sexta-feira, 26 de abril de 2024

Beatitudes (68) Uma praia vazia

Armando Basto, Paisagem / Praia, 1920

Olhar a praia, as areias, ouvir o mar, sem que alguém se intrometa no campo visual ou arremesse o pesado dardo da voz. Então, pode-se caminhar pelo vazio meditando sobre o enigma do silêncio ou ficar sentado para contemplar o mistério do oceano.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Silvina Ocampo, A Promessa

 

A escritora argentina Silvina Ocampo (1903-1993) apenas escreveu um romance, A Promessa, que, aparentemente, deixou inacabado, tendo sido publicado postumamente. Começou a escrevê-lo em 1960, mas a certa altura a doença ter-se-á intrometido no projecto. A edição portuguesa, da responsabilidade da Antígona, data de 2023, com tradução de Helena Pitta. A obra é, em aparência, uma exploração da natureza fluida tanto da vida como da memória e é desencadeada por uma queda, essa situação mitológica que abre o horizonte onde se desenrola a vida e a morte. Trata-se de uma queda prosaica da narradora e protagonista, da qual não se sabe o nome e pouco da sua situação. No entanto, a essa queda corresponde uma salvação, da qual se suspeita a intermediária, mas não o modo. Quando se deslocava, num transatlântico, para a cidade do Cabo, para se reunir com a parte menos enfadonha da minha família, ao debruçar-se sobre a amurada do navio, caiu ao mar, sem que ninguém a visse. O livro é o resultado de uma promessa a Santa Rita, a das causas impossíveis: Não esqueci o pormenor desta atitude quando lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar até ao dia do meu próximo aniversário.

O romance começa com o problema da narradora acerca da possibilidade de publicar o texto, interrogando-se sobre que editora o iria publicar. Isso só seria possível se acontecesse um milagre e ela acredita em milagres. Esta preocupação é o sinal de que o impossível tinha já acontecido. Apesar de ter caído ao mar sem que ninguém desse por isso, ela ali estava preocupada com a publicação e recorrendo mais uma vez aos serviços da Santa Rita. A inverosimilhança da situação narrada, a da salvação de alguém que cai em alto-mar sem que ninguém dê por isso, é contrabalançada com o recurso à intervenção milagrosa de uma santa que tem por missão advogar as causas perdidas. A promessa é o próprio livro, um livro muito especial, um dicionário de recordações às vezes vergonhosas, humilhantes. Não se pense, todavia, que se trata de uma confissão, pois a narradora não tem vida própria, apenas sentimentos: As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrária, torna-se minha. Não é uma confissão, mas um relato de memórias de outros.

Perdida no oceano, vendo o navio a afastar-se, decide nadar e enquanto nada, para não se deixar atrair pelo canto de sereia da morte, deixa-se levar por um itinerário de recordações, uma modalidade de resistência ao sono, uma espécie de itinerário que, não sem ironia, também aconselho aos presos, aos doentes que não se conseguem mexer ou os desesperados à beira do suicídio. A memória é então uma modalidade de resistência à inacção e não há maior inacção do que a morte, morte que a cercava por todos os lados e que, segundo uma visão racional, seria mais do que certa. Existe uma confluência salvífica: a intercessão de Santa Rita e o continuado exercício da reminiscência. Essa memória, plasmando a nossa corrente de consciência, é feita de diversas narrativas, algumas mais complexas e com trama romanesca, outras como meros apontamentos, histórias incoadas, mas que não se desenvolvem. Assim, como nos repetimos, também a memória da nadadora à beira da morte se repete, mas ao repetir-se altera ligeiramente o que tinha contado. Um dicionário de recordações, com algumas entradas quase iguais a outras, mas que todas elas poderiam dar lugar a um exercício narrativo mais amplo e complexo, contos, novelas e romances, o que estaria, porém, em contradição com a situação presente daquela que se entrega a essas recordações.

A sucessão de recordações e a luta da protagonista pela vida, que se mistura na narrativa memorial, permitem pensar na relação entre duas instâncias temporais, o passado e o presente. O presente é vivido no fio da navalha, sempre sob a ameaça de haver um corte que impedirá que o futuro se torne presente. O que permite resistir à morte é a reminiscência do passado. O presente é sempre um buraco vazio e precisa de ser preenchido pelos produtos da memória ou da expectativa. Numa situação de morte iminente, a expectativa de um futuro parece impossível e o que pode alimentar e dá combustível à luta do presente é o material proveniente do fundo da memória. A questão, porém, é um pouco mais complexa, pois aquilo que está em jogo não é a aventura vivida no oceano, mas a aventura de escrever e publicar o livro prometido a Santa Rita. Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este texto? Que editora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que acontecesse um milagre. Acredito em milagres. O perigo não é morrer afogada, desse, de modo inexplicado, ter-se-á livrado, mas o de cumprir a promessa feita a santa Rita, isto é, escrever e publicar o livro.

