terça-feira, 21 de maio de 2024

Cadernos do esquecimento 54 Árvores

Jorge Guerra, Les Arbres, 1982 (Gulbenkian)

São árvores tomadas pelo hálito do Inverto, entregues ao império do frio, tomadas pelo assalto das longas noites. Desmemoriadas, abandonaram as folhas ao ritmo das estações, enquanto ouvem o rumor da natureza e os uivos dos homens. Esperam a hora da ressurreição, o tempo em que a noite se tornará dia e a luz solar inscreverá as suas mensagens secretas na rudeza dos troncos e na incontinência dos ramos. Então, voltarão os pássaros, ali encontrarão abrigo, contra as enxurradas caídas dos céus, os vendavais declinados pelas montanhas, a malevolência nos corações humanos. Enquanto aguardam, as velhas árvores permanecem na cripta da escuridão e oferecem ao mundo o silêncio do esquecimento.

domingo, 19 de maio de 2024

Friedrich de la Motte Fouqué, Ondina

A publicação de Ondina data de 1811. Trata-se de um romance do escritor alemão Friedrich de la Motte Fouqué (1777-1843). Na verdade, é uma espécie de conto de fadas, cuja heroína é um espírito elementar das águas, uma ninfa. É também a história de um triângulo amoroso, passada num tempo indeterminado, mas cujos indícios narrativos parecem apontar para a Idade Média, esse tempo em que havia cavaleiros que disputavam torneios, como Huldbrand, outra das personagens principais da história, e poderosos duques que detinham o poder em certas áreas. O autor insere-se no romantismo e este conto de fadas tem, claramente, motivações românticas. A obra teve múltiplas adaptações para ópera, de onde se podem destacar as de E. T. A. Hofmann, Piotr Tchaikovsky, Antonín Dvořák e Sergei Prokifiev. Contudo, a influência desta obra de La Motte Fouqué não se fica pela ópera. Música erudita, bailado, cinema, literatura, pintura e escultura são outras áreas em que diferentes artistas trabalharam sobre a história de Ondina.

<O primeiro grande tema da obra é a conquista da alma. A inspiração provém, talvez indirectamente, do ocultista Paracelso. Este afirmara, no Livros sobre as ninfas, que as ondinas poderiam ganhar uma alma imortal se se casassem com um ser humano. A questão, porém, pode ser mais do que uma história maravilhosa, onde se cruzam seres de mundos diferentes, como é o caso. É possível fazer uma leitura do romance como uma ilustração de um processo tipicamente humano. No homem, mais do que dada, a alma deveria ser conquistada e conquistada através do amor. Não é o cavaleiro Huldbrand, com quem Ondina casa, nem a rival e amiga de Ondina, Bertalda, que são os arquétipos humanos, mas a ninfa, o espírito das águas. Como ela, todos os seres humanos provêm desse mundo elementar das águas e, ao nascer, abandonam a existência intra-uterina e são lançados no mundo para conquistarem uma alma imortal. Esta leitura do romance, permite contrastar a visão pagã da alma e a visão cristã, na qual a alma imortal é dada, mas precisa de ser salva. De um lado, há uma alma que pode alcançar ou a beatitude ou o castigo, ambos eternos. No outro, a imortalidade da alma é uma conquista a realizar. É plausível pensar que os antigos romances de cavalaria tratavam, através de aventuras alegóricas, essa conquista interior de uma alma que disporia o indivíduo para a imortalidade.

