Armando Basto, Paisagem / Praia, 1920 |
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Beatitudes (68) Uma praia vazia
quarta-feira, 24 de abril de 2024
Silvina Ocampo, A Promessa
A escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993) apenas escreveu um romance, A Promessa, que, aparentemente, deixou inacabado, tendo sido publicado postumamente. Começou a escrevê-lo em 1960, mas a certa altura a doença ter-se-á intrometido no projecto. A edição portuguesa, da responsabilidade da Antígona, data de 2023, com tradução de Helena Pitta. A obra é, em aparência, uma exploração da natureza fluida tanto da vida como da memória e é desencadeada por uma queda, essa situação mitológica que abre o horizonte onde se desenrola a vida e a morte. Trata-se de uma queda prosaica da narradora e protagonista, da qual não se sabe o nome e pouco da sua situação. No entanto, a essa queda corresponde uma salvação, da qual se suspeita a intermediária, mas não o modo. Quando se deslocava, num transatlântico, para a cidade do Cabo, para se reunir com a parte menos enfadonha da minha família, ao debruçar-se sobre a amurada do navio, caiu ao mar, sem que ninguém a visse. O livro é o resultado de uma promessa a Santa Rita, a das causas impossíveis: Não esqueci o pormenor desta atitude quando lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar até ao dia do meu próximo aniversário.
O romance começa com o problema da narradora acerca da possibilidade de publicar o texto, interrogando-se sobre que editora o iria publicar. Isso só seria possível se acontecesse um milagre e ela acredita em milagres. Esta preocupação é o sinal de que o impossível tinha já acontecido. Apesar de ter caído ao mar sem que ninguém desse por isso, ela ali estava preocupada com a publicação e recorrendo mais uma vez aos serviços da Santa Rita. A inverosimilhança da situação narrada, a da salvação de alguém que cai em alto-mar sem que ninguém dê por isso, é contrabalançada com o recurso à intervenção milagrosa de uma santa que tem por missão advogar as causas perdidas. A promessa é o próprio livro, um livro muito especial, um dicionário de recordações às vezes vergonhosas, humilhantes. Não se pense, todavia, que se trata de uma confissão, pois a narradora não tem vida própria, apenas sentimentos: As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrária, torna-se minha. Não é uma confissão, mas um relato de memórias de outros.
Perdida no oceano, vendo o navio a afastar-se, decide nadar e enquanto nada, para não se deixar atrair pelo canto de sereia da morte, deixa-se levar por um itinerário de recordações, uma modalidade de resistência ao sono, uma espécie de itinerário que, não sem ironia, também aconselho aos presos, aos doentes que não se conseguem mexer ou os desesperados à beira do suicídio. A memória é então uma modalidade de resistência à inacção e não há maior inacção do que a morte, morte que a cercava por todos os lados e que, segundo uma visão racional, seria mais do que certa. Existe uma confluência salvífica: a intercessão de Santa Rita e o continuado exercício da reminiscência. Essa memória, plasmando a nossa corrente de consciência, é feita de diversas narrativas, algumas mais complexas e com trama romanesca, outras como meros apontamentos, histórias incoadas, mas que não se desenvolvem. Assim, como nos repetimos, também a memória da nadadora à beira da morte se repete, mas ao repetir-se altera ligeiramente o que tinha contado. Um dicionário de recordações, com algumas entradas quase iguais a outras, mas que todas elas poderiam dar lugar a um exercício narrativo mais amplo e complexo, contos, novelas e romances, o que estaria, porém, em contradição com a situação presente daquela que se entrega a essas recordações.