O que se revela, então, na ficção de Silvina Ocampo é uma analogia entre lutar pela vida em alto-mar e o trabalho de escrever. A arte literária – toda a arte, porventura – é o resultado de uma queda do artista. A escrita é o exercício de natação que o mantém à tona de água e é alimentado pela memória, pelas histórias acumuladas que são um penhor de salvação. O romance é uma meditação sobre a arte romanesca, na qual todo o artista é, em última instância, um analfabeto que tem de recorrer, através de uma promessa, à intercessão de uma santa das causas impossíveis, para que a obra seja realizada e aceite. Toda a obra de arte é uma causa impossível que se tornou possível pelo milagre. Só se torna artista aquele que acredita em milagres, no milagre da sua própria arte que se consuma na obra realizada. Há, no romance de Ocampo, uma fenomenologia da arte literária marcada por três instâncias. A da queda no desejo de criar (em analogia com a queda da amurada do navio), a da promessa que marca o compromisso de escrever (o exercício de natação em alto-mar) e a do milagre da realização da obra (a salvação da morte iminente). São cem páginas de um inteligente jogo de analogias.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

XIVa Coloana fará sfârsit

Artur Bual, Hoje VI, 1965 (Gulbenkian)

querer que morte e vida se apaguem

e o tempo de tão rápido se cale

nada é verdadeiro só imagem

onde o bem vejo sei oculto o mal

 

voa para longe da terra

o verbo que tudo encerra


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

sábado, 20 de abril de 2024

Família tradicional e luta do bem contra o mal

 

A publicação do livro Identidade e FamíliaEntre a Consistência da Tradição e os Desafios da Modernidade, apresentado por Passos Coelho, gerou uma inusitada efervescência, o que foi uma vitória para os organizadores desta obra colectiva. As leituras críticas incidiram na ordem política e na ordem dos costumes. Na primeira, o detonador foi a pessoa escolhida para a apresentação e também o que ela disse. Na segunda, foram as considerações feitas sobre a chamada família tradicional e o papel da mulher. Neste caso, são relevantes as intervenções de Paulo Otero, um dos coordenadores e também autor de um dos textos. Vale a pena comentar dois excertos da Introdução, um texto dos coordenadores que dá sentido ao conjunto publicado.

A dado passo diz-se: “De todas as sociedades humanas, a família é a única natural, universal e intemporal. Nasceu com o Homem e existe antes do Estado. Não foi criada cientificamente, não resulta de um qualquer legado jurídico, não foi imposta por acto administrativo, não germinou fruto de uma qualquer ideologia, não é o resultado de meras circunstâncias ou contingências históricas.” O interessante não é o que se diz, mas o que se oculta. Esconde-se que, na História da humanidade, a família nem sempre significou a mesma coisa. Esconde-se que em diferentes espaços culturais de hoje existem diferentes tipos de famílias tradicionais, que não se confundem com as famílias tradicionais que os autores defendem. Negam, por outro lado, uma evidência: qualquer forma de família é um produto cultural e não apenas uma emanação uniforme da natureza, como qualquer antropólogo lhes explicaria. Os autores partem de uma falsificação da realidade e não de uma análise credível da família.

A segunda citação revela o perigo que se esconde neste discurso: “Lutar (sic) pelo bem deixou há muito de constituir notícia, não dá audiências, nem abre noticiários. Já o mal sequestrou a sociedade que o consome em doses crescentemente acrescidas”. Estamos perante uma visão maniqueísta da realidade social e moral. Os autores estão do lado do bem, são os seus representantes, enquanto os que pensam de outro modo estão do lado do mal de cuja realidade não parecem duvidar. Esta visão, religiosamente herética (substancializa o mal e não o vê como privação de bem), tem uma terrível tradução política. Deixa de haver adversários políticos, mas inimigos, aos quais, em nome do bem supremo que se representa, se pode fazer o que se entender. Estes católicos tradicionais têm uma visão da família, da sociedade e do mundo moral muito tradicional, mas muito pouco caritativa, isto é, muito pouco católica.

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Nocturnos 117

Antoni Guansé Brea, Nocturne, 1992

Noite a transbordar de noites, um delírio de veludos escurecidos  e de sedas obscurecidas pelo trânsito inquieto da Lua. Nada resplandece na púrpura da escuridão. No céu, as estrelas apagaram-se e nenhum sol veio dardejar no horizonte. Eis a hora rude onde a vida em delírio entra no alvéolo do abismo.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Comentários (18)

João Queiroz, sem título, 2004

esferas dentro de esferas
- nada se via
escurecido tudo vermelho
Manuel Rodrigues

Suspende-se a radiação dentro das esferas, a luz coagulada não se desloca e, se olhos houver, ela não os tocará e serão cegos. A cegueira é um ofício feito de recusas, um suspiro que se deixa cair, a arte de quem, suspensa a visão, se entrega ao mar vermelho onde tudo se torna indistinto. Dentro das esferas, outras esferas transportam nelas essa cegueira vivaz, feita de ausência de radiações e de olhos imóveis, impotentes para desbravarem o caminho que os levará ao ponto onde a luz ficou retida, numa condensação inquietante, numa recusa de brancura, numa prisão escurecida pelo infinito fulgor do vermelho.

domingo, 14 de abril de 2024

Beatitudes (67) Vida mediana

Edward Arning, Aufnahmen von Dr. Ed. Arning in Hamburg, 1901

A felicidade será o resultado de um exercício de pequenas coisas. Nada de grandes gestos, nem grandes palavras, tão pouco escandalosas omissões. Basta sentar-se e folhear uma revista ou um jornal, talvez um livro. Trocar as paixões por uma calma quase contemplativa, deixar que as coisas que nos rodeiam floresçam lentamente sem os nossos imperativos. Aprender a lidar com o tempo como se lida com um rio de águas traiçoeiras. Ali, nessa vida mediana, um contentamento nasce e afirma-se pois onde não existe a inclinação para a grandeza também não há lugar para grandes decepções, e nada torna mais infeliz uma pessoa do que as grandes decepções.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Ensaio sobre a luz (116)

