Anónimo - Papa Clemente XI
Na Apresentação, que Frederico Lourenço antepõe ao primeiro volume da
sua tradução da Bíblia do grego, é chamada a atenção para uma situação que, ainda
hoje, nos ajuda a compreender uma clausura cultural que encerra Portugal
num ainda não ultrapassado paroquialismo. O tradutor sublinha que o século
XVIII não foi um tempo muito propício para a leitura individual da Bíblia nos
países católicos. Em 1713, o papa
Clemente XI, na bula Unigenitus (§§
79,80), estabeleceu como falsa a ideia de que todos os cristãos têm vantagem em
ler a Bíblia e explicitou, ainda que o acesso à leitura da Bíblia não deve ser
outorgado a qualquer pessoa. De certa forma, a Bíblia, nos países católicos, entrou para o próprio Índex. Uma das consequências, em Portugal, desta
posição papal resultou na interdição de publicar no nosso país, em pleno Século
das Luzes, a primeira tradução portuguesa da Bíblia, por João Ferreira de
Almeida, levada a cabo ainda no século XVII.
Esta pequena história, aliada à nossa localização periférica na Europa,
diz-nos muito sobre a decadência cultural e o fechamento do país, os quais não
deixam de se sentir ainda hoje, como, por exemplo, no desprezo com que a
direita portuguesa tratou a questão dos quadros de Joan Miró ou, a dificuldade
da esquerda, mas também da direita nacional, em valorizar o papel do indivíduo
e da sua iniciativa.
A oposição da Igreja Católica à leitura individual da Bíblia tem de
imediato duas consequências. Vai atrasar, até aos dias de hoje, três séculos
passados, o processo de escolarização dos portugueses. Por muito que certos
corifeus do partido da anti-escolarização continuem a indignar-se e a gritar
contra a importância dada à educação, a verdade é que o pouco relevo da
educação escolar em Portugal, nos últimos 300 anos – as excepções são a I
República e o regime democrático pós-25 de Abril –, é uma das causas do nosso
persistente atraso. Uma outra consequência não é menos devastadora. A leitura
individual da Bíblia poderia ter sido, naqueles dias, um factor de desenvolvimento
de uma consciência individual crítica, capaz de autonomia e, por isso mesmo,
capaz de iniciativa. Capaz também de cortar com uma cultura de protecção de amigos e
famílias (onde se incluem as políticas), quando não de quadrilha. A Igreja Católica mudou de posição, o Estado português começou a levar a sério a educação, mas o tipo da cultura herdada daqueles dias contínua a pesar sobre todos nós.