A sucessão de recordações e a luta da protagonista pela vida, que se mistura na narrativa memorial, permitem pensar na relação entre duas instâncias temporais, o passado e o presente. O presente é vivido no fio da navalha, sempre sob a ameaça de haver um corte que impedirá que o futuro se torne presente. O que permite resistir à morte é a reminiscência do passado. O presente é sempre um buraco vazio e precisa de ser preenchido pelos produtos da memória ou da expectativa. Numa situação de morte iminente, a expectativa de um futuro parece impossível e o que pode alimentar e dá combustível à luta do presente é o material proveniente do fundo da memória. A questão, porém, é um pouco mais complexa, pois aquilo que está em jogo não é a aventura vivida no oceano, mas a aventura de escrever e publicar o livro prometido a Santa Rita. Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este texto? Que editora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que acontecesse um milagre. Acredito em milagres. O perigo não é morrer afogada, desse, de modo inexplicado, ter-se-á livrado, mas o de cumprir a promessa feita a santa Rita, isto é, escrever e publicar o livro.
O que se revela, então, na ficção de Silvina Ocampo é uma analogia entre lutar pela vida em alto-mar e o trabalho de escrever. A arte literária – toda a arte, porventura – é o resultado de uma queda do artista. A escrita é o exercício de natação que o mantém à tona de água e é alimentado pela memória, pelas histórias acumuladas que são um penhor de salvação. O romance é uma meditação sobre a arte romanesca, na qual todo o artista é, em última instância, um analfabeto que tem de recorrer, através de uma promessa, à intercessão de uma santa das causas impossíveis, para que a obra seja realizada e aceite. Toda a obra de arte é uma causa impossível que se tornou possível pelo milagre. Só se torna artista aquele que acredita em milagres, no milagre da sua própria arte que se consuma na obra realizada. Há, no romance de Ocampo, uma fenomenologia da arte literária marcada por três instâncias. A da queda no desejo de criar (em analogia com a queda da amurada do navio), a da promessa que marca o compromisso de escrever (o exercício de natação em alto-mar) e a do milagre da realização da obra (a salvação da morte iminente). São cem páginas de um inteligente jogo de analogias.
segunda-feira, 22 de abril de 2024
XIVa Coloana fará sfârsit
Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian) |
e o tempo de tão rápido se cale
nada é verdadeiro só imagem
onde o bem vejo sei oculto o
mal
voa para longe da terra
o verbo que tudo encerra
sábado, 20 de abril de 2024
Família tradicional e luta do bem contra o mal
A publicação do livro Identidade e Família – Entre a Consistência da Tradição e os Desafios da Modernidade, apresentado por Passos Coelho, gerou uma inusitada efervescência, o que foi uma vitória para os organizadores desta obra colectiva. As leituras críticas incidiram na ordem política e na ordem dos costumes. Na primeira, o detonador foi a pessoa escolhida para a apresentação e também o que ela disse. Na segunda, foram as considerações feitas sobre a chamada família tradicional e o papel da mulher. Neste caso, são relevantes as intervenções de Paulo Otero, um dos coordenadores e também autor de um dos textos. Vale a pena comentar dois excertos da Introdução, um texto dos coordenadores que dá sentido ao conjunto publicado.
A dado passo diz-se: “De todas as sociedades humanas, a família é a única natural, universal e intemporal. Nasceu com o Homem e existe antes do Estado. Não foi criada cientificamente, não resulta de um qualquer legado jurídico, não foi imposta por acto administrativo, não germinou fruto de uma qualquer ideologia, não é o resultado de meras circunstâncias ou contingências históricas.” O interessante não é o que se diz, mas o que se oculta. Esconde-se que, na História da humanidade, a família nem sempre significou a mesma coisa. Esconde-se que em diferentes espaços culturais de hoje existem diferentes tipos de famílias tradicionais, que não se confundem com as famílias tradicionais que os autores defendem. Negam, por outro lado, uma evidência: qualquer forma de família é um produto cultural e não apenas uma emanação uniforme da natureza, como qualquer antropólogo lhes explicaria. Os autores partem de uma falsificação da realidade e não de uma análise credível da família.