Mário de Oliveira, Paisagem de Castela III, 1966 (Gulbenkian)

Exposta à inclemência da luz, a terra, como uma virgem eterna, seca lentamente. Desenham-se rugas, as cores juvenis fenecem impiedosamente e a vida esvai-se na ausência de uma sombra revigorante. Em toda a luz se esconde um ponto negro e mortal.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

XIV Coloana infinita

William Turner, Sun Rising Through Vapor, Fisherman Cleaning and Selling Fish, 1807

se o sol entre nuvens já desponta

espelho onde todos se remiram

cansada esvoaça a ave tonta

pois da árvore a frágil casa tiram

 

tudo é pequeno e sem fim

           grande só a morte em mim 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Simulacros e simulações (62)

Fernando Calhau, sem título #481, 1980 (Gulbenkian)

O olhar indeciso suspende-se sobre a maré de carvão grafitada na brancura da página. O coração hesita, os olhos confessam não saber se, na ondulação simulada, se vê a agitação do mar ou o devaneio de uma seara soprada pelo vento. Só a escuta abre o corpo para o simulacro do caos que transpira sob a ordem apolínea inventada pelo desejo do coração, pela gramática do olhar.

sábado, 6 de abril de 2024

As eleições e o triunfo do pensamento mágico

 

Existe, em Portugal, uma franja pequena do eleitorado que quer, deliberadamente, destruir a democracia, não suporta os regimes liberais, sonha com o retorno ao autoritarismo. Ao votar Chega, fá-lo racionalmente. Contudo, a explosão do eleitorado do partido de André Ventura não se explica por esse tipo de eleitores. Têm sido adiantadas múltiplas explicações. Por norma, baseadas na suposta má conduta dos partidos do sistema (sic), o que teria gerado uma onda de insatisfação no eleitorado. A questão é mais funda. Que respostas têm estado disponíveis, do ponto de vista político, para a pergunta: como posso viver melhor? Por um lado, a resposta da esquerda tradicional: a luta colectiva, a solidariedade entre pessoas, gerará para cada uma essa vida melhor. Por outro, a da direita democrática tradicional: és livre, aposta em ti, a vida melhor depende do teu mérito. As duas respostas estão assentes na acção e no esforço.

A votação no Chega é a derrota destas duas respostas. Os insatisfeitos não apreciam o esforço das lutas colectivas, nem reconhecem que a sua situação esteja ligada ao seu mérito ou à falta dele. Crêem que a sua situação se deve aos políticos tradicionais, que são diabolizados. Está-se já no campo do pensamento mágico. A solução da minha insatisfação está, não no esforço colectivo ou individual, mas em alguém, o líder carismático, que virá salvar-me da situação em que me encontro. A partir da crença num líder salvador, o pensamento mágico reforça-se no encantamento dos slogans simplistas (Limpar Portugal), na negação da realidade – isto é, dos factos que negam a narrativa do líder – e no desenvolvimento de expectativas irreais de que problemas altamente complexos se podem resolver facilmente, bastando as palavras mágicas do salvador.

Os partidos tradicionais irão ter muita dificuldade em lidar com a nova situação. O pensamento mágico dificilmente é derrotado pelo discurso sensato e pela acção razoável. Os problemas que enfrentamos exigem esforço e racionalidade, coisa para a qual parte do eleitorado não está disponível. O pensamento mágico não exige esforço nem reflexão, vive de emoções, alimenta-se de mitos e slogans, propaga-se por contágio, como uma epidemia. Havendo uma liderança carismática, por norma, o pensamento mágico tende a aumentar e só perde força depois de uma desgraça. São tantos os exemplos – vindos da direita e da esquerda – em que o pensamento mágico dos cidadãos conduziu a uma tragédia que nem vale a pena enumerá-los. A democracia liberal, aquela que em Portugal nasceu há 50 anos, está perante um grande e grave problema.


quinta-feira, 4 de abril de 2024

A persistência da memória (29)

Theodor and Oskar Hofmeister, Am Feuerherd - Vierlande, 1903

Os gestos ligados ao fogo e à confecção dos alimentos são uma memória arcaica, trazem com eles um texto de fácil decifração, pois estão escritos num alfabeto universal que compõe um léxico que ainda hoje é reconhecido e que é estruturado por uma gramática luminosa. Imaginamos facilmente, extasiados pelas transformações do mundo material, que nos afastámos desse mundo antigo ou mesmo daquele que era o dos nossos avós, mas essa imaginação é ilusória e não resiste a uma imagem, simples que seja, de alguém cuidando do fogo para que a mesa esteja repleta e a vida possa continuar incólume o seu curso.

terça-feira, 2 de abril de 2024

O ocaso do espírito liberal

Assistimos a uma grave crise do espírito liberal. É de temer a sua morte. Podemos esboçar um retrato do espírito liberal com cinco características. Em primeiro lugar, a liberdade individual de cada um agir segundo a sua consciência, desde que isso não interfira na liberdade dos outros. Em segundo lugar, a igualdade de direitos, independentemente de qualquer característica diferenciadora (raça, sexo, religião, etc.). Uma outra característica é a tolerância, o propósito de respeitar as diferenças, sejam elas de crenças ou de comportamentos. Uma quarta característica é a racionalidade, a ideia de que a verdade pode ser obtida através do uso da razão. Por fim, o progresso baseado no conhecimento, que permitirá melhorar a sociedade através de reformas racionais.

