sexta-feira, 5 de junho de 2020

Carlos de Oliveira, Casa na Duna


Publicado em 1943, o romance Casa na Duna terá tido a sua versão final na edição de 1980, pouco antes da morte do autor, Carlos Oliveira. Muitas das abordagens da obra do romancista nascido no Brasil salientam a sua fidelidade ao neo-realismo e a preocupação com temáticas de índole social e política. Isso não é falso neste primeiro romance, pois o retrato social da Gândara, o lugar geográfico no qual é situada a aldeia de Corrocorvo, onde se desenrola a narrativa, está muito presente e a política aflora aqui e ali, transportada por um médico, uma personagem secundária na trama narrativa. Não deixa de ser significativa esta natureza secundária da presença da política na obra, pois parece ser uma clara opção por motivos estéticos e literários e não tanto por questões políticas, como o medo da censura. Reler o livro quase oitenta anos após a sua publicação, desligado já do contexto social e político em que ele apareceu, e cuja sombra se projectou por décadas, dá ao leitor oportunidade para olhar para outros aspectos de natureza metafísica e não tanto social ou política, porventura mais estruturantes e fundamentais na economia da obra.

A fragilidade do mundo humano e o efeito corrosivo do tempo emergem como as temáticas centrais. Essa fragilidade do mundo dos homens é dada de imediato, como se fosse uma síntese das preocupações do romance, no título. Construir uma casa na duna coloca-nos de imediato perante uma construção na areia. O fundamento onde o mundo se constrói é movediço, vacilante, infirme. Tudo o que nele se constrói cairá, será dissolvido pelo tempo, que trará novas possibilidades e outras areias, onde outras casas se construirão. A esta fragilidade ontológica do mundo corresponde uma outra, a dos homens, tanto enquanto indivíduos presos na sua singularidade como enquanto linhagens. O destino de Mariano Paulo no fim da vida ou o do filho Hilário, desde o início marcado pela morte da mãe na altura do seu nascimento, mostram a fragilidade dos indivíduos, por fortes que tenham sido, como é o caso do pai. No entanto, se há coisa que o romance tematiza claramente é o da ilusão da linhagem. Desde o fundador da riqueza do clã dos Paulos, Silvério Coxo, até ao desabamento em Hilário, o que se torna patente é que as virtudes – por pouco virtuosas que elas sejam – que presidem às hierarquias humanas não são transmissíveis. Elas emergem da noite obscura do tempo para, passadas algumas gerações, desaparecerem nessa mesma obscuridade.

Se o título da obra é um indicador não desprezível da sua orientação, a morte da mãe de Hilário e mulher de Mariano tem uma força simbólica e premonitória que ultrapassa o puro facto da morte. Ela é a grande personagem ausente e, ao mesmo tempo, a anunciação de um fim. Vinda de fora do clã dos Paulos deveria ter por função reforçar e renovar a linhagem. A sua morte, porém, emerge como uma sombra sobre a casa e um prenúncio do destino. O herdeiro nunca soube como lidar com aquela ausência. E quanto maior era a sua ausência, maior era a incapacidade de Hilário se relacionar com os outros e a realidade. Ela é, dessa forma, a personagem mais forte de todo o romance, não por alguma peculiaridade de carácter que se tenha revelado ainda em vida, mas por ser pura ausência, uma pólo atractor da realidade, um buraco negro onde desaparece a luz.

Outra personagem central na trama narrativa é o próprio tempo. Durante parte considerável da narrativa ele está oculto, parece não passar. As relações sociais mantêm-se imutáveis, Mariano Paulo resiste à mecanização da propriedade, à intromissão do tempo nos negócios humanos. Depois, a abertura de uma estrada, a comunicação da aldeia com o mundo envolvente, revela o tempo, a sua passagem, e tudo se torna anacrónico, perante o que vem de fora. Esta metáfora é interpretada muitas vezes como uma referência indirecta à situação política do país. Não será falsa essa interpretação, mas falhará o essencial. O que se revela ali é a condição humana, a situação em que todos vivemos no tempo sem dele ter consciência para, por uma súbita revelação, o descobrirmos e descobrirmos os seus efeitos sobre nós. A duna onde se instalou a casa mais do que de areia era feita de tempo. Durante muito tempo persistiu a ilusão de que era um chão sólido, pois ninguém percebia a passagem do tempo. Quando um acontecimento banal como a abertura de uma estrada o revela, torna-se manifesto que cairá toda a casa construída no tempo, na areia da temporalidade, e é isso que Casa na Duna deixa ver.

4 comentários:

  1. Pelo descrito no texto, acredito que seja um romance interessante de ler
    .
    Saudações poéticas
    Bom fim de semana.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, é um romance interessante.

      Saudações.

      Bom fim-de-semana.

      Eliminar
  2. Foi bom reavivar uma memória de décadas.

    Abraço

    ResponderEliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.