<O segundo grande tema da obra está relacionado com a natureza do compromisso amoroso. O casamento de Huldbrand com Ondina não era apenas uma modalidade de compromisso que fornecia a esta a possibilidade de conquistar uma alma imortal. Trazia para o cavaleiro um perigo mortal. A fidelidade está ligada a um pacto que não poderia ser dissolvido. A trama romanesca vai girar em torno de um triângulo amoroso. Huldbrand é impelido para o lugar onde encontra Ondina pelos desejos de uma bela dama, filha adoptiva de uns duques, Bertalda. Ao deparar com a ninfa, apaixona-se por esta e casa com ela. Quando retorna casado, a figura de Bertalda não desaparece. Pelo contrário, acompanha o casal, tornando-se amiga da rival. Ondina tenta evitar que o mundo elementar interfira na sua vida e na do marido, que se vai deixando reconquistar por Bertalda. É um difícil equilíbrio entre as paixões amorosas e os deveres de fidelidade, tudo isso mediado pela presença do mundo elementar e de um dos seus representantes, um espírito das águas, tio de Ondina, que não vê com bons olhos a atracção entre Huldbrand e Bertalda, estando sempre disposto a vingar a sobrinha. Quando Huldbrand, conhecedor já de que Ondina não seria humana, a repudia, ela volta para o seu mundo, mas a partir daí o cavaleiro corre um grande e decisivo risco, se casar com Bertalda, sem que Ondina tenha morrido.

Este conto maravilhoso é uma exploração romanesca da condição humana, uma viagem à sua constituição, aos elementos que fazem de um ser vindo do mundo líquido intra-uterino um ser humano, com uma alma imortal, isto é, com um horizonte existencial que está para além da mortalidade do animal humano. Esta exploração simbólica da ontologia humana está intimamente relacionada com a questionação do amor, com a análise poética dos laços fundamentais que ligam dois seres, os quais, ao casarem, não estabelecem apenas um pacto civil, um contrato para partilha da vida e dos prazeres eróticos, que, reciprocamente, marido e mulher permitirão ao cônjuge. O casamento é uma alteração ontológica daqueles que se casam, os quais, na verdade, se devem fundir e ser apenas um. A infidelidade não é uma mera quebra de um contrato, mas uma dissolução existencial do ser que tinha emergido do casamento. E aqui, a obra de La Motte Fouqué desagua na torrente romanesca ocidental em que o amor e a morte surgem intimamente ligados. 

sexta-feira, 17 de maio de 2024

O desafio à ordem liberal

 

Assistimos, nos dias de hoje, ao maior desafio que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, foi colocado à cosmovisão liberal. Esta visão do mundo não diz respeito apenas à economia. Ela é, fundamentalmente, uma perspectiva assente nos direitos individuais e em regimes pluralistas. A ordem liberal é aquela em que a liberdade individual é o fundamento da vida em sociedade. Esta visão é uma coisa recente na história da humanidade. Foi-se estruturando, lentamente, na Europa e na América, a partir dos séculos XVII e XVIII. Enfrentou, no século XX, grandes desafios, entre eles as ideologias antiliberais do fascismo, do nazismo e do comunismo. A ordem liberal venceu as primeiras duas em 1945 (fim da Segunda Guerra Mundial) e a terceira em 1989 (queda do Muro de Berlim).

Como é que uma ordem internacional e uma visão do mundo triunfantes parecem decair de modo tão rápido? A Europa e a América liberais terão interiorizado a ideia de fim da história e pensado que o destino dos povos não livres seria o de acederem, com o tempo, a regimes assentes nos direitos indivíduos, na economia de mercado e em democracias representativas. Em 1979, a revolução iraniana fora um aviso que não foi lido no que tinha de anunciador. Foram precisos vinte anos e o ataque às Torres Gémeas para se começar a vislumbrar que a cosmovisão liberal estava sob ataque. A partir daí, foi nascendo uma coligação de potências pouco interessadas nos direitos individuais e na democracia representativa. Com uma novidade. A principal potência despótica não é a de uma economia atrasada, apenas preocupada com a dimensão militar. A China é uma grande potência económica e tecnológica, capaz de fazer frente ao mundo ocidental a todos os níveis.

