Duane Michals, Magritte and hat, 1965 |
Montemos a simulação para que pareça um simulacro, a cópia imperfeita daqueles que, na figura da desadequação à realidade, encontraram um caminho para a perfeição.
O tema da honra está presente no último romance de Eça de Queiroz
publicado em vida, A Ilustra Casa de Ramires, no qual o protagonista, um
aristocrata, confronta a sua lassidão moral com o culto bravio e sanguinolento da
honra dos seus longínquos antepassados. Em Alves & C.ª, romance
póstumo publicado em 1925, um quarto de século após a morte do autor, Eça
centra-se no mesmo tema, deslocando o ambiente social da velha aristocracia
para o seio da burguesia comercial ascendente na Lisboa dos finais do século
XIX. O caso gira em torno de um adultério e a questão da honra punha-se aos
olhos do marido traído. O sentimento de traição é levado ao paroxismo porque,
além da infidelidade conjugal, há também a traição de uma amizade e de uma
sociedade comercial, pois o amante de Ludovina, a mulher de Godofredo Alves,
era precisamente o Machado, rapaz mais novo, sócio talentoso da firma e amigo
íntimo de Godofredo, que o vira crescer e quase o educara.
A questão que Eça coloca no romance, ao fazê-lo girar em torno da honra, prende-se com a tensão entre uma sexualidade que transborda os limites do estipulado pelas convenções sociais e três instituições centrais da vida burguesa, o matrimónio, a amizade e a sociedade comercial, onde se conjugam os interesses materiais daqueles que se tornaram rivais. Serão as manobras de Eros, com a sua propensão para desestruturar o mundo e lançar a vida no caos, suficientes para pôr em causa instituições tão fundamentais para o mundo burguês triunfante? A expectativa seria que a descoberta por Godofredo, na sua casa e no dia do quarto aniversário do casamento, da sua Lulu nos braços do sócio Machado, levaria à destruição do casamento, ao fim de uma profunda e quase paternal amizade e, não menos importante, à desagregação da sociedade comercial.
Godofredo da Conceição Alves, o nome do personagem central do pequeno drama, é todo ele um programa narrativo. Aos banais apelidos, a mãe, senhora dada à leitura de romances, por certo românticos, antes de se dedicar ao culto do Senhos dos Passos, decidiu antepor um nome de outros tempos, um nome godo, como se ela quisesse ver no filho o aristocrata que ela não era. Esta ironia queirosiana é fundamental para a compreensão do romance. Perante o ultraje, Godofredo sente ânsias de lavar a honra em sangue, de matar o Machado ou de morrer ele, mas libertar-se assim do peso que o adultério da mulher lhe punha nos ombros. Depois de ideias e propostas bizarras, vai ter com dois amigos, um deles experiente em coisas da honra, para resolver o assunto. O que vai descobrindo, todavia, é que o caso não exigiria cometimentos tão drásticos. Os padrinhos de ambos os lados manobram até que se chegue à conclusão que nada há a fazer. Duelos relativos a questões de honra exigem mais que uma mera peripécia do deus Eros. Por exemplo, ser escarrado na face. Isso sim é grave para a honra de um homem.
A instituição da honra já não pertencia àquele mundo habitado por burgueses, era coisa de uma velha aristocracia que tinha desaparecido. Um qualquer Conceição Alves, mesmo que Godofredo, não tem honra a defender, até porque o motivo seria pura e simplesmente irrisório, num mundo em que as histórias de maridos traídos e mulheres adúlteras seria a norma. Eça liberta o Eros da sua relação com o sangue e a morte, mas não o faz como um pensador libertino. Pelo contrário, o importante é outra coisa. Importante é que o matrimónio não se desfaça, que as amizades permaneçam, apesar da intromissão da deslealdade, e que as sociedades comerciais prosperem. A honra, essa é uma coisa que não se deve intrometer no bom funcionamento das instituições burguesas. Godofredo, apesar do nome, não era um aristocrata. A vida, a sociedade, o Machado, a Ludovina e o seu coração exigem outra coisa dele, exigem que não tome a excepção como a regra e não desfaça o mundo laboriosamente tecido, um mundo apontado à prosperidade e às aparências, para que a vida decorra segundo a nova visão do mundo, a daqueles que já substituíram no comando das coisas a velha aristocracia, cujos valores são agora inúteis. A virtude central não é a honra, mas a prudência, pensada a partir do cálculo da utilidade dos actos.