Pessoas de diversas orientações políticas, desde que defendam as características acima enunciadas, possuem e participam no espírito liberal. Apesar de podermos encontrar alguns traços desse espírito na pólis grega, o espírito liberal, tal como ainda o conhecemos, tem o seu advento no Iluminismo e na constituição de uma esfera pública burguesa em confronto com o Absolutismo. Era, claro, apanágio de uma minoria ilustrada, preocupada em substituir as relações sociais baseadas na violência por outras fundadas no diálogo tolerante e racional, o qual, supunha-se, geraria as melhores soluções para os problemas dos indivíduos e das sociedades. Acreditava-se – e talvez ainda exista quem acredite – que a educação iria alargar paulatinamente a participação nessa esfera pública racional e que o espírito liberal se estenderia a toda a sociedade.

A evolução política do Ocidente – o fenómeno Trump nos EUA, o crescimento da extrema-direita na Europa, em Portugal, do Chega – mostra que esse espírito de tolerância, liberdade e racionalidade está muito doente. Talvez seja vítima do seu próprio triunfo e também das suas ilusões. O liberalismo, enquanto tornava todos iguais em direitos, acentuava, na economia, grandes diferenças de rendimentos, o que fomenta reacções contra esse espírito. O triunfo do chamado neoliberalismo está a matar o espírito liberal. Por outro lado, a crença de que a educação da população iria alargar o espírito liberal a toda a sociedade parece ser uma ilusão, a qual se torna patente quando se olha a intervenção das pessoas nas redes sociais. O que impera hoje é o espírito de facção e não a tolerância, o pensamento mágico e não a racionalidade, a discriminação e não a igualdade de direitos, a desarticulação das instituições e não a reforma progressiva, o uso da liberdade para a liquidar. O espírito liberal parece viver um doloroso ocaso.

domingo, 31 de março de 2024

XIII L’escalier du diable

Julião Sarmento, The house with upstairs in it, 1996

infinito o dia negro ascende

da vida luminosa ao inferno

com rudes mãos a alma se te prende

na morte ao incêndio do Inverno

 

em dissonância sonora

noite pela terra fora


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

sexta-feira, 29 de março de 2024

Meditações melancólicas (93) Melancolia rural

Friedrich Christian Reinermann, Aldeia nas montanhas junto a um riacho

Não serão muito aqueles que não trazem em si uma estranha melancolia proveniente de um sentimento de amor ao mundo rural. Cristalizou-se na imagem desse mundo a pureza das coisas inocentes e a perfeição daquilo que permanece perto do ardor da terra. Muitas daqueles que sofrem dessa estranha patologia, pois de patologia se trata, nunca viveram ou, tão pouco, tiveram contacto com esse universo que o tempo aniquilou. Serão, por certo memórias ancestrais que se construíram através de narrativas familiares ou de imagens que proliferam um pouco por todo o lado. Há quem se atreva a dizer que essa melancolia não é outra coisa senão um signo de uma saudade, a do paraíso perdido. E, de certo modo, terá razão, pois no cerne de toda a melancolia existe um sentimento de perda e um anseio de plenitude.

quarta-feira, 27 de março de 2024

Comentários (17)

Odilon Redon, O Buda, 1896

 Como se escutasse. Silêncio: distâncias belas...
Detemo-nos, deixando de as ouvir.
Rainer Maria Rilke

Um enigma envolve aquelas que deixamos de ouvir. Talvez sejam vozes femininas, as de uma mãe que chama por nós na terra precária da infância, as de um primeiro amor cujo rosto, então amado, ficou esquecido no desvão da adolescência, as de uma desconhecida que deixou pairar na atmosfera o timbre das suas palavras e o visco dos seus olhos. Todas essas vozes nos abandonaram, refugiaram-se na distância do passado, ainda assim belas no cerco da memória. Ou talvez não sejam vozes aquilo que pede a nossa escuta e exige o silêncio. Será um outro mundo no qual já não habitamos, aquele em que a Terra era centro do cosmos e em torno dela havia esferas etéreas incrustradas com estrelas fixas que rodopiavam na noite para nos iluminar o caminho. É a sua música que, na distância, nos chama ao silêncio e como budas nos detemos perante a sua voltear eterno à espera da iluminação.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Nocturnos 116

Nuno Cera, Snapshots 4, 1997

Ouve-se os comboios ranger nos carris, enquanto a noite desce e enche de mistério a estação, esse lugar onde se espera a melancolia da partida ou se aguarda, no fulgor da alegria, quem chega. Tomados pelo véu nocturno, esses lugares inóspitos e insalubres metamorfoseiam-se e são o cenário de um conto de fadas ou o palco de um drama de amor. 

sábado, 23 de março de 2024

XII Entrelacs

Frédéric Bazille, Reclining Nude, 1864

as tranças que desfaço em teus cabelos

são moinhos de erva seca ao vento

enrolam-se nas mãos brancos novelos

se em ti meu corpo cai suave e lento

 

um sopro de luz e mágoa

           salta e dança na fria frágua 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]


quinta-feira, 21 de março de 2024

Ensaio sobre a luz (115)

Mário de Oliveira, Paisagem, 1973 (Gulbenkian)

Olha-se uma paisagem e fica-se perdido nos elementos que a compõem, as características geográficas do território, a peculiaridade da flora, a dimensão do relevo ou a sua ausência, a presença ou a falta de água. Nessa alienação no visível oblitera-se a essência da paisagem, a luz que a ilumina e a configura, que a põe disponível para o olhar e permite descobrir os seus enigmas e os segredos que a habitam.

