segunda-feira, 31 de julho de 2023

Nocturnos 105

Adriano de Sousa Lopes, Noite no canal (aqui)
Noite escrita com águas escuras, noite tinta com o sangue negro do carvão, noite tecida como uma paisagem aberta para amantes solitários. Nos céus, as estrelas organizam-se segundo uma gramática astral, para formarem constelações unidas pela sintaxe da luz. Depois, enchem a terra com sombras, o vestígio luminoso que toca as águas com sangue negro dos amantes presos na solidão.

sábado, 29 de julho de 2023

Cardílio (24 sonetos) 20

Cópia romana de estátua grega, amazona ferida

Naquele tempo, vinhas por atalhos,

Castanheiros na estrada debruçados,

Laivos de cinza e luz em flores tardias,

Tocadas pela sombra das colinas.

 

Na leveza dos dias que acres corriam,

Nas horas cintilantes em que a chuva

Na terra desabava, sopravam ventos

Sobre o rasto dos campos abandonados.

 

Era o tempo dos mortos, das vielas

Incendiadas, horas perseguidas

Pelo orvalho azul da madrugada.

 

Entre a melancolia da erva-canária,

Entre as pedras perdidas do passado,

Ergues-te como um sonho esquecido.


2007

 

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Simulacros e simulações (53)

Alberto Carneiro, Árvore Jogo-Lúdico em Sete Imagens Espelhada, 1974 (aqui)

A nostalgia é um sentimento que se constrói no devir de uma comunidade, onde uma tradição se foi enraizando ao longo das gerações e se tornou uma segundo natureza, natureza naturada pelo tempo e pela repetição. Quando se destrói um elemento de uma paisagem que parecia eterna, a nostalgia manifesta-se simulando fora do contexto aquilo que teve sentido e que, arrancado ao lugar a que pertencia, dele foi privado.

terça-feira, 25 de julho de 2023

O poder e o político

James Ensor, Demons teasing me, 1895
 
Uma das coisas mais caricatas que corre inflamada pelas bocas é a acusação de que certo político só se interessa pelo poder. António Costa foi um dos acusados, aquando da geringonça, agora é Pedro Sanchez, em Espanha, por não viabilizar um governo do Partido Popular e estar a tentar encontrar uma solução política para a governação. Esta acusação é tão estúpida como acusar os mamíferos recém-nascidos de mamarem. Na verdade, não passa de uma estratégia patética para alcançar o poder de quem não tem as condições necessárias – por exemplo, o apoio maioritário no parlamento – para o ocupar. Os políticos, digam-no ou não, movem-se sempre pelo poder, só este lhes dá sentido. Um político que renuncie ao poder deixa de ser um político. Veja-se o caso de António Guterres. Sem o poder ou sem a expectativa de o vir a alcançar, um político vale zero, por mais princípios que proclame ou por mais loas morais que entoe ou lhe entoem. Isto significa que vale tudo em política? Significa isso mesmo, como a história o mostra. Vale tudo numa democracia e num estado de direito para alcançar o poder? Sim, desde que esteja de acordo com a constituição e as regras do Estado de direito, o que significa já uma enorme limitação das manobras possíveis para alcançar e manter o poder. Quem quer a glória dos altares vai para o convento, não entra na política. Quem quer dar lições de moral escreve tratados de ética e não entra na política. A única coisa que, verdadeiramente, motiva um político é o poder, pois sem ele nenhuma ideia, magnífica que seja, tem realização. Isto vale tanto para os políticos de esquerda como de direita, tanto para os do centro como para os dos extremos, tanto para os democráticos como para os autoritários. 

domingo, 23 de julho de 2023

Ensaio sobre a luz (104)

J.H. Field, April, 1903

Perdida na floresta, a luz descobre-se reflectida nas águas do rio. Flutua como uma promessa, resguarda-se como um segredo. Se uns olhos poisam sobre ela, resplandece como a aurora ao anunciar o novo dia.

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Fora de controlo


Imagine-se um qualquer fenómeno adictivo. Por exemplo, o consumo de drogas. O que acontece, aos que ficam presos na adicção, é que a princípio pensavam estar perante meras experiências e que, quando quisessem, pôr-lhes-iam fim. A verdade, porém, é que a partir de certa altura é a droga que controla a vontade da pessoa e não o contrário. Esta experiência da vida dos indivíduos encontra um paralelo na vida das comunidades. Existem certos fenómenos que parecem estar sob o controlo humano, mas que a partir de um certo momento ganham autonomia e, como uma adicção, acabam por subjugar esses mesmos seres humanos.

