quinta-feira, 30 de abril de 2020

A Casa Esquecida 11

Pier Luigi Lavagnino, Estate, 1963

Soa o clarim. Os impérios não se conquistam
na garganta estrangulada, na sombra da lua,
no murmúrio da renúncia. Um território voraz
arde arrebatado, um caos planetário prospera
no torpor da caliça, nas paredes que desabam.
De sussurro em sussurro crescem-te as rugas
e nas ruínas, uma memória de vidro e água,
a casa de sombra a arder no fogo do Inverno.

(1981)

terça-feira, 28 de abril de 2020

A risibilidade no poder

Edvard Munch, Junto al lecho de muerte, 1895
Há muito que não se via no palco da política um espectáculo tão confrangedor como aquele que é posto em cena por Jair Bolsonaro, no Brasil, e Donald Trump, nos EUA. Por norma, aqueles que ocupam as mais altas magistraturas das nações tentam ostentar, mesmo se pouco dotados, a gravitas que deve ser a marca do homem de Estado. Bolsonaro e Trump não querem saber da gravitas para nada. Intuíram desde o início que tentar ostentá-la era-lhes impossível, não estava de acordo com a sua natureza. Mostram-se ridículos, com declarações ridículas, com posições risíveis. Isso trouxe-lhes uma vantagem. Aparentam autenticidade e uma aproximação a uma parte substancial do eleitorado que os vê como pessoas comuns, que se ri com as suas facécias e até está disposta a seguir as suas sugestões, por mais inverosímeis ou perigosas que sejam. Resta saber até onde os eleitorados destes países estão dispostos a suportar a perigosa comédia em que vivem. Resta saber, também, até que ponto os europeus - onde se incluem os portugueses - estão dispostos a evitar que facetos desta estirpe cheguem ao poder e nos mergulhem no caos e na dor que descobrimos no Brasil e nos EUA.

domingo, 26 de abril de 2020

Nocturnos 10

Bert Hardy, Two prostitutes talking to a client on a Barcelona street corner, 1951
É possível que toda a transacção comercial, esse longo exercício de compra e venda, tenha sido, num tempo arcaico de que perdemos a memória, clandestino, que a mudança de propriedade ou a troca de favores fosse uma ofensa tão grave que só o silêncio da noite as pudesse acobertar. Não haverá comércio que por natureza não seja nocturno.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Cópias degradadas

Ilse Bing, Three men on steps by the Seine, 1931
Não fora o inusitado das vestes, e dir-se-ia que estávamos perante uma fotografia do nosso quotidiano e não de uma cena com quase noventa anos. O homem sentado no degrau inferior parece estar concentrado no monitor de um portátil. Todos os presentes guardam entre si uma distância recomendável, como se o mundo tivesse sido atingido por um vírus contagioso, e o polícia assegura que não haja aproximações que infrinjam a distância de segurança. Assim como as coisas do mundo sensível são, segundo Platão, cópias imperfeitas das coisas do mundo inteligível, também a nossa presente infelicidade será cópia degradada de outros momentos menos infelizes que, ao passarem, se tornaram em puras e perfeitas ideias platónicas. 

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Alma Pátria 61: Corina Freire, Teodoro não vás ao sonoro



Hoje o Alma Pátria faz uma visita a uma gravação de 1931, na qual a soprano Corina Freire (sobre a cantora, ver texto aqui) canta um êxito de revista, Teodoro não vás ao sonoro. O sonoro não era mais do que a incorporação nos filmes de música e da voz, do som. Quase um século depois é incompreensível a ausência de som numa película, mas quando o cinema sonoro surgiu e começou a substituir o cinema mudo, houve uma grande reacção contra a novidade. Consta que em Portugal essa reacção foi enorme. É muito curioso ler um artigo de 4 de Abril de 1930, no Diário de Lisboa, sobre essa reacção (ver aqui). O tema Teodoro não vás ao sonoro é o maior êxito de Corina Freire e um sinal irónico da tentação humana – e portuguesa, claro – de parar o tempo através da negação da sua passagem.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

A Casa Esquecida 10

Robert Motherwell, Suite lírica, 1965

O meu coração é um general vencido
na luz da noite, na água da tua língua.
Pura constelação de estrelas cadentes,
buraco negro onde floresce o miosótis.