terça-feira, 19 de março de 2024

Simulacros e simulações (61)

Maria Helena Vieira da Silva, Ermitages (Bleu Tressé), 1971 (Gulbenkian)

Simule-se a solidão, que ela venha pela véspera do rio ou pela aurora da lezíria. Dentro dela, há um nome a arder, palavras trançadas no azul da luz ou no vermelho da escuridão. Depois, erga-se uma casa de colmo e o solitário encontrará, no simulacro do abandono, o nome que lhe deram e o destino que trazia no fundo do coração ou a algibeira vazia onde tinha todos os haveres.

domingo, 17 de março de 2024

Beatitudes (66) Música da noite

Ernst Ludwig Kirchner, Accordion Player by Moonlight, 1924

Os sulcos da noite abrem-se à luz da Lua. Tudo o que dia manifesta, vinda a escuridão, transforma-se em segredo e enigma. Então, um homem senta-se na humidade do chão e das suas mãos sai uma música que sobe suavemente às esferas celestes. Tomadas pelo mistério da hora, as mulheres sentam-se extáticas e contemplam a invisível linha do horizonte, enquanto o luar e anoite entram pelos seus olhos e a música as invade, abrindo o coração para a alegria desmedida das noites eternas.

sexta-feira, 15 de março de 2024

A degradação da paisagem política

 

Não vale a pena comentar o caos em que as decisões de Marcelo Rebelo de Sousa lançaram o país. Também não vale a pena salientar que o nosso sistema semipresidencial é um problema, devido aos poderes arbitrários dos Presidentes da República. Vale a pena, porém, olhar para o país e para aquilo que estas eleições mostram. Em primeiro lugar, o tradicional centro político (CDS, PSD e PS), embora maioritário no país, já não chega aos 60%. Em 2022, os três partidos somados ultrapassavam ligeiramente os 70%. Uma radicalização que atingiu duramente os resultados do PS, mas que também paralisou o par CDS e PSD, que, como AD, têm mais ou menos a mesma percentagem de votos que em 2022. A rasura do centro é um preocupante sinal de degradação da vida democrática.

A paisagem política mudou radicalmente com os 18% do Chega. O seu crescimento exponencial é outro dado da radicalização do país. Não apenas por ser um partido populista, mas pelo facto de conseguir atrair o eleitorado não tendo qualquer consistência discursiva ou de atitude. Se compararmos o Chega com o Vox espanhol, percebemos de imediato uma diferença significativa. O partido espanhol é altamente estruturado, tanto do ponto de vista ideológico como do comportamento das suas lideranças. O partido português chega a uma votação significativa apenas fundado nas diatribes de André Ventura, no comportamento desrespeitoso perante os adversários políticos, as instituições democráticas da República e os grandes valores do 25 de Abril. Na prática, os eleitores não fazem ideia de quais são as políticas substantivas do Chega. Mesmo assim votam nele, como se houvesse um desejo de destruição, a começar na destruição do PSD – um dos objectivos de Ventura – e a seguir da democracia tal como a entendemos.

Outro sinal da radicalização da nossa sociedade é a erosão do Partido Comunista. É preciso compreender o papel central que este partido tem tido no equilíbrio do sistema político. Não tanto no jogo parlamentar, embora também aí tenha tido papel de relevo, mas no jogo social, onde o papel do PCP nos sindicatos tem sido central para evitar contestações anárquicas do regime e tem servido de escape aos sentimentos negativos que podem atingir parte da população. Neste momento, existem já movimentos de contestação inorgânicos, que não obedecem a qualquer racionalidade política, os quais são uma ameaça para a saúde da democracia. A erosão parlamentar do PCP e a do movimento sindical, que dificilmente será travada, é um outro sintoma de degradação da paisagem política no momento em que a transição à democracia faz 50 anos.

quarta-feira, 13 de março de 2024

XI En suspens

Stipo Pranyko, Cuadro com remo, 1998

murmúrios no vento andrajoso

suspendem-se ao tocar leves o chão

são palácios de gelo frio rugoso

mal os vejo na luz da outra mão

 

estrela no céu flutua


deusa breve branca e nua


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007]

segunda-feira, 11 de março de 2024

A tal maioria sociológica de direita

Umberto Boccioni, Agitate Crwod Surrouding a High Equestrian Monument, (1908) 
Um dos comentadores da SIC, daqueles que passam por independentes, dizia, não sem enlevo, que agora há no país uma maioria sociológica de direita. E isso justificará, por certo, que se realizem as políticas que ele, comentador, deseja. Contudo, há um erro fundamental na sua apreciação. Não existe qualquer maioria sociológica de direita. Existe, sim, uma maioria eleitoral de direita, uma maioria significativa, mas, como todas as maiorias eleitorais, meramente conjuntural. 