A segunda citação revela o perigo que se esconde neste discurso: “Lutar (sic) pelo bem deixou há muito de constituir notícia, não dá audiências, nem abre noticiários. Já o mal sequestrou a sociedade que o consome em doses crescentemente acrescidas”. Estamos perante uma visão maniqueísta da realidade social e moral. Os autores estão do lado do bem, são os seus representantes, enquanto os que pensam de outro modo estão do lado do mal de cuja realidade não parecem duvidar. Esta visão, religiosamente herética (substancializa o mal e não o vê como privação de bem), tem uma terrível tradução política. Deixa de haver adversários políticos, mas inimigos, aos quais, em nome do bem supremo que se representa, se pode fazer o que se entender. Estes católicos tradicionais têm uma visão da família, da sociedade e do mundo moral muito tradicional, mas muito pouco caritativa, isto é, muito pouco católica.
quinta-feira, 18 de abril de 2024
Nocturnos 117
Antoni Guansé Brea, Nocturne, 1992 |
terça-feira, 16 de abril de 2024
Comentários (18)
João Queiroz, sem título, 2004 |
domingo, 14 de abril de 2024
Beatitudes (67) Vida mediana
Edward Arning, Aufnahmen von Dr. Ed. Arning in Hamburg, 1901 |
sexta-feira, 12 de abril de 2024
Ensaio sobre a luz (116)
Mário de Oliveira, Paisagem de Castela III, 1966 (Gulbenkian) |
quarta-feira, 10 de abril de 2024
XIV Coloana infinita
William Turner, Sun Rising Through Vapor, Fisherman Cleaning and Selling Fish, 1807 |
se o sol entre nuvens já desponta
espelho onde todos se remiram
cansada esvoaça a ave tonta
pois da árvore a frágil casa
tiram
tudo é pequeno e sem fim
segunda-feira, 8 de abril de 2024
Simulacros e simulações (62)
Fernando Calhau, sem título #481, 1980 (Gulbenkian) |
sábado, 6 de abril de 2024
As eleições e o triunfo do pensamento mágico
Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. Têm sido adiantadas múltiplas explicações. Por norma, baseadas na suposta má conduta dos partidos do sistema (sic), o que teria gerado uma onda de insatisfação no eleitorado. A questão é mais funda. Que respostas têm estado disponíveis, do ponto de vista político, para a pergunta: como posso viver melhor? Por um lado, a resposta da esquerda tradicional: a luta colectiva, a solidariedade entre pessoas, gerará para cada uma essa vida melhor. Por outro, a da direita democrática tradicional: és livre, aposta em ti, a vida melhor depende do teu mérito. As duas respostas estão assentes na acção e no esforço.
A votação no Chega é a derrota destas duas respostas. Os insatisfeitos não apreciam o esforço das lutas colectivas, nem reconhecem que a sua situação esteja ligada ao seu mérito ou à falta dele. Crêem que a sua situação se deve aos políticos tradicionais, que são diabolizados. Está-se já no campo do pensamento mágico. A solução da minha insatisfação está, não no esforço colectivo ou individual, mas em alguém, o líder carismático, que virá salvar-me da situação em que me encontro. A partir da crença num líder salvador, o pensamento mágico reforça-se no encantamento dos slogans simplistas (Limpar Portugal), na negação da realidade – isto é, dos factos que negam a narrativa do líder – e no desenvolvimento de expectativas irreais de que problemas altamente complexos se podem resolver facilmente, bastando as palavras mágicas do salvador.
