quarta-feira, 15 de maio de 2024

Poemas fluviais 2

Georgia O'keeffe, East river from The Shelton, 1928

No furúnculo da luz, na leve sede da melancolia,

existe um rio esquivo, peixes perdidos

no lodo, a coincidência da terra e da água,

mundos de erva erguidos no patíbulo do esquecimento.

Barcos navegam sob a sombra das ramagens,

cavaleiros sem nome, presos à caruma das horas,

ao aroma de cinza de um Verão de palmeiras.

 

Quando um rio é navegável, a cabeça dos homens

floresce entre o pano, o linho suado,

o triunfo da ardósia solta pelo fervor da ramagem.

Um rio negro, a chama atiçada na alma,

estende os dedos sobre os varais do carro,

devora os canaviais, a vida posta sobre a morte.

 

Rãs soltam-se, erguem castelos na água.

Um peixe voraz assola a cortina da face,

o vestido vermelho das raparigas de domingo.

Na cave deste rio existem pontes,

uma margem estreita sulcada pelas conchas

daquelas mãos soltas e desertas,

presas ao vazio de palavras despovoadas de som.

 

O rio sobe pela cicatriz orgânica, toca-o a lava

rasgada no rosto, ergue-o um sabor de cianeto

enrolado na ambrósia do tempo. Em inúmeras vozes,

abre-se o rio à palavra, ao labirinto de sangue e sílabas,

corroendo as veias, as artérias caiadas no barro,

a poeira fundeada na inóspita caverna da Primavera.

 

Maio de 1993

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

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