Ao mesmo tempo que a coligação dos regimes despóticos enfrenta os regimes liberais na arena internacional, no interior das democracias, explorando a liberdade que aí reina, afirmam-se movimentos que, ideologicamente, estão muito mais próximas das potências despóticas do que da cosmovisão liberal. Esta está a ser desafiada não apenas na dimensão geopolítica, onde perde continuamente influência, mas também no interior dos países democráticos pelos partidos e movimentos populistas. A confusão em que parece que vivemos não é outra coisa senão a guerra de uma muito ampla coligação de potências e movimentos contra as liberdades individuais e a visão liberal do mundo e das relações sociais. O que está em jogo é a substituição de um modo de vida, o nosso, onde a liberdade é o bem supremo, por outro onde a liberdade de cada um tem escasso ou nulo valor.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Poemas fluviais 2

Georgia O'keeffe, East river from The Shelton, 1928

No furúnculo da luz, na leve sede da melancolia,

existe um rio esquivo, peixes perdidos

no lodo, a coincidência da terra e da água,

mundos de erva erguidos no patíbulo do esquecimento.

Barcos navegam sob a sombra das ramagens,

cavaleiros sem nome, presos à caruma das horas,

ao aroma de cinza de um Verão de palmeiras.

 

Quando um rio é navegável, a cabeça dos homens

floresce entre o pano, o linho suado,

o triunfo da ardósia solta pelo fervor da ramagem.

Um rio negro, a chama atiçada na alma,

estende os dedos sobre os varais do carro,

devora os canaviais, a vida posta sobre a morte.

 

Rãs soltam-se, erguem castelos na água.

Um peixe voraz assola a cortina da face,

o vestido vermelho das raparigas de domingo.

Na cave deste rio existem pontes,

uma margem estreita sulcada pelas conchas

daquelas mãos soltas e desertas,

presas ao vazio de palavras despovoadas de som.

 

O rio sobe pela cicatriz orgânica, toca-o a lava

rasgada no rosto, ergue-o um sabor de cianeto

enrolado na ambrósia do tempo. Em inúmeras vozes,

abre-se o rio à palavra, ao labirinto de sangue e sílabas,

corroendo as veias, as artérias caiadas no barro,

a poeira fundeada na inóspita caverna da Primavera.

 

Maio de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Fritz von Unruh, O Caminho do Sacrifício

Fritz von Unruh (1895-1970) pertencia a uma família da alta nobreza prussiana, ligada ao mundo militar. Filho de um general, também ele enveredou pela carreira das armas, que abandonou em 1911, para se dedicar à literatura, mas à qual regressou em 1914 com o desencadear da primeira grande guerra. O romance O Caminho do Sacrifício começa por ser uma obra encomendada pela hierarquia militar alemã, para exaltar o espírito heróico alemão numa crónica da batalha de Verdun, onde o autor participa. O romance tem duas versões, uma primeira, ainda no espírito da exaltação patriótica, e uma segunda, a definitiva publicada em 1919, portanto, já depois da guerra acabar. Esta versão é o resultado da evolução do autor, a partir de 1916, em direcção ao pacifismo, influenciado pelo espectáculo de uma guerra onde o combatente perde a sua individualidade e se funde na massa que se afoga no sangue provocado pelo desencontro entre o poder técnico das novas armas e as concepções estratégicas tradicionais. Em vez da exaltação patriótica das virtudes militares, está-se perante uma viagem para o calvário, para o lugar do sacrifício, embora sem que se percebe para que fins salvíficos servirá a expiação daqueles homens.

A orientação expressionista do romance afasta-o das visões realistas de muitos romances focados na primeira grande guerra. O pathos linguístico é uma estratégia – não poucas vezes lírica – para tornar manifesto o absurdo em que aqueles homens vivem. A obra está dividida em quatro partes: (1) A aproximação; (2) As trincheiras; (3) O assalto; (4) O sacrifício. Esta composição sugere uma tragédia em quatro actos, nos quais se assiste não apenas à aproximação e chegada ao centro do combate, mas também à metamorfoses da consciência dos combatentes. O romance desenha um caminho que vai desde o fervor patriótico que conduz os homens para a guerra até ao confronto com a morte e a ausência de significado dessa morte. É plausível pensar que essa metamorfose das consciências seja a do próprio autor, o seu caminho de militar patriótico que retorna ao serviço para ir combater, isto é, servir os desígnios da nação, até ao pacifista em que se torna, perante a experiência absurda da batalha de Verdun.