Imaginemos um programa como aquele que Passos Coelho tinha para a sua segunda legislatura, caso tivesse uma maioria no parlamento. Um programa que a Iniciativa Liberal, por certo, apoiaria com entusiasmo. O PSD e CDS apoiariam, mas com pouco entusiasmo. Imaginará o comentador da SIC que a maioria das pessoas que votaram no Chega suportaria esse tipo de política? Por certo haverá gente, entre os quadros recrutados na IL e na área da AD, que aplaudiria uma política dessas, mas a multidão votante do Chega, mal percebesse a realidade dessas políticas, logo se desligaria do partido de Ventura, caso este se decidisse apoiar aquilo com que o nosso comentador sonha. É pouco plausível que exista, no país, uma maioria sociológica disposta a apoiar os sonhos do que se convencionou chamar neoliberalismo.

sábado, 9 de março de 2024

O progresso moral da humanidade (16)

Xaime Quessada, La guerra, 1967

A guerra é o ofício do ódio abstracto. Matam-se pessoas não porque se odeiem pessoalmente, mas porque foi prescrito que se devem matar, pois estão ao serviço do inimigo. Aqueles que podem morrer pela nossa acção ou aqueles que podem matar-nos são apenas desconhecidos, os quais, a mais das vezes, receberíamos em casa e com eles, a partir de certa altura, partilharíamos a mesa e as confidências. Na verdade, os soldados nunca matam o seu verdadeiro inimigo, o qual pode estar tanto no outro lado da trincheira como do seu lado, mas um igual, por norma um inocente que chegou ali tão espantado quanto ele. Será um enigma o facto de os homens, aqueles que foram investidos na função de combatente, não se recusarem a entrar num jogo em que nada têm a ganhar e tudo a perder. O que os atrairá nesse ódio abstracto que lhes obnubila o juízo moral?

quinta-feira, 7 de março de 2024

Cadernos do esquecimento 53 Duplicar a vida

Paul Signac, Women at Well, 1892

Dever-se-ia anotar toda a vida, fazer o registo minucioso do que se foi vendo e ouvindo, dos grandes acontecimentos e das trivialidades de cada dia, dos actos e das omissões. Fundamentalmente, das palavras que se foram trocando, as ditas e as escutadas. Ter-se-ia, então, duas vidas, a vida vivida no mundo da vida e a vida escrita. Uma seria turbulenta; outra, serena com a serenidade que a escrita traz ao espírito que luta contra o esquecimento. Que sei eu das mulheres que, na infância longínqua, dirigiram-se, com os seus cântaros de barro avermelhado, ao poço, onde uma roldana cantava, enquanto a corda subia e descia? Apagaram-se, não sei o seu nome, nem quem foram. Puras sombras raptadas para dentro de um caderno de folhas em branco, onde se acumula os vestígios de tudo o que foi tomado pelas hordas do esquecimento.

terça-feira, 5 de março de 2024

Nocturnos 115

Camille Pissaro - Boulevard Montmartre - Night, 1897

A noite dos boulevards é uma lança de luz contra a escuridão dos céus. Os anjos, confusos, não sabem se ali é noite pontilhada de luzes ou se é dia rodeado de escuridão. Sentam-se nos telhados e olham atónitos o mover-se das onda humanas, naquele espaço onde a paisagem nocturna se mascara de dia, naquelas horas que a perplexidade os afasta da missão de cuidar dos homens.

segunda-feira, 4 de março de 2024

X Der Zauberlehrling

Luis Roibal, Aventador, 1952

suave cântico de espuma azul

onde te escondes se por nós não passas

nas pesadas montanhas mais ao sul

ou no rio lêvedo de pó e garças

 

searas de pedra dura

          crescem na noite mais pura 

[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007] 

sábado, 2 de março de 2024

A crise das democracias liberais

A crise das democracias liberais, que tanto e a tantos atormenta, pode residir num conflito entre a natureza humana e o regime democrático-liberal. Num livro de 2008, Democratic Authority – a philosophical framework, o filósofo David. M. Estlund afirma “A ideia de democracia não é naturalmente plausível”. Recentemente, numa antecipação da sua biografia a sair em Outubro, o senador republicano Mitt Romney afirmava que “A experiência da América com a autogovernação está em luta contra a natureza humana”. De facto, a democracia liberal (a ideia de autogovernação) parece não estar inscrita na nossa natureza. Uma visão próxima de Kant poderá argumentar que a democracia liberal é um projecto da razão para domesticar a nossa animalidade. Não descartando a tese kantiana, prefiro uma outra, a da relação íntima entre democracia liberal e cristianismo.

O cristianismo na sua natureza mais fundamental é uma religião adversa à natureza humana. Se olharmos para outras religiões percebemos que nascem daquilo que os homens são. O cristianismo, pelo contrário, propõem uma visão moral que confronta a nossa natureza, que exige que a superemos. Uma ética fundada em dar a outra face ou em amar os inimigos está em viva contradição com a natureza humana. O cristianismo é um programa de luta contra as nossas pulsões mais vivas, como não se cansou de denunciar Nietzsche. A democracia liberal resulta do próprio cristianismo, mesmo se igrejas cristãs se lhe opuseram. As correntes políticas democráticas – conservadorismo, liberalismo e socialismo – são emanações de diversos aspectos que estavam unidos no cristianismo (a tradição, a liberdade do cristão e o livre-arbítrio, a igualdade perante Deus). A democracia herdou, da sua fonte cristã, esse aspecto contra-natura, de que falam Estlund e Romney.

As democracias modernas liberais tremem porque o cristianismo com os seus imperativos contra-natura está a evaporar-se da consciência dos homens ocidentais, mesmo daqueles (ou em primeiro lugar desses) que se dizem cristãos ortodoxos e advogam um fundamentalismo tradicionalista. A democracia liberal, com as suas regras de reconhecimento do adversário político e da admissão de que ele tem direito a governar, só é possível num mundo onde dar a outra face e amar os inimigos faça sentido e condicione as consciências, mesmo a dos não crentes. Quando isso desaparece, como está a desaparecer, quando a sociedade se converte a um neopaganismo como se está a converter, e como se converteu na Itália fascista e na Alemanha nazi, a democracia liberal perde o seu fundamento e entra na crise a que assistimos.