Ernst Haas, Homecoming soldier, Vienna, 1946-1948 |
1. O vírus resiste. Depois de uns meses de acalmia, volta o espectro do confinamento. Isto apesar da vacinação em Portugal ter corrido muito bem. O problema é que a vacinação, embora sendo uma condição necessária para combate à COVID-19, não é suficiente. A etiqueta introduzida pela pandemia – lavagem frequente das mãos, uso de máscara e afastamento entre pessoas – continua a ser necessária. Veremos se este ano, com as festividades do Natal e do Ano Novo, não se cometem os erros que se cometeram o ano passado. O vírus não está derrotado. Resiste.
2. Cimeira do clima. Sempre que há uma cimeira referente aos problemas do clima deparamo-nos com uma enorme expectativa inicial e uma desilusão no fim. A deste ano não foi excepção. Os países mais populosos do mundo precisam de carvão. Sem ele, muito provavelmente, os respectivos regimes políticos implodiriam. A implosão dos regimes chinês e indiano poderia ser também uma enorme catástrofe. Talvez valesse a pena congregar esforços e dinheiro na ciência e na tecnologia – tal como aconteceu com a vacina contra a COVID-19 – para apressar a eficiência e a disponibilidade de energias menos sujas que o petróleo e o carvão.
3. O PSD. Olha-se de fora para o principal partido da oposição e um dos construtores do regime democrático e fica-se perplexo. Tanto Rui Rio como Paulo Rangel acabam por ser estranhos figurantes. Rio é um actor que, ao fim de todos este tempo, ainda não encontrou o seu papel. Rangel, por seu lado, está convencido de ter um papel, mas não parece ter dimensão para o que deseja. Não haverá mais ninguém no PSD para dar rumo ao centro-direita? Quem se ri é André Ventura. O seu grande inimigo, de momento, é o PSD. Depois de ter dizimado o CDS, sonha fazer o mesmo ao PSD. É possível que o aumento exponencial que se espera de deputados do Chega seja feito à custa da bancado do PSD.
4. Portugal – Sérvia. Uma confissão, para começar. Não percebo grande coisa de futebol. Em tempos gostei do jogo, hoje é-me quase indiferente. A meio da primeira parte do Portugal-Sérvia, decidi abrir a televisão e ver a partida. Fiquei sempre com a sensação de que a Sérvia tinha mais três ou quatro jogadores que Portugal. Onde estivesse a bola, havia muito mais sérvios que portugueses. Depois, ao contrário dos portugueses, os sérvios queriam mesmo ganhar o jogo. Só vi uma selecção em campo, a que ganhou. Embora não baste, para ganhar é preciso ter vontade de o fazer. Nunca percebi isso nos jogadores portugueses.
Irving Penn, Four Guedras (Morocco) 1971 |
Alexej Titarenko, Saint Petersburg, 1999 |
Robert Frank, Fourth of July, Coney Island, 1958 |
Julgo que os eleitores tanto do BE como do PCP não compreendem as razões
que levaram ao chumbo do Orçamento de Estado. Quando falo em eleitores desses
partidos não me estou a referir aos militantes e simpatizantes partidários que
rodeiam esses militantes, mas às pessoas que votam nesses partidos não por fé
ideológica, mas porque acham que eles são instrumentos para a defesa dos seus
interesses e do bem comum. Nos eleitores de esquerda, incluindo os do PS, havia
a expectativa da continuidade do governo, de uma gestão equilibrada do período
pós-pandemia, se é que estamos em período pós-pandemia, e o que menos queriam
era eleições. O orçamento, tal como estava, não representava um ónus para as
classes populares e médias. Pelo contrário.