Na primeira parte, A aproximação, é possível ler o discurso de um capitão para um voluntário: À saúde de todos os voluntários! Tive sob o meu comando uma companhia de estudantes. A flor da juventude foi arrastada pela gloriosa tempestade do povo, como uma explosão de júbilo primaveril. Quando o nosso canto se extinguiu, os campos resplendiam de brancura e claridade. Enterrámos belos corpos. Mas sentíamos: o fruto maduro há-de vir um dia. Será grande a colheita! A poeticidade com que a morte é descrita, apesar da ironia que nela já se faz sentir, culmina com a expectativa de uma grande colheita, como se os mortos fossem sementes que, ao morrer, se multiplicariam sem fim. Ou quando um dos militares escreve para a mulher: Sabes o que este mar significa para o combatente? A ofensiva, pressentimo-la; mas e para lá da procela? Minha querida, adivinhas o que me atrai lá longe sob o sol benfazejo? Tu sabes. Oh, pudesse eu antes beijar a penugem dourada do meu bebé! A liberdade por que lutamos, há-de ele respirá-la. Deus abençoe o teu corpo; se for rapaz, cria-o livre e justo. Também aqui se desenha um princípio de esperança, a crença que haverá um além da guerra e uma a justiça que esta, supostamente, trará consigo.

A obra conta a história de um grupo de militares que são figuras arquetípicas de todos aqueles que fazem o caminho da retaguarda para a frente. A esperança move-os. O decorrer da acção, a chegada ao lugar de combate vai desligar a conexão ideológica entre esperança e guerra. A esperança inicial torna-se, na parte final, a constatação de que toda a guerra é um exercício niilista e não o lugar onde se manifesta o valor supremo da heroicidade: Quando a manhã pôs a nu o horror do campo de batalha, Fips ergueu-se do seu buraco de granada e mediu com o olhar a imensidade da mutilação: «Salvo o devido respeito pelos nossos veneráveis ideais, pergunto: porquê? Primeiro a aproximação furtiva, depois um alarido extraordinário e - passado tudo isso - que ficou? Praticamente nada, além de uma assembleia muda onde já ninguém tem voz. Porque tombastes? Por Verdun? Permiti-me então que vos faça uma declaração póstuma: teria preferido que Verdun caísse e não vós!» A ironia é agora tenebrosa, nela não existe qualquer esperança, nem se vê naqueles mortos a semente de uma grande colheita, nem são pintados como paladinos da liberdade. São apenas mortos que perderam a voz numa assembleia muda.

Fritz von Unruh rompe, no seu romance, com o elo entre o sacrifício e a salvação. Fá-lo recorrendo a estratégias narrativas diversas, pondo na boca das personagens discursos que vão do lirismo poético à reflexão filosofante, por vezes, raiando a mística. Esta combinação discursiva de poesia, filosofia e mística é o operador que permite dar a ver a guerra na sua crueza, que a mostra não como uma grande cerimónia religiosa de superação de si e de salvação, mas o exercício de potências maléficas que se manifestam na ausência de sentido daqueles actos que levam a morte a inimigos que, na verdade, nunca fizeram mal a quem os combate. O horizonte do sacrifício na guerra, naquela guerra em particular, é a expiação de um mal de que se desconhece a real origem, pura perdição do corpo entrega à morte e da alma que perdeu a capacidade de encontrar sentido entre aquilo que não o tinha. 

sábado, 11 de maio de 2024

Nocturnos 118

Jonas Umbach, Nächtliche Szene in zwei Grotten mit antiken Sarkophagen

A noite é uma gruta onde a morte se abriga para meditar sobre a sua tarefa sem fim. Esconde-se do júbilo da vida e tece as armadilhas que, incansável, lança no caminho daqueles que foram trazido à existência e deverão retornar, cedo ou tarde, a esse lugar de onde, incógnitos, partiram.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

O progresso moral da humanidade (17)