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Eleições e segurança


Estamos em campanha eleitoral e as questões mais importantes para o país não merecem qualquer atenção dos candidatos. Essas questões estão relacionadas com a segurança, a interna e a externa. Os candidatos preferem os jogos florais em torno de irrelevâncias, como a da avó de Mariana Mortágua ou os tiros de Famalicão, ou aquilo que imaginam que os eleitores querem ouvir, como as mirabolantes promessas sobre as pensões ou a de um contínuo crescimento económico, como se existissem vários planetas Terra disponíveis para os nossos desejos. Contudo, os problemas de segurança interna e externa são bem mais preocupantes para a vida das pessoas, mesmo que estas não o percebam, do que o crescimento da economia, as pensões, os impostos e os salários.

O problema da segurança interna não reside em termo-nos transformado num país inseguro. A insegurança nasce do comportamento das próprias forças de segurança, do seu afrontamento ao poder político legitimamente constituído. O caso da manifestação perante o Capitólio, no dia do debate entre Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro, foi o sinal decisivo de que a autoridade do Estado está a ser escavada, politicamente escavada. Também a ameaça dos militares entrarem em protestos é um inadmissível desafio à ordem constitucional e à segurança interna. Pode-se compreender que polícias e militares estejam descontentes com as suas remunerações, o que não os diferencia da restante função pública. O que não se compreende é o desafio à autoridade do Estado daqueles que têm a função de velar por ela.

Os desenvolvimentos geopolíticos trazidos pela invasão da Ucrânia e a possível vitória de Donald Trump nas eleições de Novembro, nos EUA, estão a pôr em causa os fundamentos da defesa externa de Portugal, assente na NATO. O fim da NATO, ou uma versão desta sem empenho dos EUA, tornará toda a Europa, Portugal incluído, um alvo apetecível de potências inimigas, mesmo daquelas que estão em silêncio, contidas pela existência da NATO. Que papel, por exemplo, seria o da Turquia num mundo sem a NATO, a que ela pertence? Que pretensões poderia acalentar? A questão da segurança externa, aliado à da segurança interna, é o principal problema que o país enfrenta e não a questão das pensões, dos salários, dos impostos. Discutir o futuro das Forças Armadas e o da afronta à ordem pública e constitucional são assuntos vitais para o país, mas aqueles que querem governar preferem ignorá-las, pois escaldam e não dão votos. Preferem os jogos florais e a tômbola das promessas.

P.S. O artigo foi escrito ainda antes de Pedro Passos Coelho ter estabelecido relação entre imigração e insegurança, contribuindo desse modo para o crescimento da insegurança.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Comentários (16)

Fernando Lemos, Coisas de Vidro, 1949 (Gulbenkian)

Escutámos este nome: as mónadas. Depois
imaginamo-las. Eram como o pólen
Fernando Guimarães

Esses nomes nascidos da pura fantasia, inventados num sonho onde se deambula pela antiga Grécia e se escutam aquelas palavras que chegaram até nós destituídas de som, apenas traços inscritos numa matéria do mundo, sinais de combate ao esquecimento, esses nomes florescem naqueles territórios onde os homens, pensando, deambulam à procura da sua casa, de um sinal que lhes permita antever, no turbilhão das coisas quotidianas, a perfeição do mundo que haveria de caber a quem pensa. Então, pegamos neles e plantamo-los no mais belo dos jardim, até que floresçam e atraiam o zumbido das abelhas que, extasiadas, colherão até ao último grão o pólen que há-de fazer nascer novos mundos.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Ensaio sobre a luz (114)

Emil Nolde, Lake Lucerne, 1931-34

Estamos ainda longe de compreender a gramática que ordena a luz e mais distantes estamos de prescrutar a semântica dos fenómenos luminosos. Quanto mais e melhor os explicamos, menos os compreendemos, pois a luz não é um segredo, um enigma, mas um mistério que não se abre ao desejo do corpo ou à razão do espírito.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

IX Vertige

Thomas Moran, Shoshone Falls, Snake River, Idaho, 1875

da velada ravina adio o salto

vê-se do rio raivoso a fria margem

sobe-se mais além e mais alto

no céu duma estrela há imagem

 

na noite negra do rio

pássaros ao desafio


[Quinze poemas sob música de György Ligeti, 2007] 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Mitt Romney e o autogoverno em perigo

Francis Bacon, Man Turning on the Light, 1973-74

O senador republicano Mitt Romney coloca, na biografia que irá lançar em Outubro (aqui), o problema Donald Trump de um modo interessante: A experiência da América com a autogovernação está em luta com a natureza humana. O autoritarismo é como a gárgula que está de vigia na catedral, pronta para atacar. A referência à natureza humana é central. Uma das críticas que desde sempre se fez ao comunismo foi a sua perspectiva ideológica estar em conflito com a natureza humana. Haverá na natureza da humanidade uma inclinação egoísta, ao contrário do que pensam os comunistas, que vêem essa característica como fruto da sociedade e da educação. Essa natureza centrada em si tornaria o comunismo uma utopia, cuja realização implicaria uma violência desmedida sobre a natureza humana. 