Os partidos tradicionais irão ter
muita dificuldade em lidar com a nova situação. O pensamento mágico
dificilmente é derrotado pelo discurso sensato e pela acção razoável. Os
problemas que enfrentamos exigem esforço e racionalidade, coisa para a qual
parte do eleitorado não está disponível. O pensamento mágico não exige esforço nem
reflexão, vive de emoções, alimenta-se de mitos e slogans, propaga-se
por contágio, como uma epidemia. Havendo uma liderança carismática, por norma,
o pensamento mágico tende a aumentar e só perde força depois de uma desgraça. São
tantos os exemplos – vindos da direita e da esquerda – em que o pensamento
mágico dos cidadãos conduziu a uma tragédia que nem vale a pena enumerá-los. A
democracia liberal, aquela que em Portugal nasceu há 50 anos, está perante um
grande e grave problema.
quinta-feira, 4 de abril de 2024
A persistência da memória (29)
Theodor and Oskar Hofmeister, Am Feuerherd - Vierlande, 1903 |
terça-feira, 2 de abril de 2024
O ocaso do espírito liberal
Assistimos a uma grave crise do espírito liberal. É de temer a sua morte. Podemos esboçar um retrato do espírito liberal com cinco características. Em primeiro lugar, a liberdade individual de cada um agir segundo a sua consciência, desde que isso não interfira na liberdade dos outros. Em segundo lugar, a igualdade de direitos, independentemente de qualquer característica diferenciadora (raça, sexo, religião, etc.). Uma outra característica é a tolerância, o propósito de respeitar as diferenças, sejam elas de crenças ou de comportamentos. Uma quarta característica é a racionalidade, a ideia de que a verdade pode ser obtida através do uso da razão. Por fim, o progresso baseado no conhecimento, que permitirá melhorar a sociedade através de reformas racionais.
Pessoas de diversas orientações políticas, desde que defendam as características acima enunciadas, possuem e participam no espírito liberal. Apesar de podermos encontrar alguns traços desse espírito na pólis grega, o espírito liberal, tal como ainda o conhecemos, tem o seu advento no Iluminismo e na constituição de uma esfera pública burguesa em confronto com o Absolutismo. Era, claro, apanágio de uma minoria ilustrada, preocupada em substituir as relações sociais baseadas na violência por outras fundadas no diálogo tolerante e racional, o qual, supunha-se, geraria as melhores soluções para os problemas dos indivíduos e das sociedades. Acreditava-se – e talvez ainda exista quem acredite – que a educação iria alargar paulatinamente a participação nessa esfera pública racional e que o espírito liberal se estenderia a toda a sociedade.
A evolução política do Ocidente – o fenómeno Trump nos EUA, o crescimento da extrema-direita na Europa, em Portugal, do Chega – mostra que esse espírito de tolerância, liberdade e racionalidade está muito doente. Talvez seja vítima do seu próprio triunfo e também das suas ilusões. O liberalismo, enquanto tornava todos iguais em direitos, acentuava, na economia, grandes diferenças de rendimentos, o que fomenta reacções contra esse espírito. O triunfo do chamado neoliberalismo está a matar o espírito liberal. Por outro lado, a crença de que a educação da população iria alargar o espírito liberal a toda a sociedade parece ser uma ilusão, a qual se torna patente quando se olha a intervenção das pessoas nas redes sociais. O que impera hoje é o espírito de facção e não a tolerância, o pensamento mágico e não a racionalidade, a discriminação e não a igualdade de direitos, a desarticulação das instituições e não a reforma progressiva, o uso da liberdade para a liquidar. O espírito liberal parece viver um doloroso ocaso.
