sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Alma Pátria 60: José Barata Moura, Vamos Brincar à Caridadezinha



O estertor do Estado Novo era já muito claro em 1973. Uma guerra colonial sem saída, uma paisagem social anacrónica, divisões entre as facções que sustentavam o regime, tudo isto permitiu uma coisa como o Zip-Zip, um programa de entretenimento que se tornou um nicho de contestação política. Foi lugar onde emergiram alguns dos cantores de protesto, entre eles José Barata Moura. Não é uma figura cimeira desse tipo de canção, onde se destacam nomes como José Afonso, José Mário Branco, Adriano Correia de Oliveira e Sérgio Godinho, e, no pós 25 de Abril, pouco explorou esta sua faceta de cantor de intervenção. Ao lado da vida universitária na Faculdade de Letras de Lisboa, fciou célebre pelas suas canções infantis. Vamos Brincar à Caridadezinha (1973) é a sua mais conhecida canção de denúncia social e política.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

A Casa Esquecida 5

Joan Hernández Pijoan, Flors per als campions I, 1990

Sabíamos o aroma do destino e a cor da noite,
o som da canícula no Outono que te esperava,
o vento na praça onde contávamos palmeiras,
as mãos cobertas pelo pólen da língua.
O fogo era uma cicatriz aberta nos lábios.
O corpo, água lustral evaporando-se, espirais
de ervas, azevinho a arder nesse ventre.
Coroação do silêncio, secreta prosa da alma.

(1981)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Nocturnos 8

Robert Doisneau, Wanda wiggles her hips, 1953
Não há luz que ilumine a terrível noite do desejo. Nessa casa sombria é inútil riscar um fósforo, acender lâmpadas ou apontar holofotes. Nada se verá, talvez porque nada haja para ver.

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Teremos de voltar ao básico?


Portugal é uma democracia liberal alicerçada num Estado de direito, isto é, num Estado em que todos estão submetidos à lei. Todos somos iguais perante essa mesma lei. Todos somos cidadãos, isto é, indivíduos que têm um conjunto de direitos e deveres especificados na lei. Isto é o básico. Ser homem ou mulher, ter uma dada orientação sexual, ter uma certa cor da pele, ter uma religião ou não ter nenhuma, pertencer a uma classe social, ter uma preferência política, nada disto acrescenta ou tira seja o que for à nossa condição de cidadãos. Portanto, cada um de nós tem o direito de ser respeitado independentemente do seu sexo, orientação sexual, cor da pele, classe social, pertença religiosa ou política. Também cada um de nós tem o dever de respeitar o outro independentemente do seu sexo, orientação sexual, cor da pele, classe social, pertença religiosa ou política.

Preocupante é que o básico começa a não ser compreendido e que essa incompreensão fala cada vez mais alto, pretendendo ser uma alternativa aos princípios civilizados que nos orientam. O caso Marega é apenas um episódio entre muitos outros. Devido à sua reacção teve o condão de vir separar as águas e mostrar aquilo que há muito é visível, mas que se teima em não ver. O racismo é um problema no futebol, mas também na sociedade. Não apenas em Portugal, mas também em muitos países ocidentais. A crosta civilizada que nos cobria e dourava, mal foi confrontada com algumas dificuldades, começou a estalar. Depois, nunca faltam os miseráveis para torcer as situações, para provocar dúvida na condenação do inaceitável e para atiçarem na turbamulta os piores instintos. Não gostam do básico, da igualdade de todos perante a lei. Querem uma lei que os favoreça a eles.

