domingo, 5 de maio de 2024

Poemas fluviais 1

Domenico Quaglio, The Younger, View of Frankfurt/Main, 1831

Na cidade, um rio de náuseas,

orquestra de rãs, flores aquáticas,

jardim de sombra na luz do coração.

Pulula nas águas

uma geração fortuita e sem dinastia,

uma geração de água colorida,

presa na sede de um vinho fatal.

 

Era um mundo de barcos e âncoras,

uma saraivada de remos

rompia a superfície das águas.

Navegavam homens inexoráveis,

roídos pelo despeito,

a dor da vida exígua,

o enjoo célere da idade.

 

Pende o rio sob o coração aprazado,

a ânsia do astro,

aberto e cru, ferido no peito.

Um esgoto ébrio, a céu aberto,

inunda as casas na brancura do dia,

a memória dessas casas,

as janelas pardas de cinza e poeira.

 

Nos dias do equinócio,

vinha o curso tenso do rio

desempatar o dia e a noite,

abrir a clareira do mundo,

eterna revolução de luz e trevas.

 

É um rio equinocial,

preso na órbita elíptica da terra.

Perante o suor do homem,

arvora a água escura,

peixes com travo químico,

o olhar de hidrogénio adormecido,

promessas de mercúrio

erguidas na novidade mortal.

 

Rio de letras, sílabas desaguadas

ferem o coração da mão que escreve.

Rio desamparado,

caído do braço armado do livro.

Rio sem margens,

suspenso do voo do corvo,

sem choupos, sem salgueiros,

sem o verde dos campos no horizonte.

 

Rio animal que se prende

à luz desta língua e sobrevive,

abre-se à voragem

da noite suspensa sobre a cabeça.

É um cutelo abrindo a paisagem,

desbrava a cal e a pedra.

Adormece na seda do estuário.

 

Abril de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.