Rios de sílabas e sangue nas paredes,
a janela aberta para o ocre da tarde,
a resina verde soprada dos pinhais.
O meu coração é um general vencido.

(1981)

sábado, 18 de abril de 2020

Desconfiança e afastamento


Num ensaio, A pandemia e o capitalismo numérico, no Público de Domingo de Páscoa, o filósofo José Gil afirma que, durante todo este tempo de confinamento, “não se conceberam nem novos valores éticos, nem novos programas económicos ou práticas políticas”.  Deixo de lado a economia e a política e centro-me na ética. Dois valores morais estruturantes da vida em comunidade são a proximidade – por exemplo, no sentido dado na expressão amor ao próximo – e a confiança. Esta é um valor estrutural em todas as sociedades e, por maioria de razões numa sociedade fundada na economia de mercado. O respeito, senão o amor, ao próximo, apesar da crescente afirmação de egoísmos viscerais e agressivos, continuava a ser um valor e a proximidade física entre seres humanos era vista como forma de expressar e realizar esse valor.

De um momento para o outro, a confiança deu lugar à desconfiança relativamente aos outros e a si próprio. Será que o vizinho que posso encontrar no elevador estará contaminado? Será que, ao ter de ir à rua, transporto para casa o vírus? A confiança espontânea que havia nas inter-relações entre conhecidos e na relação consigo próprio desapareceu. Viseiras, luvas, lavagem de mãos, desinfecção permanente, tudo isso são sinais de que a confiança se tornou impossível. Qualquer um agora pode ser o portador da minha morte e eu a de qualquer um. A proximidade tornou-se um valor negativo. Estar próximo do outro é poder fazer-lhe mal ou receber o mal que dele pode vir. O respeito, senão o amor, exprime-se pela distância, por uma dinâmica de afastamento, não pela proximidade e pela partilha do espaço entre pessoas, cujos corpos se tornaram universalmente indesejáveis, numa irónica facécia ao deus Eros.

Pode ser verdade que, como pretende José Gil, não se conceberam novos valores éticos, mas a metamorfose sofrida nestes dias pelos pares confiança/desconfiança e próximo/afastado são reveladores de que podemos estar na iminência de uma mutação ética. Começará na sociedade, onde as regras da moralidade comum se estão já adaptar às novas exigências. Tudo dependerá do tempo que se leve a solucionar o problema. Se a situação se prolongar, se novos hábitos vierem a instalar-se para que possamos sobreviver, podemos estar  perante uma novidade ética. A desconfiança e o afastamento tornar-se-ão deveres morais e a nova forma de habitar o mundo. Como se poderá estruturar a vida em comunidade, desde a família ao espaço público, num ambiente em que se deve cultivar a desconfiança e o afastamento, essa é a grande incógnita.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Roberto Rossellini, Roma, Cidade Aberta


Roberto Rossellini começou a filmar Roma, Cidade Aberta em 1944, logo a seguir à expulsão dos alemães da capital italiana. No centro da intriga está, como um efectivo tributo ao espírito da época e ao heroísmo dos que se opuseram ao fascismo e ao nazismo, a resistência italiana e a cruel perseguição dos ocupantes alemães, aliada à pusilânime colaboração de parte dos italianos. O filme é uma obra central na definição do que se convencionou chamar, no âmbito do cinema, o neo-realismo italiano e faz parte do conjunto de filmes de intervenção antinazi, cujo obra mais conhecida é Casablanca (1942), de Michael Curtiz.