Max Beckmann, The Martyrdom, 1919

Não é preciso largar, num qualquer coliseu, alguém às feras, basta que caia no poço sem fundo do ressentimento da massa, no ódio que se fortalece pelo número dos que se juntam para o grande festim do mal. A praça pública é sempre uma arena em potência, onde, desprevenida, a vítima sacrificial é apanhada pela fúria da multidão, que se alimenta do espectáculo da dor, do prazer da agonia. A frágil pele da conduta civilizada depressa se rasga e, como um véu que se abre, oferece aos olhos do espectador incauto o tenebroso teatro que se esconde na melancolia dos dias pacíficos.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Ensaio sobre a luz (117)

Edward Hopper, Squam Light, 1912
Metamorfoses da luz criam paisagens sonâmbulos perante olhos em êxtase. Onde se pensa a solidez da matéria, onde se crê a constâncias das coisas, apenas existe um jogo de cores, um texto de ondas luminosas, ordenado segundo uma sintaxe esquiva, a criação de sentidos pela ordenação das letras de um alfabeto nascido na declinação da luz solar.

domingo, 5 de maio de 2024

Poemas fluviais 1

Domenico Quaglio, The Younger, View of Frankfurt/Main, 1831

Na cidade, um rio de náuseas,

orquestra de rãs, flores aquáticas,

jardim de sombra na luz do coração.

Pulula nas águas

uma geração fortuita e sem dinastia,

uma geração de água colorida,

presa na sede de um vinho fatal.

 

Era um mundo de barcos e âncoras,

uma saraivada de remos

rompia a superfície das águas.

Navegavam homens inexoráveis,

roídos pelo despeito,

a dor da vida exígua,

o enjoo célere da idade.

 

Pende o rio sob o coração aprazado,

a ânsia do astro,

aberto e cru, ferido no peito.

Um esgoto ébrio, a céu aberto,

inunda as casas na brancura do dia,

a memória dessas casas,

as janelas pardas de cinza e poeira.

 

Nos dias do equinócio,

vinha o curso tenso do rio

desempatar o dia e a noite,

abrir a clareira do mundo,

eterna revolução de luz e trevas.

 

É um rio equinocial,

preso na órbita elíptica da terra.

Perante o suor do homem,

arvora a água escura,

peixes com travo químico,

o olhar de hidrogénio adormecido,

promessas de mercúrio

erguidas na novidade mortal.

 

Rio de letras, sílabas desaguadas

ferem o coração da mão que escreve.

Rio desamparado,

caído do braço armado do livro.

Rio sem margens,

suspenso do voo do corvo,

sem choupos, sem salgueiros,

sem o verde dos campos no horizonte.

 

Rio animal que se prende

à luz desta língua e sobrevive,

abre-se à voragem

da noite suspensa sobre a cabeça.

É um cutelo abrindo a paisagem,

desbrava a cal e a pedra.

Adormece na seda do estuário.

 

Abril de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

sexta-feira, 3 de maio de 2024

25 de Abril e 25 de Novembro

 

Por que razão a França só comemora o 14 de Julho, o início da Revolução Francesa, e não o 27 ou 28 de Julho? O que aconteceu a 27 ou 28 de Julho de tão importante? A 27 de Julho de 1794, Maximilien Robespierre foi preso e a 28, sem julgamento, foi executado. A França libertava-se do regime do Terror, um regime sangrento, onde muitos milhares de franceses (talvez entre 16 mil e 40 mil) foram guilhotinados. Os franceses, porém, não vêem a libertação no fim da deriva extremista da Revolução Francesa, mas no seu dia inaugural. Ora, em Portugal, sítio onde nada de semelhante se viveu, parece que uma parte das elites políticas de direita precisa do aconchego do 25 de Novembro para engolir a pílula amarga do 25 de Abril. Por que será?