domingo, 31 de março de 2024
XIII L’escalier du diable
sexta-feira, 29 de março de 2024
Meditações melancólicas (93) Melancolia rural
Friedrich Christian Reinermann, Aldeia nas montanhas junto a um riacho |
quarta-feira, 27 de março de 2024
Comentários (17)
Odilon Redon, O Buda, 1896 |
segunda-feira, 25 de março de 2024
Nocturnos 116
Nuno Cera, Snapshots 4, 1997 |
sábado, 23 de março de 2024
XII Entrelacs
quinta-feira, 21 de março de 2024
Ensaio sobre a luz (115)
Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian) |
terça-feira, 19 de março de 2024
Simulacros e simulações (61)
Maria Helena Vieira da Silva, Ermitages (Bleu Tressé), 1971 (Gulbenkian) |
domingo, 17 de março de 2024
Beatitudes (66) Música da noite
Ernst Ludwig Kirchner, Accordion Player by Moonlight, 1924 |
sexta-feira, 15 de março de 2024
A degradação da paisagem política
Não vale a pena comentar o caos em que as decisões de Marcelo Rebelo de Sousa lançaram o país. Também não vale a pena salientar que o nosso sistema semipresidencial é um problema, devido aos poderes arbitrários dos Presidentes da República. Vale a pena, porém, olhar para o país e para aquilo que estas eleições mostram. Em primeiro lugar, o tradicional centro político (CDS, PSD e PS), embora maioritário no país, já não chega aos 60%. Em 2022, os três partidos somados ultrapassavam ligeiramente os 70%. Uma radicalização que atingiu duramente os resultados do PS, mas que também paralisou o par CDS e PSD, que, como AD, têm mais ou menos a mesma percentagem de votos que em 2022. A rasura do centro é um preocupante sinal de degradação da vida democrática.
A paisagem política mudou radicalmente com os 18% do Chega. O seu crescimento exponencial é outro dado da radicalização do país. Não apenas por ser um partido populista, mas pelo facto de conseguir atrair o eleitorado não tendo qualquer consistência discursiva ou de atitude. Se compararmos o Chega com o Vox espanhol, percebemos de imediato uma diferença significativa. O partido espanhol é altamente estruturado, tanto do ponto de vista ideológico como do comportamento das suas lideranças. O partido português chega a uma votação significativa apenas fundado nas diatribes de André Ventura, no comportamento desrespeitoso perante os adversários políticos, as instituições democráticas da República e os grandes valores do 25 de Abril. Na prática, os eleitores não fazem ideia de quais são as políticas substantivas do Chega. Mesmo assim votam nele, como se houvesse um desejo de destruição, a começar na destruição do PSD – um dos objectivos de Ventura – e a seguir da democracia tal como a entendemos.
Outro sinal da radicalização da nossa
sociedade é a erosão do Partido Comunista. É preciso compreender o papel
central que este partido tem tido no equilíbrio do sistema político. Não tanto
no jogo parlamentar, embora também aí tenha tido papel de relevo, mas no jogo
social, onde o papel do PCP nos sindicatos tem sido central para evitar
contestações anárquicas do regime e tem servido de escape aos sentimentos
negativos que podem atingir parte da população. Neste momento, existem já
movimentos de contestação inorgânicos, que não obedecem a qualquer
racionalidade política, os quais são uma ameaça para a saúde da democracia. A
erosão parlamentar do PCP e a do movimento sindical, que dificilmente será
travada, é um outro sintoma de degradação da paisagem política no momento em
que a transição à democracia faz 50 anos.
quarta-feira, 13 de março de 2024
XI En suspens
segunda-feira, 11 de março de 2024
A tal maioria sociológica de direita
Umberto Boccioni, Agitate Crwod Surrouding a High Equestrian Monument, (1908) |
sábado, 9 de março de 2024
O progresso moral da humanidade (16)
Xaime Quessada, La guerra, 1967 |
quinta-feira, 7 de março de 2024
Cadernos do esquecimento 53 Duplicar a vida
Paul Signac, Women at Well, 1892 |
terça-feira, 5 de março de 2024
Nocturnos 115
Camille Pissaro - Boulevard Montmartre - Night, 1897 |
segunda-feira, 4 de março de 2024
X Der Zauberlehrling
sábado, 2 de março de 2024
A crise das democracias liberais
A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. M. Estlund afirma “A ideia de democracia não é naturalmente plausível”. Recentemente, numa antecipação da sua biografia a sair em Outubro, o senador republicano Mitt Romney afirmava que “A experiência da América com a autogovernação está em luta contra a natureza humana”. De facto, a democracia liberal (a ideia de autogovernação) parece não estar inscrita na nossa natureza. Uma visão próxima de Kant poderá argumentar que a democracia liberal é um projecto da razão para domesticar a nossa animalidade. Não descartando a tese kantiana, prefiro uma outra, a da relação íntima entre democracia liberal e cristianismo.