A trama narrativa do filme põe em jogo o conflito de vida ou morte entre duas crenças inabaláveis. De um lado encontram-se os que defendem a superioridade ariana com uma convicção que começava a abrir brechas e do outro a convicção da justeza e superioridade moral dos resistentes à ocupação. Apesar do filme pretender ser uma aproximação à vida real das classes populares e ser, de certa forma, um documentário dessa vida, as personagens centrais não deixam de ser idealizações do herói, os resistentes, e do vilão, os ocupantes ou os colaboracionistas, por convicção ou por degradação moral. De um lado a superioridade moral; do outro a perversidade e a baixeza morais. As personagens surgem, deste modo, planas, estereotipadas, sem que se dê conta de uma vida interior complexa, marcada pela dúvida, pela hesitação, pela incerteza.

O filme retrata o modus operandi tanto da resistência como dos ocupantes alemães, uma espécie de jogo do gato e do rato. A resistência opera dentro dos bairros populares, mesmo que os seus dirigentes provenham de outra camada social. É lá que encontra o apoio e o ambiente propício para se ocultar. Os alemães, por seu turno, exploram a fraqueza moral daqueles – neste caso de duas mulheres – que, provenientes das classes populares, anseiam pertencer ao mundo dos ricos, ainda que seja através de opções morais ignóbeis. A isso aliam uma violência sem limite e sem pruridos morais.

Para além da questão central, o combate entre ocupantes e resistência, e de uma visão ideológica sobre as classes sociais, o filme mostra como na resistência se juntava o Partido Comunista e a Igreja Católica. Os dois heróis da resistência são um engenheiro comunista e um padre católico. Há uma clara preocupação de evidenciar e reforçar essa unidade, escondendo tudo o que separava os dois campos, separação essa que vai ser estruturante na política italiana do pós-guerra, na qual democratas-cristãos e comunistas se tornam as grandes forças políticas em Itália durante décadas, mas em lados opostos da barricada. Apesar das personagens centrais terem sido reduzidas a tipos idealizados, o filme continua a ser um documento interessante para perceber aquela época, com os valores políticos e a visão do mundo da altura.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Beatitudes (24) Fantasia

Andreas Feininger, A man in Arabic dress, smoking a water-cooled pipe, is comfortably sitting on a magic carpet. 1954
Talvez a beatitude não seja uma fantasia, mas por certo esta será única porta que nos conduz àquela. A felicidade é uma filha legítima da imaginação e esta compraz-se apenas no impossível.

domingo, 12 de abril de 2020

Ensaio sobre a luz (81)

Wolf Suschitzky, Sunday morning, Oldham, 1946
A luz ressurecta ilumina a manhã de domingo. Nela um homem caminha pelas ruas vazias, vê a sua sombra projectada no empedrado que cobre o chão e confia, na ingenuidade dos tempos amenos, que tudo é como sempre foi, como se a luz iluminasse apenas a certeza que nasce dos velhos hábitos.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

François Ozon, Frantz


No filme de 2018, o cineasta francês explora os dramas pessoais trazidos pela primeira Grande Guerra, tendo por pano de fundo o nacionalismo que desencadeara o conflito e que, terminado este, não declinara, apesar da extraordinária carnificina a que tinha conduzido. Frantz é um jovem soldado alemão morto por um soldado francês, Adrien, tão jovem quanto ele. Ambos partilhavam um destino ambíguo. Eram pacifistas e foram levados para a guerra pela pressão do ambiente social e da própria família, pela coacção de um nacionalismo agressivo que habitava o espírito da época. É a hipersensibilidade de Adrien, um violinista da Orquestra de Paris e filho família, que desencadeia a trama narrativa, ao sentir necessidade de se fazer perdoar pela família do alemão que matou numa trincheira. É aqui, nesse instante onde a vida e a morte de dois soldados se decidiram, que está a raiz de toda a equivocidade que percorre o filme.

