Publicado em 1943, o romance Casa na Duna terá tido a sua versão final na edição de 1980, pouco
antes da morte do autor, Carlos Oliveira. Muitas das abordagens da obra do
romancista nascido no Brasil salientam a sua fidelidade ao neo-realismo e a preocupação
com temáticas de índole social e política. Isso não é falso neste primeiro
romance, pois o retrato social da Gândara, o lugar geográfico no qual é situada
a aldeia de Corrocorvo, onde se desenrola a narrativa, está muito presente e a política
aflora aqui e ali, transportada por um médico, uma personagem secundária na
trama narrativa. Não deixa de ser significativa esta natureza secundária da presença
da política na obra, pois parece ser uma clara opção por motivos estéticos e
literários e não tanto por questões políticas, como o medo da censura. Reler o
livro quase oitenta anos após a sua publicação, desligado já do contexto social
e político em que ele apareceu, e cuja sombra se projectou por décadas, dá ao
leitor oportunidade para olhar para outros aspectos de natureza metafísica e não
tanto social ou política, porventura mais estruturantes e fundamentais na economia
da obra.
A fragilidade do mundo humano e o efeito corrosivo do tempo
emergem como as temáticas centrais. Essa fragilidade do mundo dos homens é dada
de imediato, como se fosse uma síntese das preocupações do romance, no título.
Construir uma casa na duna coloca-nos de imediato perante uma construção na
areia. O fundamento onde o mundo se constrói é movediço, vacilante, infirme. Tudo
o que nele se constrói cairá, será dissolvido pelo tempo, que trará novas
possibilidades e outras areias, onde outras casas se construirão. A esta
fragilidade ontológica do mundo corresponde uma outra, a dos homens, tanto
enquanto indivíduos presos na sua singularidade como enquanto linhagens. O
destino de Mariano Paulo no fim da vida ou o do filho Hilário, desde o início
marcado pela morte da mãe na altura do seu nascimento, mostram a fragilidade
dos indivíduos, por fortes que tenham sido, como é o caso do pai. No entanto, se
há coisa que o romance tematiza claramente é o da ilusão da linhagem. Desde o
fundador da riqueza do clã dos Paulos, Silvério Coxo, até ao desabamento em
Hilário, o que se torna patente é que as virtudes – por pouco virtuosas que
elas sejam – que presidem às hierarquias humanas não são transmissíveis. Elas
emergem da noite obscura do tempo para, passadas algumas gerações,
desaparecerem nessa mesma obscuridade.
Se o título da obra é um indicador não desprezível da sua
orientação, a morte da mãe de Hilário e mulher de Mariano tem uma força
simbólica e premonitória que ultrapassa o puro facto da morte. Ela é a grande
personagem ausente e, ao mesmo tempo, a anunciação de um fim. Vinda de fora do
clã dos Paulos deveria ter por função reforçar e renovar a linhagem. A sua
morte, porém, emerge como uma sombra sobre a casa e um prenúncio do destino. O
herdeiro nunca soube como lidar com aquela ausência. E quanto maior era a sua
ausência, maior era a incapacidade de Hilário se relacionar com os outros e a
realidade. Ela é, dessa forma, a personagem mais forte de todo o romance, não
por alguma peculiaridade de carácter que se tenha revelado ainda em vida, mas
por ser pura ausência, uma pólo atractor da realidade, um buraco negro onde
desaparece a luz.
Outra personagem central na trama narrativa é o próprio
tempo. Durante parte considerável da narrativa ele está oculto, parece não
passar. As relações sociais mantêm-se imutáveis, Mariano Paulo resiste à
mecanização da propriedade, à intromissão do tempo nos negócios humanos. Depois,
a abertura de uma estrada, a comunicação da aldeia com o mundo envolvente,
revela o tempo, a sua passagem, e tudo se torna anacrónico, perante o que vem
de fora. Esta metáfora é interpretada muitas vezes como uma referência
indirecta à situação política do país. Não será falsa essa interpretação, mas
falhará o essencial. O que se revela ali é a condição humana, a situação em que
todos vivemos no tempo sem dele ter consciência para, por uma súbita revelação,
o descobrirmos e descobrirmos os seus efeitos sobre nós. A duna onde se instalou
a casa mais do que de areia era feita de tempo. Durante muito tempo persistiu a
ilusão de que era um chão sólido, pois ninguém percebia a passagem do tempo. Quando
um acontecimento banal como a abertura de uma estrada o revela, torna-se
manifesto que cairá toda a casa construída no tempo, na areia da temporalidade,
e é isso que Casa na Duna deixa ver.
Pelo descrito no texto, acredito que seja um romance interessante de ler
ResponderEliminar.
Saudações poéticas
Bom fim de semana.
Sim, é um romance interessante.
EliminarSaudações.
Bom fim-de-semana.
Foi bom reavivar uma memória de décadas.
ResponderEliminarAbraço
Óptimo.
EliminarAbraço