As questões básicas são aquelas que estruturam uma sociedade. Supõem um amplo consenso. Só neste consenso podemos discordar nas outras questões que são importantes, mas não básicas. Como deve evoluir a economia? Como se devem estruturar os sistemas de saúde e de educação? Como se deve orientar a defesa nacional? Como fazer frente à instabilidade ambiental? Como enfrentar a crise demográfica? Todas estas questões são decisivas para o futuro da comunidade e exigem de todos nós atenção, preocupação e empenhamento. Exigem muita energia cívica. Ora, se temos de voltar as nossas forças para reafirmar e defender aquilo que é básico – o direito de cada um ao reconhecimento como igual – corremos o risco de ficar a discutir a melanina ou coisas do género em vez de nos prepararmos para o que vem aí.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Eutanásia, moral e política

Pablo Picasso, La muerte de Casagemas, 1901

Do ponto de vista moral, se defendermos uma posição que respeite a autonomia das pessoas e a sua capacidade de escolherem aquilo que apenas a elas diz respeito, julgo que o único caminho possível é o da legalização da eutanásia. No entanto, a questão não é moral ou apenas moral. É política e aqui há problemas de natureza constitucional. Os artigos 24.º e 25.º da Constituição não me parece que dêem respaldo a que se autorize alguém a praticar eutanásia em terceiros. Julgo haver interpretações conflituais de especialistas constitucionais. Será no terreno da interpretação da Constituição que tudo se irá resolver.

O ponto 1 do art.º 24 diz o seguinte: "A vida humana é inviolável." O ponto 1 do art.º 25 diz: "A integridade moral e física das pessoas é inviolável." Ambos os pontos surgem como incondicionais. Vejo com dificuldade que se possa fazer uma interpretação condicional desses pontos de modo a que se defendesse, por exemplo, "A vida humana é inviolável, a não ser que...". Isto tem dois problemas. Não é o que está na Constituição e, segundo, tornava a inviolabilidade da vida humana condicional.

Uma linha de argumentação política a favor da eutanásia seria argumentar que em certos estados degradados da existência a vida de um ser humano deixa de ser uma vida humana. Sendo assim, aquele que aplica a eutanásia não está a violar uma vida humana. No entanto, julgo que isso cria muitos problemas adicionais. Por exemplo, qual o momento em que uma vida humana deixaria de ser humana e passaria a ser apenas vida? Simpatizo moralmente com a ideia de que as pessoas possam escolher a sua morte (tenho aqui menos dúvidas morais do que na questão do aborto). No entanto, o problema político é muito espinhoso e a política tem aqui preeminência sobre a moral.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Nocturnos 7

George Hoyningen-Huene, A grecian inspired shoot, 1931
Contra o escuro e as trevas, um corpo rasga o silêncio e ergue-se como se fora pássaro ou anjo. A luz desliza-lhe pela pele, dá-lhe um princípio de vida e suspende-o, antes que a queda o arraste para os baixios da noite.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

A Casa Esquecida 4

Meyer Schapiro, Abstract Seascape, 1960

Sorrias e tão a lenta era a viagem das mãos
na esquadria do silêncio, no cansaço da luz.
Na noite, um rombo aberto pela voz crescia
dentro da terra e uma aurora de dor vinha
na promessa que haveríamos de esquecer.
A janela fechada sobre o fervor do sangue,
a porta entreaberta no prazer da maresia,
as horas nocturnas como ondas alterosas
no oceano salpicado de sal no sol de Maio.

(1981)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Beatitudes (22) À porta do futuro

Martin Munkacsi, Reflection in a motorcycle mirror, Berlin, c. 1929
A mulher senta-se à porta do futuro e ignora ostensivamente o passado. A sua razão ainda não os sabe distinguir, mas o seu desejo é infalível. Está morto aquilo que o desejo esquece e no futuro está tudo o que faz estremecer de volúpia esse mesmo desejo. 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Nocturnos 6

Nina Leen, Teenagers necking in a movie theater, 1944
Ainda que fosse o mais claro e puro dos dias, a noite foi chamada para que nela a luz cintilasse e todas as fantasias abandonassem o território obscuro dos possíveis e entrassem na pátria pura da realidade.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

O tempo dos farsantes

Juan Soriano, La farsa de la casta Susana, 1956
Estou a ler Nas Sombras do Amanhã - um diagnóstico da enfermidade espiritual do nosso tempo, de Johan Huizinga. O texto é dos anos 30 do século passado e nele o autor antecipava a terrível tragédia que se abateria sobre a Europa e o mundo. Não são poucas as passagens que parecem referir-se aos nossos dias. É aqui que vem à memória o célebre trecho com que Marx inicia o primeiro capítulo de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: "Hegel observa numa de suas obras que todos os factos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa."

