim. No entanto, os Estados-Nação permitiram a evolução dos regimes políticos nacionais para democracias representativas. Substituíram a ideia de superioridade da nação, de um patriotismo como último refúgio dos canalhas, como dizia Samuel Johnson, pelo patriotismo constitucional, fundamento de um Estado democrático e de direito, como defende Jürgen Habermas. Se há um nacionalismo perigoso, onde o pior do homem pode vir ao de cima com facilidade, há também um virtuoso, que faz depender a vida política da lei e da liberdade.

Uma das marcas fundamentais dos países que fundaram a União Europeia (UE) – e daqueles que, posteriormente, aderiram ao projecto europeu – é serem exemplos do patriotismo constitucional. São Estados-Nação, regulados pela lei e com regimes democráticos. O problema é que, a partir de determinada altura, dentro da UE, se sonhou com o fim dos Estados-Nação europeus e se começou a socavar os seus alicerces. Não foi um jogo claro e limpo. Pelo contrário. Foi acção obscura, feita nas costas dos eleitorados pelas elites políticas que, com a ajuda de alguns meios universitários, tentaram vender a narrativa de que a destruição do Estado-Nação seria inexorável e um passo para o paraíso.

O resultado deste desvario tem sido catastrófico. O sinal mais claro foi o Brexit, e o crescimento da extrema-direita nacionalista tornou-se uma moda que chegou já ao poder em vários países europeus, começando a destruir os fundamentos constitucionais das democracias. Um campeonato do mundo de futebol é sempre uma manifestação do peso que o Estado-Nação tem no coração das massas populares. Se esse coração não for cultivado por uma ordem nacional constitucional e democrática, então o desvelo com que vemos as massas populares a apoiar as suas selecções nacionais transferir-se-á para o pior dos nacionalismos que começam a pulular por todo o continente.