O Jardim dos
Finzi-Contini, o mais importante romance do italiano Giorgio Bassani,
originário da comunidade judaica de Ferrara, é uma dupla incursão no tempo.
Como uma rememoração tardia de algo que se passou há duas ou três décadas é um
confronto com o calendário, com uma duração que se estrutura em passado,
presente e futuro, o tempo cronológico, o qual se convencionou que ordenaria a
vida dos homens, nem que fosse para lhe determinar a duração e assinalar o
tempo de trabalho, de festa e de ócio. No entanto, essa rememoração, esse
mergulho no passado, tem por objecto uma confrontação com uma outra forma de
compreender o tempo a que os gregos deram o nome de Kairós, o tempo oportuno, esse momento em que se dá uma abertura na
realidade para que algo aconteça.
A rememoração do passado a que o narrador se entrega dá-se
no final dos anos cinquenta do século passado, enquanto os acontecimentos
objecto da anamnese decorrem antes do início da segunda guerra mundial e
passam-se no interior da comunidade judaica de Ferrara, que até à chegada das
leis raciais promulgadas pelo governo fascista de Benito Mussolini se
encontrava completamente integrada, de tal maneira que muitos judeus, como o
próprio pai do narrador, estavam inscritos no partido fascista. São as leis
raciais, inspiradas pela paranóia nazi, que alteram essa integração das boas
famílias judias nos círculos mais distintos de Ferrara, que confinaram alguns
jovens judeus, mas não só, no jardim do palácio dos Finzi-Contini, também eles
judeus, mas que mantiveram sempre uma distância aristocrática com a comunidade
judaica e com as autoridades fascistas.
O romance abre praticamente com a revelação, durante uma
visita inopinada em 1957 ao mausoléu dos Finzi-Contini, do destino trágico da
família. Alberto, amigo do narrador, morrera cedo com um linfoma, ainda antes
da deportação em massa dos judeus para campos de concentração na Alemanha, para
onde foram enviados o pai, a mãe e a irmã, Micol. Nenhum sobreviveu. O romance
contudo não se centra na crescente ameaça que paira sobre a comunidade judaica,
embora esse ameaça esteja omnipresente, como se fora o cenário onde as relações
do narrador, cujo nome nunca se chega a saber, com a família Finzi-Contini, em especial
com a belíssima Micol, se desenrolam.
A narrativa rememoradora das relações entre o narrador e
Micol centra-se, embora de forma sub-reptícia, sobre o Kairós, sobre o momento oportuno. Qual o instante em que o coração
de uma mulher se abre para um homem? Falhar esse momento, não entrar pela
abertura na hora em que ela se dá, tem como consequência falhar o amor. O
narrador ao contar os diversos episódios das relações entre ambos, relações que
começam ainda em crianças e que se prolongam até à idade de jovens universitários, interroga-se
se num certo momento não deveria ter beijado Micol, se não teria sido essa a
hora em que o coração dela seria a porta que ele atravessaria em direcção ao
seu corpo. Perdida a oportunidade, o que se descobre é que esse corpo se torna
numa muralha inexpugnável.
Rememorar seja o que for significa coloca-lo à distância,
instituir um afastamento, o que no caso das relações entre o narrador e Micol é
o selar de um triplo afastamento. O primeiro trazido pela eventual perda do momento
oportuno, fruto de um desacerto na relação com o Kairós, o segundo trazido pela história e consumado com a morte de
Micol num campo de concentração e o último, o que certifica a realidade
definitiva do afastamento através do deambular da memória pelos campos do
passado, uma memória que é detonada pelo monumental, embora horrível, jazigo
quase vazio dos Finzi-Contini. O facto do corpo de Micol morta não se encontrar
ali acaba, porém, por tornar quase irreal a sua existência, bem como tudo
aquilo que o narrador viveu nas sua relação com a família dos Finzi-Contini. A
rememoração tem um efeito terapêutico, libertando aquele que a ela recorre dos
miasmas que lhe poluem a consciência, entregando os mortos à sua morte e
limpando o futuro dos vivos das sombras que o passado nele projecta.
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