As alterações climáticas são um caso em que se vê a presença deste padrão. Por um lado, parece cada vez mais claro que essas alterações induzidas pela actividade humana estão fora de controlo humano. O clima sempre esteve fora do domínio dos homens, mas os efeitos da intervenção humana tornaram essa situação ainda mais problemática. Por outro lado, os comportamentos humanos que induzem às alterações climáticas entraram também na situação de adicção. A humanidade não consegue ter mão no seu desejo insaciável de consumo. Não há político que, para ganhar eleições, não prometa maior crescimento económico e a possibilidade de aumentar o consumo.

Um outro fenómeno que começa a estar fora de controlo é o crescimento da extrema-direita e da direita radical. Começou como um voto de protesto, uma espécie de brincadeira para assustar os partidos institucionais, mas os eleitores, muito cedo ficaram fascinados por aquilo que há de mais irracional e bárbaro nesses programas. A opção por políticas perigosas está, neste momento, a passar a fronteira que separa uma opção de uma adicção. Partes substanciais dos eleitorados das democracias ocidentais deixam-se fascinar por retóricas simplistas que escondem as piores tempestades. A continuar assim, e nada indica o contrário, não tarda e chegaremos ao momento em que o crescimento da extrema-direita estará fora de controlo.

As grandes catástrofes da história humana têm esta marca. Começam de modo insignificante, os acontecimentos parecem ser dirigidos por seres humanos, mas, a partir de certa altura, esses acontecimentos ganham autonomia e desabam sobre os homens do modo incontrolado, como se fossem um castigo pela sua insensatez. É o que parece estar a acontecer. Seja na questão climática, seja na questão política, os sinais são os piores, indicando que, até pelo efeito da conjugação dos dois fenómenos, o descontrolo da situação será total e que só podemos esperar o pior. 

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Cardílio (24 sonetos) 19

Anónimo romano, Fresco de Aquiles en Skyros

A sentença feroz do deus, Cardílio,

Em ti se abateu. És caduca árvore

Que as folhas não reténs, ardósia frágil

Que ao vento se derrama. Nem a chama

 

Das horas te ilumina, nem as ervas

Do seco chão se curvam na voragem

De teus pés, tão despidos na planície,

Que para última casa então te deram.

 

Tribunal inflexível te julgou

No fulgor da manhã. Rude destino

Os deuses declinaram em teu rosto.

 

Nada escutas e nada sabes, pálido

Guerreiro de batalhas desvairadas,

Vencido viajante doutros mundos.


2007

 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Nuvens negras sobre a Europa

Fernando Calhau, Sem Título #802 #803 #804 (Night Works – Out Door Situation 5), 1971

A memória histórica tem limites, e estes são muito mais severos do que aquilo que seria desejável. O que se está a passar na Alemanha deveria preocupar não apenas os alemães, mas todos os que defendem uma vida pacífica e civilizada, num regime democrático e num Estado de direito. Esta notícia (aqui), onde é contada a perseguição sentida por professores no estado de Brandemburgo, é apenas um pequeno sinal da tempestade que se está a formar. Nas três últimas sondagens, publicadas na Alemanha, dias 14 e 15 de Julho, a AfD (Alternative für Deustchland), um partido da extrema-direita com influências nazis, obtém 20% das intenções de voto, sendo neste momento o segundo partido alemão, a seguir à CDU (centro-direita). Se este dado é, por si mesmo, preocupante, a preocupação intensifica-se quando se sabe que o maior partido austríaco é o FPÖ (Freiheitliche Partei Österreichs), também de extrema-direita, com intenções de voto na casa dos 30%, e  que Marine Le Pen tem grandes possibilidades de se tornar a próxima presidente de França. O que se poderá esperar, num futuro que poderá não ser muito longínquo, de uma Alemanha (e Áustria) e França dominadas pela extrema-direita nacionalista? Rapidamente, a questão da luta contra os imigrantes, o principal motor da ascensão destas forças políticas, dará lugar aos velhos ódios franco-alemães e ao ressentimento de dois derrotados da segunda guerra mundial, pois se a Alemanha perdeu a guerra e a França se sentou na mesa dos vencedores, a realidade é que também os franceses foram derrotados e humilhados pelos alemães. Conforme a memória histórica se vai diluindo com a morte das gerações que viveram a tragédia dos anos 30 e 40 do século passado, mais forte se tornará o desejo de vingança.

sábado, 15 de julho de 2023

O progresso moral da humanidade (11)