Nunca haverá consenso sobre quem teve a culpa da ruptura. Os socialistas dirão que se esforçaram o máximo para satisfazer as exigências à sua esquerda, dentro dos apertados limites impostos pela situação do país, mas que os partidos à sua esquerda colocaram os interesses partidários à frente dos do país. BE e PCP argumentarão que, no fundo, as eleições são desejadas por António Costa, pois este almeja uma maioria absoluta. É irrelevante saber quem tem razão. Como o professor Salazar muito bem sabia, em política aquilo que parece é. E aquilo que parece, a narrativa, para usar uma expressão em moda, mais forte é aquela que tende a dizer que o orçamento foi chumbado – e vamos a eleições, como avisou o PR – por culpa do BE e do PCP. Isto pode não ser completamente verdade, mas parece que é. E é isso que conta.
Do ponto de vista eleitoral, há duas incógnitas relativas ao comportamento dos eleitores. Estes limitar-se-ão a penalizar os aparentes culpados do chumbo do orçamento, BE e PCP, ou tenderão a penalizar a esquerda no seu conjunto, oferecendo uma vitória à direita, mesmo que esta esteja desconjuntada? Uma coisa esta história já assegurou, a não ser que haja um milagre. O Chega vai tornar-se o terceiro partido em peso eleitoral. Veremos até que ponto os eleitores se lembram dos tempos de Passos Coelho. É um facto que Rui Rio não é Passos Coelho, tem uma disposição mais social e poderá ser mais cauteloso na penalização dos mais frágeis e das classes médias. Nada assegura, todavia, que seja Rui Rio o chefe da direita nas próximas eleições. É possível que o PSD se entregue a Rangel e com este virá toda a tralha ultraliberal de que a geringonça nos tinha libertado. Se a direita ganhar as eleições, o BE e o PCP terão contas muito desagradáveis a prestar aos seus eleitores e ao povo de esquerda, digamos assim.
O BE talvez imagine que poderá recuperar a sua antiga imagem de partido jovem, rebelde e movido por causas. O PCP imaginará que voltará a adquirir o seu estatuto anterior à geringonça e apagar a imagem de muleta do PS. Os socialistas fantasiam que mais vale ir a eleições agora, enquanto o PSD está à procura de rumo, do que daqui a um ano, com a direita com a casa arrumada. Pensam ainda que poderão ter o bónus de se livrarem da companhia do PCP e do BE. Não se sabe, no cálculo dos partidos, quanto há de ilusório, mas só um ingénuo acreditará que o chumbo do orçamento se deve ao orçamento.
Se a crise nada tem a ver com o orçamento, o chumbo deste mostra uma outra coisa. A impossibilidade de a esquerda, na sua pluralidade, oferecer uma política coerente para governar o país nas condições em que ele se encontra. E que condições são essas? Pertença à União Europeia e ao Euro, compromissos drásticos com a dívida e uma orientação do mundo para uma visão liberal da economia e das relações laborais. Seis anos não foram suficientes para a esquerda, na sua pluralidade, oferecer um projecto viável para reformar o país. A experiência de 2015 salda-se, deste modo, num rotundo fracasso e mostra aos eleitores que não há um projecto das esquerdas para a governação.
Apesar de a direita estar à procura de rumo, pode acontecer que os cidadãos fiquem zangados com a esquerda, os seus jogos florentinos, a sua real impotência, e a castiguem, como aconteceu nas autárquicas de Lisboa. Pode acontecer que o mirífico Plano de Resiliência e Recuperação mude de administrador, o que daria à direita uma perspectiva de muitos anos na governação. À esquerda brinca-se aos feitiços, mas nada garante que estes não se virarão contra os feiticeiros. Ninguém pode prever, neste momento, a resposta do eleitorado, nem o sentimento de decepção e desânimo que o chumbo do orçamento trará aos eleitores de esquerda, que se sentirão traídos. A traição aos seus eleitores, eis a autêntica convergência das esquerdas nacionais.