Nos anos trinta e quarenta do século XX, vivemos uma verdadeira tragédia. Hoje, quando olhamos para a degradação da esfera pública, da vida política e para a emergência de um novo tipo de actores políticos, mais do que uma tragédia, aquilo que suspeitamos é estar perante uma farsa, cujos actores principais não passam de farsantes. Em alguns sítios chegaram ao poder, noutros exibem a sua natureza burlesca em busca do público que, enfastiado e desejoso de se divertir, os levará a ocupar o poder. Até nós portugueses já encontrámos os nossos pequenos farsantes, que não perdem oportunidade para nos brindar com as suas facécias.

Há muito - desde o tempo dos gregos - que aprendemos a ligação entre política e tragédia. Com medo dessa ligação, entregámos a política à respeitabilidade burguesa. Esta, todavia, tem-se mostrado pouco respeitável ou, outra possibilidade, o respeito deixou de ser virtude a exibir na praça pública. Se nos guiarmos pela intuição de Marx, o que nos deve preocupar não será tanto o prenúncio de uma nova tragédia, como aquela que o nazismo fez cair sobre o mundo, mas o significado da farsa em que vamos estando cada vez mais envolvidos. Tornar a política numa farsa é dissolvê-la através do riso, mostrá-la como coisa burlesca, um divertimento. Em vez de se chorarem as instituições ameaçadas, rimo-nos com a sua queda. A farsa emerge quando as instituições políticas, ao perderem a dignidade e a respeitabilidade, se preparam para se dissolverem.

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Entre o redil e o prado


Num dos artigos anteriores falou-se aqui do discurso do rancor que se desenvolve em Portugal. Esse discurso não é específico do nosso país, atinge os países ocidentais, nos quais, por um motivo ou outro, lavra uma cólera não disfarçada, um desejo de confronto cada vez maior, onde a normal divergência política ameaçar radicalizar-se, dividindo os campos entre amigos e inimigos. A desconfiança na democracia é grande, mesmo nos velhos baluartes do regime democrático como os EUA e o Reino Unido. No entanto, o que está em jogo, no actual ambiente, é muito mais do que um regime político.

Observe-se o movimento da Terra plana. Contra todas as evidências científicas, cresce um pouco por todo o lado uma opinião que quer contestar a forma esférica da Terra. Se fosse um acontecimento isolado, seria risível. Não é. Mais antigo e movido por razões religiosas, está o criacionismo que pretende ser uma teoria alternativa ao evolucionismo das espécies. Os criacionistas não lutam apenas contra a evidência científica, pretendem abolir a distinção fundamental entre ciência e religião, um dos pilares da modernidade. Só mais um exemplo, entre outros possíveis. O movimento antivacinas não põe em causa apenas a ciência, mas também a saúde pública, fazendo reaparecer doenças mortais praticamente erradicadas.

O desprezo pela democracia liberal e pelos direitos dos indivíduos não pode ser desligado destes movimentos anticientíficos. O que está em jogo em tudo isto é um ataque cada vez mais concertado à herança do Iluminismo. Certamente que este é criticável em alguns dos seus aspectos. No entanto, ele moldou aquilo que era, até há pouco, o ideal que guiava as sociedades democráticas e civilizadas: sermos pessoas livres, responsáveis pelo seu destino, racionais, comprometidas com a verdade do conhecimento. Em todos estes movimentos, que ocupam já o poder em grandes países, há desprezo ou mesmo um ódio declarado aos valores das Luzes.