Em França, tanto os jacobinos de Robespierre (os radicais) como os girondinos (os moderados) estiveram do lado da Revolução. Ambos se reconheciam no 14 de Julho. Em Portugal, em 1974, as coisas não foram assim. Com honrosas excepções, como as de Nuno Rodrigues dos Santos, Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e mais uns quantos velhos republicanos e ex-deputados da ala liberal da Assembleia Nacional ou, mais atrás, figuras como Cunha Leal, Jaime Cortesão, Azevedo Gomes e, por certo, Norton de Matos e Humberto Delgado, toda a direita estava com o regime caído a 25 de Abril. Não houve uma tradição consistente da direita democrática em oposição à ditadura. Quando se dá o 25 de Abril, a oposição era quase toda (mas não toda) de esquerda (com vários matizes), não havendo uma direita democrática organizada.


Parte da direita não se reconhece no 25 de Abril, não por causa da deriva revolucionária e do gonçalvismo, mas por aquilo que a data representa: o fim da ditadura e a abertura do caminho para uma autêntica democracia representativa. O 25 de Novembro é usado para tapar a grande decepção que foi o fim do regime do Estado Novo. O mais estranho é que mesmo o 25 de Novembro foi arquitectado e dirigido por militares e políticos de esquerda, a começar por Mário Soares e a acabar no General Costa Gomes, para não falar em Vasco Lourenço ou Melo Antunes. O 25 de Novembro teve dois derrotados. A extrema-esquerda militar e civil, mas também a extrema-direita que queria aproveitar o momento para ilegalizar o PCP e outros partidos à esquerda do PCP. O 25 de Novembro não pôs fim a nenhum regime de Terror nem a nenhuma ditadura, que não existiam. Serviu para baixar a elevada tensão política no país, eliminar a influência esquerdista nos militares e pôr ordem nos quartéis. Foi uma correcção e um ajustamento, não uma libertação. Dia da libertação só há um, o 25 de Abril e mais nenhum. 

quarta-feira, 1 de maio de 2024

A clivagem política de hoje

 

Durante muito tempo a clivagem política nas democracias opunha a direita e a esquerda, em que a primeira combinava o conservadorismo nos costumes e o liberalismo na economia, enquanto a segunda era mais liberal nos costumes e mais interventora no domínio económico. Emergiu na Europa – e agora em Portugal – outra clivagem, a qual está a apagar a anterior. Não porque as diferenças entre direita e esquerda tenham desaparecido, mas porque estão a ser ultrapassadas por uma dicotomia muito mais dramática entre aqueles que defendem a democracia e os que a pretendem destruir como caminho para a instauração de um regime autoritário ou, pelo menos, de uma democracia iliberal, isto é, um regime que tem a aparência democrática, mas que subverte as regras da democracia.

A democracia liberal – ou democracia representativa – sempre teve inimigos, tanto à direita como à esquerda. As duas formas mais radicais de contestação da democracia – tanto à direita como à esquerda – coincidiam na negação das liberdades individuais, tanto políticas como civis. Vive-se, nos dias de hoje, um momento de ocaso das esquerdas iliberais e mesmo das esquerdas que, não rejeitando a democracia liberal, gostariam de a superar. A grande ameaça vem, actualmente, das direitas radicais e populistas. Estas, na sua retórica quotidiana, parecem – como é o caso português – estar em guerra com as esquerdas, mas isso é apenas uma máscara. Sabem perfeitamente que as esquerda não têm peso político substancial para ser alternativa de governo. Poderão ser um apoio a governos timidamente socialistas, mas não têm qualquer capacidade para impor uma agenda política que entre em conflito com a democracia liberal.

A retórica anticomunista e anti-socialista da direita radical e populista tem outros objectivos. Visa extremar a sociedade, dividindo-a em dois blocos inimigos, como passo decisivo para a atingir a sua meta, a destruição do regime democrático. O alvo é a democracia liberal e a cultura liberal. A grande divisão política, nos dias de hoje, é entre os que, à esquerda e à direita, defendem uma visão liberal e tolerante da política e da vida social, e aqueles que pretendem destruir essa visão, substituindo-a pelo autoritarismo político e por um feroz controlo social das vidas particulares. Em palavras mais simples, o jogo político trava-se entre os que defendem o regime democrático e aqueles que, aproveitando-se dele, trabalham a cada instante, através de uma falsificação continuada da realidade, para o destruir.