O que Mitt Romney diz vai mais longe. Não apenas uma visão social igualitarista do homem está em contradição com a sua natureza, como a visão liberal, a do autogoverno, choca com essa mesma natureza. Parte do eleitorado americano - e dos políticos republicanos - não suporta uma sociedade onde cada um tem a responsabilidade por si mesmo e age de acordo consigo. O eleitorado republicano nos EUA, mas também parte significativa do eleitorado europeu, incluindo o português, anseia por um homem forte, que o liberte da carga da responsabilidade. O que pretende, para usar a terminologia de Michel Foucault, é o regresso de um poder pastoral. Anseia por alguém que pastoreie o rebanho, cuide de cada ovelha e governe a sua vida, dispensando-o dessa tarefa terrível de pensar por si mesmo. Estamos num tempo em que a menoridade culpada, nas palavras de Kant, se traduz em votos e em projectos de regimes políticos. Contudo, e talvez isso seja o mais surpreendente, o que esses eleitorados desejam é uma espécie de comunismo. Não de natureza social, mas um comunismo existencial que se exprime na ideia de rebanho. Isto ajuda a explicar a razão por que, na Europa do Sul, se tem assistido à transferência dos eleitorados comunistas para a esfera da extrema-direita.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Simulacros e simulações (60)

Fernando Azevedo, Composição, 1958

Sempre o criador simula em si, no fundo do seu ser, a criação. É uma trabalho lento, marcado pela hesitação. Por vezes, vacila sobre a natureza da matéria, outras interroga-se duvidoso acerca da forma que lhe vai dar. O trabalho de criação, porém, não pára. Prossegue incauto nos rios subterrâneos da imaginação, alimenta-se nas fontes da memória e na foz da expectativa. Corre de simulacro em simulacro, até se tornar um mundo novo.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Este não é o meu mundo


Hoje, domingo, dia em que escrevo, tive não apenas a sensação, mas a certeza de que este mundo já não é o meu. Esse a que chamei meu acabou. Não sei bem qual foi a hora em que as coisas mudaram, em que a megera da História me deixou para trás. Penso agora nisso e não consigo perceber como e quando o meu mundo morreu, e um outro, ao qual não pertenço, nasceu, principiou a balbuciar e a gatinhar, depois a erguer-se sobre as pernas, a andar e a fazer-se ouvir, com uma voz cada vez mais alta. Havia sinais, mas pareciam coisas sem sentido, a princípio nem lhes dava importância. Por exemplo, a falência das antigas regras de tratamento. Não se tratava um homem desconhecido por senhor Jorge, mas por senhor Maia. Era o último nome que indicava uma pertença e constituía a identidade. Quando a moda do primeiro nome começou, talvez já o meu mundo estivesse moribundo.

Esta sensação de não se pertencer ao mundo em que se vive não é inédita. Contudo, cada um tem a sua experiência e é essa que conta para ele. O meu mundo começou antes de eu nascer. Começou em 1945, com o fim da segunda grande guerra. Nasci nele e fui por ele moldado, mesmo se vivi muitos anos num país que estava fora do mundo que existia. Esse mundo que me acolheu fugia de um outro tenebroso. Trazia uma promessa de liberdade, que demorou, como tudo, a chegar a Portugal. Havia nele um conjunto de valores e de perspectivas do que era uma vida digna de ser vivida, tanto ao nível moral como político. Havia também a ilusão, vejo-o agora, de que esse mundo tinha um grande futuro diante de si. Nós que vivíamos nesse mundo fugíamos das trevas e não sabíamos que nos estávamos a dirigir de novo para elas.

Aqueles que viveram, em 1974, quase trinta anos depois, a chegada do mundo que começara em 1945, lembram-se que as grandes figuras políticas de então, apesar de defensoras de um regime de liberdade, eram figuras graves. Tinha-se a percepção de que elas estavam seriamente preocupadas com o rumo da comunidade. Não sei bem quando isso se perdeu, mas talvez tenha sido no início deste milénio. Esse mundo da gravitas política está morto. Talvez tenha morrido quando deixei de ser o senhor Maia e passei a ser o senhor Jorge. Um mundo em que apenas os clowns fascinam o eleitorado, onde gente sem programa, a não ser aproveitar a liberdade para a matar, nem ideias sobre o país é idolatrada pelas novas gerações já não é o meu mundo. Vivemos já, estou convicto, num mundo tenebroso, onde os clowns ainda não estão no poder, mas este já espera por eles, para que a História satisfaça a sua insaciável sede de sangue e miséria.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O projeto do Chega

Foto encontrada aqui

Consta que esta foto foi tirada quando o líder do Chega e cerca de uma centena de apoiantes se preparavam para fazer um vídeo, no dia de Carnaval, para a campanha eleitoral nas redes sociais. É possível que nem os simpatizantes, nem os militantes do Chega, nem o próprio André Ventura percebam o que a fotografia diz. Tem duas mensagens políticas muito fortes e pouco agradáveis. 

Em primeiro lugar, é a natureza narcísica da liderança do Chega. A política para André Ventura é um espelho para que ele se possa contemplar. Há um culto da personalidade que lembra não apenas Donald Trump, mas figuras como Estaline, Mussolini, Hitler, Mao Tse-Tung ou os déspotas da Coreia do Norte. Mesmo nos políticos democráticos, existe um forte narcisismo, contudo nunca chega ao fomento do culto da personalidade. 

A segunda mensagem está relacionada com o modo como o líder do Chega parece ver a sociedade. A sociedade é vista como um terrível, o mais terrível, igualitarismo. A esquerda defendeu, e defende ainda que de forma mais mitigada, um igualitarismo social e económico. Aquilo que vemos na fotografia é um igualitarismo existencial, a anulação da diferença que o rosto de cada um significa. O projeto do Chega é o da eliminação da identidade pessoal, para que todos sejam à imagem e semelhança do querido líder.