O cristianismo na sua natureza mais fundamental é uma religião adversa à natureza humana. Se olharmos para outras religiões percebemos que nascem daquilo que os homens são. O cristianismo, pelo contrário, propõem uma visão moral que confronta a nossa natureza, que exige que a superemos. Uma ética fundada em dar a outra face ou em amar os inimigos está em viva contradição com a natureza humana. O cristianismo é um programa de luta contra as nossas pulsões mais vivas, como não se cansou de denunciar Nietzsche. A democracia liberal resulta do próprio cristianismo, mesmo se igrejas cristãs se lhe opuseram. As correntes políticas democráticas – conservadorismo, liberalismo e socialismo – são emanações de diversos aspectos que estavam unidos no cristianismo (a tradição, a liberdade do cristão e o livre-arbítrio, a igualdade perante Deus). A democracia herdou, da sua fonte cristã, esse aspecto contra-natura, de que falam Estlund e Romney.
As democracias modernas liberais tremem porque o cristianismo com os seus imperativos contra-natura está a evaporar-se da consciência dos homens ocidentais, mesmo daqueles (ou em primeiro lugar desses) que se dizem cristãos ortodoxos e advogam um fundamentalismo tradicionalista. A democracia liberal, com as suas regras de reconhecimento do adversário político e da admissão de que ele tem direito a governar, só é possível num mundo onde dar a outra face e amar os inimigos faça sentido e condicione as consciências, mesmo a dos não crentes. Quando isso desaparece, como está a desaparecer, quando a sociedade se converte a um neopaganismo como se está a converter, e como se converteu na Itália fascista e na Alemanha nazi, a democracia liberal perde o seu fundamento e entra na crise a que assistimos.
quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024
Eleições e segurança
O problema da segurança interna não reside em termo-nos transformado num país inseguro. A insegurança nasce do comportamento das próprias forças de segurança, do seu afrontamento ao poder político legitimamente constituído. O caso da manifestação perante o Capitólio, no dia do debate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro, foi o sinal decisivo de que a autoridade do Estado está a ser escavada, politicamente escavada. Também a ameaça dos militares entrarem em protestos é um inadmissível desafio à ordem constitucional e à segurança interna. Pode-se compreender que polícias e militares estejam descontentes com as suas remunerações, o que não os diferencia da restante função pública. O que não se compreende é o desafio à autoridade do Estado daqueles que têm a função de velar por ela.
Os
desenvolvimentos geopolíticos trazidos pela invasão da Ucrânia e a possível
vitória de Donald Trump nas eleições de Novembro, nos EUA, estão a pôr em causa
os fundamentos da defesa externa de Portugal, assente na NATO. O fim da NATO,
ou uma versão desta sem empenho dos EUA, tornará toda a Europa, Portugal
incluído, um alvo apetecível de potências inimigas, mesmo daquelas que estão em
silêncio, contidas pela existência da NATO. Que papel, por exemplo, seria o da
Turquia num mundo sem a NATO, a que ela pertence? Que pretensões poderia
acalentar? A questão da segurança externa, aliado à da segurança interna, é o
principal problema que o país enfrenta e não a questão das pensões, dos
salários, dos impostos. Discutir o futuro das Forças Armadas e o da afronta à
ordem pública e constitucional são assuntos vitais para o país, mas aqueles que
querem governar preferem ignorá-las, pois escaldam e não dão votos. Preferem os
jogos florais e a tômbola das promessas.
