sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Um grande acontecimento


Que acontecimento de 2024 pode simbolizar a direcção que a humanidade ocidental parece seguir? O momento simbólico de 2024 é a eleição de Donald Trump. É esse evento, ocorrido na maior potência mundial, que nos pode orientar na compreensão das transformações do mundo. A importância não reside no facto de um republicano ganhar a Casa Branca, nem de se estar perante uma reeleição antecedida por um interregno. O simbolismo desta eleição situa-se noutro lado: os EUA são um país cuja fundação está ligada aos valores do Iluminismo, como se pode ver na Declaração de Independência ou na Constituição, e que elegeu um presidente assente numa coligação anti-iluminista.

Quais os valores centrais do Iluminismo? Em primeiro lugar, a ideia de que a razão humana é o motor do progresso. Só ela permite compreender o mundo e transformá-lo. Em segundo lugar, a ciência e a técnica, frutos dessa razão, como motores das transformações sociais que permitem aos homens viver uma vida cada vez melhor. Em terceiro lugar, a ideia de que a sociedade e as instituições políticas podem ser reformadas e melhoradas, tornando-se cada vez mais democráticas. A eleição do futuro presidente dos EUA assentou, em parte, em grupos que negam a ideia de progresso e não aceitam a razão como guia da acção humana. Também a ciência é questionada por muitos apoiantes de Trump, simbolizados, por exemplo, pelo futuro Secretário para a Saúde e Serviços Humanos, Robert F. Kennedy, um céptico em relação às vacinas. Por fim, o ideal de contínua democratização da sociedade sofreu uma derrota significativa, com a eleição de um presidente pouco preocupado com os direitos das mulheres e das minorias.

Este ataque aos ideais iluministas é o acontecimento simbólico do ano. Mostra que uma parte importante da humanidade – aquela que tinha adoptado esses ideais como a sua bússola existencial – os está a rejeitar, trocando a razão pela fantasia e o mito, a ciência pela opinião sem fundamento e a reforma democratizante da sociedade e das instituições pelo desejo de instituições mais opacas, fundadas na discriminação e sem pendor democrático. Estamos a assistir a um poderoso desafio aos grandes ideais que nortearam o mundo ocidental após as revoluções americana e francesa. Esse desafio não começou com Trump e não existe apenas nos EUA, como se pode ver na ascensão dos populismos europeus. É, contudo, um grande acontecimento, independentemente das suas consequências. Nos próximos anos, os valores iluministas vão estar sob grande pressão. Resta saber se têm poder de atracção suficiente para mobilizar os cidadãos em sua defesa.

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