A senhora Thatcher terá escrito, num livro de memórias sobre
o tempo em que foi primeira-ministra, que “não existe essa coisa de sociedade,
o que há e sempre haverá são indivíduos”. A sobranceria e a pesporrência com
que a frase foi multiplicada pareciam ter a força suficiente para fazer de um
desabafo meramente ideológico uma verdade inquestionada. Aparentemente, a frase
visava atingir as ideias socialistas. Na verdade, põe em questão toda uma longa
tradição, a tradição ocidental, que se reconhece na palavra de Aristóteles de
que o homem é um animal político, isto é, um animal que vive em comunidade. Paradoxalmente,
é neste momento tenebroso, em que parte da população se vê obrigada a
proteger-se da vida em comum, que se torna manifesta a razão de Aristóteles e a
desrazão da senhora Thatcher e dos ultraliberais.
Somos indivíduos, mas o que nos vale isso se estamos
separados da comunidade? Estamos a descobrir que o que dá sentido às nossas
vidas não são apenas os projectos individuais, os sucessos, o contentamento por
termos atingidos os objectivos. Sem uma comunidade real que nos dê o fundo da
nossa existência e que, em última instância, seja o objectivo dos nossos
esforços, a nossa individualidade é risível. Mais, sem uma comunidade real que
responda enquanto comunidade, seremos sempre muito mais frágeis e vulneráveis.
Não sabemos, nesta hora, se a resposta que a comunidade está a dar à pandemia
será coroada pelo êxito que todos desejamos, mas parece claro que, se cada um
agisse em conformidade com o seu ser individual, a desgraça seria
indescritível. A esperança nasce da resposta colectiva assumida por cada um de
nós.
Isto não significa que os indivíduos não existam ou que
devam estar subjugados à comunidade, como aconteceu nas diversas experiências
totalitárias que marcaram o século XX. Em sociedades complexas como aquelas em
que vivemos, toda a vida deve ser a busca de uma harmonização entre os
interesses comuns, os interesses da sociedade tomada como um todo, e os
interesses individuais. Ambos são importante e ambos merecem respeito. O que
devemos evitar é que os herdeiros ideológicos da senhora Thatcher destruam os
laços comunitários. O que devemos evitar é que novas utopias colectivistas,
como os nacionalismos, destruam a autonomia individual. Aquilo que o actual
estado sanitário mostra é que precisamos de ser uma comunidade de indivíduos
autónomos, capazes de cuidar de si e da comunidade. A actual pandemia terá
muitas coisas para nos ensinar. A importância de uma comunidade de seres
racionais não será a menor dessas coisas.
[A minha crónica no Jornal Torrejano]
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