O soldado francês em vez de considerar o alemão como um inimigo abatido, deixa-o transformar-se, aos seus olhos, numa pessoa a quem assassinou. Na trincheira, perante o alemão morto, dá-se uma metamorfose na consciência de Adrien. De inimigo e ameaça real à sua existência, o alemão transforma-se num outro eu a quem Adrien tirou a vida. A alteração do estatuto ontológico de Frantz na consciência do francês tem um efeito perturbador. Encontra nos bolsos do morto o rasto duma vida agora sem continuação, uma carta a enviar à namorada. Acabada a guerra, o confronto com a morte do outro não deixa de o abalar e, como forma de catarse, decide partir para a terra de Frantz com o objectivo de pedir perdão. Um dos elementos fundamentais na construção da personagem de Adrien é a ambiguidade das suas motivações, nunca ficando claro aquilo que o move, se a dor dos outros – pais e namorada de Frantz – se a sua consciência infeliz, incapaz de lidar com o facto de a guerra ser o lugar onde as pessoas matam para não morrer, onde não há conciliação possível no momento do combate.

A relação que Adrien acaba por estabelecer tanto com os pais de Frantz como com Ann, a namorada, acaba por se tornar, também ela, equívoca. A fragilidade moral do francês arrasta-o para uma história falsa e através dela ganha a confiança e a amizade dos pais do soldado alemão. Quando Ann descobre a verdade é ela que impede a sua revelação aos que deveriam ter sido seus sogros. Alimenta uma versão edulcorada da realidade devido a um suposto direito de mentir por amor à humanidade, para parafrasear o título de um célebre texto de Kant. A partir daí, o equívoco e a mentira entrelaçam-se, passando Adrien a ser visto como um possível noivo de Ann e substituto de Frantz. A viagem que Ann faz a França, para consumar essa substituição de Frantz por Adrien, é um exercício de descoberta. A descoberta, por Ann, da pusilanimidade do francês, da sua situação de comprometido apenas por convenção familiar, e, também, a descoberta de si mesma, da sua força e da própria vida que renasce dentro dela. O filme de Ozon é uma reflexão sobre a ambiguidade das motivações e o problema da verdade e da mentira morais, em que Adrien se afunda na mentira a si ao desejar expor a verdade e em que Ann, apesar de manter uma ficção para os sogros, descobre a sua força e a sua própria verdade, libertando-se do passado e da guerra.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

A Casa Esquecida 9

Nicolas de Staël, Desnudo acostado, 1955

Um corpo desliza na falésia doutro.
As mãos correm musgos e sedas,
líquenes polvilhados de cal,
a tília a transbordar de silêncios.

Um cântico nasce-te nos dedos.
Ecoa como um fruto desfolhado
na mágoa vesperal da boca,
na sombra da sombra ao meio-dia.

(1981)

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Ensaio sobre a luz (80)

René Burri, Former Summer Palace. Dead lotus flowers on the Kunming Lake. Beijing, China, 1964
Raios de sol descem difusos sobre as águas, fazem das árvores fantasmas perdidos no mundo, iluminam a geometria dos lótus abandonados ao cansaço da morte. O tempo suspende a viagem e uma vida ressurecta aguarda a hora em que a clara luz triunfe sobre a melancolia da névoa e a tristeza da cinza.

sábado, 4 de abril de 2020

Uma comunidade de seres racionais


A senhora Thatcher terá escrito, num livro de memórias sobre o tempo em que foi primeira-ministra, que “não existe essa coisa de sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos”. A sobranceria e a pesporrência com que a frase foi multiplicada pareciam ter a força suficiente para fazer de um desabafo meramente ideológico uma verdade inquestionada. Aparentemente, a frase visava atingir as ideias socialistas. Na verdade, põe em questão toda uma longa tradição, a tradição ocidental, que se reconhece na palavra de Aristóteles de que o homem é um animal político, isto é, um animal que vive em comunidade. Paradoxalmente, é neste momento tenebroso, em que parte da população se vê obrigada a proteger-se da vida em comum, que se torna manifesta a razão de Aristóteles e a desrazão da senhora Thatcher e dos ultraliberais.

