A minha crónica no Jornal Torrejano.
Tornou-se um lugar comum aproximar duas ideias que emergiram
na mesma época, mas em obras literárias diferentes. Em Hamlet, William Shakespeare fazia notar que “O mundo está fora dos
eixos. Oh! Sorte maldita! … Por que nasci para colocá-lo em ordem!”. Miguel de
Cervantes, em D. Quixote, escrevia,
mais ou menos na mesma altura “… é o meu ofício e exercício andar pelo mundo
endireitando tortos, e desfazendo agravos”. Tudo isto veio à luz logo no início
do século XVII, esse momento inaugural dos tempos modernos. O que está em
gestação, nesses dias, é o nascimento e a afirmação do sujeito – podemos dizer
mesmo o nascimento da individualidade – e a revolução científica. Primado do
indivíduo e conhecimento científico são, ainda hoje, os pilares em que assente
o nosso modo de vida.
Aquilo que, visto retrospectivamente, poderia ser
compreendido com um momento glorioso da humanidade ocidental talvez tenha sido
compreendido, por muitos, de uma forma bastante mais obscura. O mundo está fora
dos eixos ou, na versão de Cervantes, está cheio de tortos que é preciso endireitar. Alguma coisa está mal, fora do
lugar e precisa de ser colocada onde deve estar, necessita de ser posta nos
eixos. Em Hamlet há uma hiper-lucidez
que vê, na tarefa de colocar o mundo em ordem, uma maldição. Maldita é a sorte
daquele que foi destinado a pôr o mundo nos eixos. Contudo, no Quixote, a dissonância cognitiva, a
persistente ilusão, permitem ver o ofício de endireitar o que está torto como
uma tarefa gloriosa.
Durante os quatro séculos que entretanto se passaram, nunca
o mundo deixou de ser sentido como estando fora dos eixos. Apesar das
revoluções científicas, políticas e tecnológicas, apesar de um crescimento
exponencial da civilização, do bem estar das populações e da esperança de vida,
o mundo continua fora dos eixos e cheio de tortos
que será necessário endireitar. O que as frases de Shakespeare e de Cervantes
nos ensinam, porém, mata qualquer quimera. Aquele que estiver plenamente
consciente de si sabe que pôr o mundo nos eixos não passa de uma maldição
insuportável de carregar aos ombros. Só aos loucos lhes é permitido o logro de
que têm por destino endireitar o mundo. Esta é uma lição que se adapta
demasiado bem aos dias de hoje. Não faltam no mundo loucos que, sob o aplauso
da multidão errante, tomam conta do poder crendo ser seu ofício endireitar o
que está torto e desfazer agravos. Esta não é, por certo, a melhor receita para
combater insónias. Boas férias.
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