O vigor com que as plebes democráticas ululam pelas redes sociais contra o mundo intelectual é o sinal do perigo em que vivemos. Talvez o programa iluminista, ao democratizar-se, tenha cometido um erro crucial. Muitos seres humanos não querem ser livres, não suportam o peso da responsabilidade individual e o imperativo de pensar por si mesmo para gerir a sua vida. Precisam de um pastor que os guarde e os dirija com mão de ferro. Parte significativa destas revoltas contraculturais e destes movimentos inorgânicos contra a democracia liberal poderão não ser mais do que o balir dos rebanhos chamando o pastor que, arrimado ao cajado, os conduza entre o redil e o prado.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

A Casa Esquecida 3

Antonio Tápies, Composición, 1946

Uma cidade de brancura e sal espera-nos.
Que sabemos nós de outras gerações,
traições mais antigas, a indolência do espaço,
a leveza do centro incendiado do teu corpo,
tão trémulo, tão aberto pela secura das mãos.
Póstumas, presas na âncora da morte.

Para lá desta janela não somos. A tristeza
dos cedros, dos olhos na força da cúpula,
no cântico azul da tua alma. Olho a água e
estremeço: que tempo nos deu este caminho,
onde o abrigo para as noites de inverno,
os corpos a cantar na luz do próprio lume?

(1981)

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Ensaio sobre a luz (77)

Elliott Erwitt, Odessa. USSR (now Ukraine), 1957
Sentada, a criança deixa deslizar as mãos pelas teclas do piano. Ilumina-a uma janela à sua esquerda. A luz vem, entra-lhe pelo corpo e sai-lhe pelos dedos, como se a música não fosse outra coisa senão a metamorfose dos raios luminosos em ondas sonoras. 

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Nocturnos 5

Heinz Held, Untitled (Girl with a balloon), around 1960
De súbito, a noite desaparece e toda a luz se concentra no desejo com que uma criança olha um balão. Mais que a fantasia do etéreo, é o medo das trevas que lhe guia o olhar. Não sonha, apenas afasta de si os piores pesadelos.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Sintomas de degradação


Os portugueses decidiram brindar o parlamento com a presença de mais três partidos políticos. Deixemos de lado a Iniciativa Liberal. Partido de low profile dirigido a um pequeno nicho do mercado eleitoral, tentativa morna de importar para um país católico e do sul da Europa uma ideologia dos países protestantes e frios. Concentremo-nos nos outros dois, o Chega e o Livre. Eles são um sintoma da degradação que começa a corroer as instituições democráticas. Diga-se, em abono da verdade, que a eleição de deputados populistas não é uma novidade. Logo nas primeiras eleições democráticas, o deputado da UDP era um exemplo de populismo.

O caso da eleita pelo Livre, por seu lado, tem menos a ver com o partido do que com a personalidade da deputada. O Livre é um partido reformista, com preocupações ecológicas e uma visão europeísta. Daquilo que se conhece dos seus militantes e do fundador, o historiador Rui Tavares, nada faria supor o que está a acontecer. Ao arrepio da agenda de uma esquerda cordata, a agenda da deputada Joacine Katar Moreira é radical, preocupada com questões identitárias e centrada em temas restritos como o racismo e o feminismo. Isto não dá para uma política e emparelha com perspectivas políticas também elas identitárias e que se movem no outro lado do debate sobre o racismo e o feminismo, isto é, o Chega.

O Chega surgiu para explorar o ressentimento social, um mercado eleitoral que estava por ocupar. Vive do folclore tribunício de André Ventura. Explora a má fama da classe política e o sentimento de inveja dos portugueses. Ventura apresenta-se como salvador e justiceiro. No entanto, o partido está desde o começo envolvido em problemas, seja o da recolha de assinaturas, seja o do programa político ocultado, tão desagradável era, seja o do conflito entre o chefe e o ex-porta-voz, Sousa Lara, seja agora com a irónica notícia de que estaria infiltrado pela extrema-direita neonazi.

A chegada ao parlamento de partidos ou deputados populistas e a possibilidade que pelo menos um desses partidos tem de crescer e de se imiscuir no funcionamento das instituições deveriam levar os partidos democráticos a uma profunda reflexão sobre o seu papel na emergência destes fenómenos. Os portugueses não gostam de se comportar como os nórdicos, mas exigem que as suas elites políticas o façam. Exigem-nas isentas, frugais e comedidas. Enquanto as elites políticas não o forem, o populismo tem campo significativo para crescer e para corroer o regime democrático.

[A minha crónica em A Barca]