David Hume Kennerly, A Lone Soldier, Vietnam, 1972
A solidão do militar de arma em riste é um sinal, na paisagem devastada, de uma perda muito maior do que a companhia dos seus camaradas de guerra. Naquele deambular de um estranho numa terra estranha, descobre-se que a ideia de uma hospitalidade universal, base de uma paz perpétua entre as nações, não é apenas uma ideia ilusória, mas também um ideal esquecido, caso alguma vez os seres humanos lhe tenham dado atenção. Na terra inóspita, o soldado caminha preso ao medo do inimigo, subjugado ao esquecimento da fraternidade que os une, sentindo-se, sem o dizer a si mesmo, como Caim em busca de Abel.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Comentários (10)

Wassily Kandinsky, Painting with houses, 1909

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo
Herberto Helder

Outrora, essa marca de um tempo antigo, muito mais antigo e, por isso, muito mais novo, o poder decorreria de uma evidência. Dessa evidência, retirava ele, então, a sua firmeza silenciosa. Trazia consigo a marca da morte e esta tem o poder de calar as vozes que, sem a sua presença, se desatam num carrossel vertiginoso, onde as palavras se atropelam para sair das bocas. Em cada casa haveria, nesses dias que nem a memória recorda, um poder despótico. Pequeno, se a casa era modesta. Enorme, se a casa era um palácio. Nos alicerces de cada morada, encontrava o poder a solidez da sua firmeza. Então, transbordava pela rua e esta era um palco para o espectáculo com que cada poder, pequeno que fosse, se manifestava, como pura evidência, aos olhos dos transeuntes perdidos na viagem. 

terça-feira, 11 de julho de 2023

Nocturnos 104

Heinrich Wilhelm Müller, Hamburgo, 1900
Velada a luz do dia, as águas tornam-se música sob o império da noite. Sobre elas, deslizam pequenos barcos como poemas cantados. Quem olha de longe deixa-se contaminar pelo encanto da paisagem e, em certas horas, ouve, como uma velha canção, o declinar da poesia da viagem no fundo musical das águas tomadas pela sombra.

domingo, 9 de julho de 2023

Cardílio (24 sonetos) 18

Afresco da Villa di Livia, Palazzo Massimo alle Terme, Roma (detalhe)

O olhar perdido nestas ruínas busca,

Em desespero animal, o que a vida

Deixou, no seu cansado e fugaz passar.

A efémera violeta, a rosa branca,


A erva rala, o Verão já devorado.

No fulgor das colinas, na oliveira

Por musgo maculada, crescem pálidas

Anémonas, sombrias ervas de Outono.

 

Onde está a viva chama, o fatigado

Olhar logo descai, procura a doce

E suave pena, a dor tanto lhe dói.

 

Aqui riram infâncias, vozes últimas,

Que ruíram fulminadas pelos pássaros

De fogo no alumínio azul da cal.


2007

sexta-feira, 7 de julho de 2023

O melhor regime e a obscuridade do fenómeno político


Os acontecimentos em França são mais um sinal de que a democracia liberal corre graves riscos na Europa. O que se tem passado será capitalizado pela extrema-direita. Por toda a Europa, mas não só, surgem nuvens negras que ameaçam as democracias. Em 1992, Francis Fukuyama publica The End of History and the Last Man. O fim da história não se refere ao fim dos conflitos políticos e das transformações sociais, como se propalou, mas ao facto de não conseguirmos perspectivar um regime político melhor. A democracia liberal, com a combinação de Estado de direito, liberdades individuais e prosperidade, seria o futuro para todos os povos. A interrogação filosófica sobre a natureza do melhor regime político – concluir-se-ia – estava definitivamente encerrada.

Talvez nos anos 90 do século passado e no início do novo milénio isso fosse uma evidência para a generalidade dos cidadãos dos países democráticos e para muitos que, noutros regimes, ansiavam por uma democracia liberal. Hoje aquilo que era uma evidência generalizada deixou de o ser. Não apenas cresceram, com apoio popular, novos regimes autoritários, como nos próprios países democráticos a evidência da superioridade das democracias liberais é cada vez menor. Largos sectores escolhem políticos e programas iliberais, a militância radical cresce e tem presença avassaladora nas redes sociais, exibindo uma agressividade retórica impensável ainda há pouco. A questão filosófica sobre o melhor regime, questão que animou o pensamento de Platão e Aristóteles, e que no final do século passado parecia resolvida, exige que se volte a ela.