Somos indivíduos, mas o que nos vale isso se estamos separados da comunidade? Estamos a descobrir que o que dá sentido às nossas vidas não são apenas os projectos individuais, os sucessos, o contentamento por termos atingidos os objectivos. Sem uma comunidade real que nos dê o fundo da nossa existência e que, em última instância, seja o objectivo dos nossos esforços, a nossa individualidade é risível. Mais, sem uma comunidade real que responda enquanto comunidade, seremos sempre muito mais frágeis e vulneráveis. Não sabemos, nesta hora, se a resposta que a comunidade está a dar à pandemia será coroada pelo êxito que todos desejamos, mas parece claro que, se cada um agisse em conformidade com o seu ser individual, a desgraça seria indescritível. A esperança nasce da resposta colectiva assumida por cada um de nós.

Isto não significa que os indivíduos não existam ou que devam estar subjugados à comunidade, como aconteceu nas diversas experiências totalitárias que marcaram o século XX. Em sociedades complexas como aquelas em que vivemos, toda a vida deve ser a busca de uma harmonização entre os interesses comuns, os interesses da sociedade tomada como um todo, e os interesses individuais. Ambos são importante e ambos merecem respeito. O que devemos evitar é que os herdeiros ideológicos da senhora Thatcher destruam os laços comunitários. O que devemos evitar é que novas utopias colectivistas, como os nacionalismos, destruam a autonomia individual. Aquilo que o actual estado sanitário mostra é que precisamos de ser uma comunidade de indivíduos autónomos, capazes de cuidar de si e da comunidade. A actual pandemia terá muitas coisas para nos ensinar. A importância de uma comunidade de seres racionais não será a menor dessas coisas.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Razão e Ciência


De súbito, calou-se todo o argumentário anticientífico sobre as vacinas. Perante a pandemia associada ao COVID 19, anseia-se que a ciência responda com brevidade e encontre uma vacine que possa ajudar a humanidade a viver com o novo perigo. Os movimentos anticientíficos têm crescido nos últimos tempos e são uma ameaça real à vida dos seres humanos. Enquanto as coisas ficam em patetices como a terra plana, é possível rir. Quando, porém, tocam em assuntos relacionados com a vida e a morte, não há riso que valha. Nestes movimentos contra a ciência podem existir, entre outras, motivações associadas a um regresso a uma imaginária pureza da ordem natural e motivações religiosas, que vêem na ciência uma afronta ao divino ou que julgam que uma fé profunda bastará para lidar com os males do mundo.

A ordem natural como medida daquilo que é correcto ou incorrecto fazer é uma perspectiva muito em voga nos círculos new age. Assenta na negação dos perigos que a própria natureza esconde para os seres humanos e faz uma leitura da humanidade como sendo apenas uma espécie entre outras. Foi o facto, porém, do homem ter tido a capacidade de se distanciar da natureza e ter criado um mundo artificial a partir dessa natureza que tornou possível a persistência da humanidade sobre a Terra. Desse mundo artificial fazem parte as técnicas, os saberes científicos, os valores e as próprias religiões. Tudo isso foi uma estratégia de afirmação e defesa da humanidade perante uma natureza muito longe de lhe ser benévola.

Certas correntes religiosas julgam que os homens apenas devem confiar na fé, mesmo em assuntos que não se relacionem com questões de religião. A ciência seria então um desafio à ordem e à vontade divinas. No entanto, nem todas as religiões têm esta perigosa posição e a Igreja Católica, por exemplo, há muito que descobriu, ou sempre soube, que fé e razão se devem conjugar e que as descobertas científicas, produtos da razão natural dos homens, devem ser tidas em consideração. Considera mesmo como pecado grave os homens desprezarem a informação científica, aventurando-se na existência sem a tomar em consideração. Pecado pois, ao desprezar o conhecimento trazido pela razão dada ao homem por Deus, estão a desafiá-Lo a provar a sua omnipotência para os salvar daquilo em que estão metidos.

Nesta hora terrível que estamos a viver, é tempo de perceber que não devemos desprezar o que a razão e a ciência produzem para ajudar a humanidade a habitar com mais segurança este planeta. Todo o fanatismo – naturalista ou fideísta – é um perigo para a existência da humanidade.

[A minha crónica de Abril em A Barca]