P.S. O artigo foi escrito ainda antes de Pedro Passos Coelho ter estabelecido relação entre imigração e insegurança, contribuindo desse modo para o crescimento da insegurança.
terça-feira, 27 de fevereiro de 2024
Comentários (16)
Fernando Lemos, Coisas de Vidro, 1949 (Gulbenkian) |
domingo, 25 de fevereiro de 2024
Ensaio sobre a luz (114)
Emil Nolde, Lake Lucerne, 1931-34 |
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024
IX Vertige
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024
Mitt Romney e o autogoverno em perigo
Francis Bacon, Man Turning on the Light, 1973-74 |
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024
Simulacros e simulações (60)
Fernando Azevedo, Composição, 1958 |
sábado, 17 de fevereiro de 2024
Este não é o meu mundo
Esta sensação de não se pertencer ao mundo em que se vive não é inédita. Contudo, cada um tem a sua experiência e é essa que conta para ele. O meu mundo começou antes de eu nascer. Começou em 1945, com o fim da segunda grande guerra. Nasci nele e fui por ele moldado, mesmo se vivi muitos anos num país que estava fora do mundo que existia. Esse mundo que me acolheu fugia de um outro tenebroso. Trazia uma promessa de liberdade, que demorou, como tudo, a chegar a Portugal. Havia nele um conjunto de valores e de perspectivas do que era uma vida digna de ser vivida, tanto ao nível moral como político. Havia também a ilusão, vejo-o agora, de que esse mundo tinha um grande futuro diante de si. Nós que vivíamos nesse mundo fugíamos das trevas e não sabíamos que nos estávamos a dirigir de novo para elas.
Aqueles que
viveram, em 1974, quase trinta anos depois, a chegada do mundo que começara em
1945, lembram-se que as grandes figuras políticas de então, apesar de
defensoras de um regime de liberdade, eram figuras graves. Tinha-se a
percepção de que elas estavam seriamente preocupadas com o rumo da comunidade.
Não sei bem quando isso se perdeu, mas talvez tenha sido no início deste
milénio. Esse mundo da gravitas política está morto. Talvez tenha
morrido quando deixei de ser o senhor Maia e passei a ser o senhor Jorge. Um
mundo em que apenas os clowns fascinam o eleitorado, onde gente sem
programa, a não ser aproveitar a liberdade para a matar, nem ideias sobre o
país é idolatrada pelas novas gerações já não é o meu mundo. Vivemos já, estou
convicto, num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder,
mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede
de sangue e miséria.
quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024
O projeto do Chega
Foto encontrada aqui |
Consta que esta foto foi tirada quando o líder do Chega e cerca de uma centena de apoiantes se preparavam para fazer um vídeo, no dia de Carnaval, para a campanha eleitoral nas redes sociais. É possível que nem os simpatizantes, nem os militantes do Chega, nem o próprio André Ventura percebam o que a fotografia diz. Tem duas mensagens políticas muito fortes e pouco agradáveis.
Em primeiro lugar, é a natureza narcísica da liderança do Chega. A política para André Ventura é um espelho para que ele se possa contemplar. Há um culto da personalidade que lembra não apenas Donald Trump, mas figuras como Estaline, Mussolini, Hitler, Mao Tse-Tung ou os déspotas da Coreia do Norte. Mesmo nos políticos democráticos, existe um forte narcisismo, contudo nunca chega ao fomento do culto da personalidade.
A segunda mensagem está relacionada com o modo como o líder do Chega parece ver a sociedade. A sociedade é vista como um terrível, o mais terrível, igualitarismo. A esquerda defendeu, e defende ainda que de forma mais mitigada, um igualitarismo social e económico. Aquilo que vemos na fotografia é um igualitarismo existencial, a anulação da diferença que o rosto de cada um significa. O projeto do Chega é o da eliminação da identidade pessoal, para que todos sejam à imagem e semelhança do querido líder.