O problema, todavia, não pode ser enfrentado com um retorno ao debate tal como ocorreu na Antiguidade, onde se questionava se o melhor regime era a monarquia, a aristocracia ou a democracia. Também não bastará modernizar a questão e discutir sobre se o melhor regime é a democracia liberal, a democracia iliberal, o regime autoritário, o regime totalitário, etc. Antes da questão do melhor regime, está uma bem mais radical sobre o que é esse campo da acção humana a que se dá o nome de “político”. Muitas vezes a discussão sobre o melhor regime assume que sabe o que é o “político”, mas este é, apesar da sua omnipresença, um fenómeno obscuro e difícil de captar na sua natureza. Sem o seu esclarecimento, qualquer tentativa de definição do melhor regime está condenada. Esse esclarecimento, por outro lado, ajudará a compreender as razões por que a evidência da superioridade das democracias liberais está a desaparecer e por que os seus defensores parecem perdidos.

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Beatitudes (61) Imaginação e memória

Constant Puyo, Im Schilf, 1903
É possível que a razão não seja a faculdade mais indicada para produzir uma vida feliz. Também o instinto pode conduzir os seres humanos para sendas de errância e perdição. Restam a imaginação e a memória como caminho para a beatitude. Mergulhar na natureza e deixar a imaginação correr num suave devaneio, onde o passado se vai inventando, momento a momento, numa memória que se descobre onde nada existia. Então, o coração bate impelido pela brisa suave da manhã, para tornar o presente tão desejável quanto a reminiscência do passado que se acabou de fantasiar.

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Simulacros e simulações (52)

Harold Edgerton, Stroboscopic Motion Study of Cat Jumping Over Piano Bench, 1938

Um gato salta sobre um banco, simula nos nossos olhos a sua unidade, de tal modo que dizemos: ágil e belo como só um gato sabe ser. E em tudo o que os olhos observam não se detecta o simulacro que esconde que um gato nunca é um gato, mas uma sobreposição infinita de felinos que simulam a sua unidade, levando-nos a pensar no quão autêntica é a sua singularidade.

sábado, 1 de julho de 2023

Do futebol à política


É possível que o futebol moderno tenha sido, no início, um jogo de gentlemen, onde a competição estava escorada em regras de convivência civilizada. A expansão para lá do lugar de origem e a sua transformação no mais popular desporto do mundo contribuíram para que as normas de civilidade se tenham perdido. Tornou-se, com o passar dos anos, um lugar de expressão hiperbólica de sentimentos e paixões, o sítio onde se manifestam – por vezes, até à morte – rivalidades que, ao observar o comportamento dos adeptos, parecem inultrapassáveis. Basta ver um programa desportivo numa televisão, para perceber que, no mundo do futebol, a racionalidade é uma moeda de pouquíssimo ou nenhum valor.

Enquanto este quadro se restringe ao futebol, apesar de representar já uma ameaça à civilidade necessária, a situação não é dramática. O problema é que este quadro se tornou o modelo do debate político. Este visa, em última análise, discutir o que é o bem comum e o caminho para o realizar, avaliar se as políticas públicas são as mais adequadas. Ora, aquilo a que se tem assistido, cada vez com mais frequência, é a uma discussão, nos órgãos de comunicação social tradicionais e nas redes sociais, ao nível do futebol. Os actores políticos e comentaristas discutem a política com a mesma paixão com que se discute um jogo entre dois grandes rivais. As questões estão ao nível das que envolvem o futebol. O golo foi fora-de-jogo? Quantos penalties ficaram por marcar? E aquele que foi marcado foi mesmo penalty? A capacidade de análise racional das peripécias políticas é tão grande quanto a dos comentadores do futebol adeptos de um clube. Nula.

Este quadro mental tem pelo menos duas consequências funestas. A primeira diz respeito ao desaparecimento do debate público dos grandes problemas que afectam o país e as pessoas. O que se discute são casos mais ou menos irrelevantes, mas nada relacionado com aquilo que é fundamental. A política fica reduzida a episódios que são comentados com exaltação e irracionalidade, como se fossem decisivos, tal como um penalty por marcar. A segunda diz respeito às regras da convivência civilizada entre projectos políticos concorrentes. A exaltação futebolística transportada para a vida política exacerba rivalidades e dá passos decisivos para transformar adversários políticos, que confrontam projectos, em inimigos, arrastando o país para uma lógica política interna marcada pela polarização amigo/inimigo. Este caminho é o pior possível. Não resolve nenhum problema e, em última instância, conduz uma comunidade para as portas da guerra civil.