sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Um militar, outra vez?


Tudo indica que o Almirante Gouveia e Melo se candidatará à Presidência da República. O que poderá motivar um chefe militar, ainda no activo, a ambicionar tal cargo? Esta pergunta atormenta-me. Antes de voltar a ela, duas observações. Em primeiro lugar, o grande desempenho de Gouveia e Melo, que teve impacto no eleitorado, foi a coordenação do plano de vacinação contra a COVID 19. Isto dar-lhe-á um excelente currículo como coordenador de logística, mas nada nos diz sobre a sua capacidade para gerir um regime político com os seus rituais e jogos de equilíbrio entre as partes. Por outro lado, o facto de ser militar – habituado a uma vida em que o conflito interno é eliminado e a obediência se baseia na hierarquia – deveria levar qualquer cidadão a desconfiar da sua eventual candidatura ao mais alto cargo de um regime fundado no conflito, onde a única obediência aceitável é à lei.

A segunda observação prende-se com o actual regime político. A transição à democracia, em Abril de 1974, deve-se a parte das forças armadas, mas o regime só se tornou plenamente democrático quando os militares recolheram aos quartéis e o Conselho da Revolução foi extinto, pondo-se fim a uma tutela inaceitável sobre as instituições políticas. O primeiro Presidente eleito ainda foi um militar, mas a sua eleição está ligada aos acontecimentos da época e não deixou de ser problemática. Normalizada a vida em democracia, nunca mais um militar desempenhou um cargo de relevo na vida política. Uma eventual eleição de Gouveia e Melo – e, tendo em conta o país que somos, tem francas possibilidades de vencer – representará um retrocesso de quase 50 anos.

O que me atormenta pode-se traduzir nas seguintes questões: Que pretende um homem de acção, sem experiência política, ao aspirar a um cargo onde as questões fundamentais estão fora do seu alcance? Que pretende um homem habituado a comandar e a ser obedecido ao assumir um cargo onde o seu poder de imposição se limita ao que a lei prescreve? Como não será de crer que o Almirante pense fazer da Presidência da República o lugar para gozar a reforma de militar, estas questões são cruciais. Corremos o risco de instalar em Belém um factor de perturbação das instituições democráticas. É preciso recordar que o General Ramalho Eanes, com um projecto de poder pessoal, foi, a partir de certa altura, causa de grande perturbação político-institucional. De tal maneira que tanto Mário Soares como Sá Carneiro e Freitas do Amaral retiraram-lhe o apoio. Ora se Gouveia e Melo não tem um projecto de poder pessoal, por que razão se candidatará?

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