Podemos imaginar, com a ajuda de Kant, a razão como uma ilha rodeada por um mar encapelado onde são outras as regras que imperam. Regras sem regra, pode-se acrescentar. Esse mundo líquido é regido por uma deusa, a que os antigos deram o nome de Fortuna. Montaigne termina o ensaio Deixe-se para amanhã com um discreto louvor à divindade: “Mas, no fim de contas, é difícil no domínio das acções humanas estabelecer por meio da razão uma regra tão justa que exclua a Fortuna dos seus direitos sobre a matéria.”
O ensaio, contudo, não trata tanto desses direitos que a sorte dispõe sobre as nossas acções, mas do equilíbrio que deve existir entre a curiosidade excessiva e a procrastinação sem limites. A sua proposta veicula o meio-termo aristotélico. A curiosidade em excesso conduz à desmedida da impaciência; a preguiça extrema, ao desleixo de assuntos importantes.
A reflexão é desencadeada por uma meditação sobre as regras de etiqueta. Parte do exemplo, referido por Plutarco, de Rústico que, estando a escutar uma conferência do mesmo Plutarco, recebeu uma missiva do imperador, mas que não a abriu enquanto decorria a palestra. Montaigne sublinha que é de louvar a civilidade e a cortesia de Rústico. No entanto, contrapôs a essas virtudes uma eventual falta de sabedoria. Não poderia o adiamento da leitura da missiva imperial causar grandes danos?
O que Montaigne sublinha é um conflito na razão prática entre as regras de etiqueta e os imperativos políticos. Contudo, não esboça uma hierarquia entre eles. Perante a recepção de missivas, o que determina a sua imediata abertura ou o adiamento é a razão pelo qual se faz a opção. É aceitável que por um interesse de terceiros se adie a leitura da missiva, tal como o fez Rústico, mas já não o será se for por interesse próprio, como o são os casos do senhor Boutières, comandante de Turim, e de Árquias, tirano de Tebas.
Ora, Montaigne tem necessidade de fazer intervir a Fortuna porque acaba por não estabelecer uma clara e imperativa hierarquia entre os deveres políticos, regras de etiqueta e, mesmo, os prazeres pessoais, pois a primazia destes, antes criticada, acaba por ser absolvida pela introdução da Fortuna. É uma questão de sorte. Ora, se essa hierarquia fosse clara, seria possível estabelecer por meio da razão uma regra tão justa que excluísse a Fortuna dos seus direitos sobre uma parte, ainda que pequena, das acções humanas.
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