Em 1954, Anne Desclos, sob o pseudónimo de Pauline Réage publicou História d’O. A revelação da verdadeira
autoria demorou quarenta anos. Segundo a autora, a escrita do romance foi uma
resposta a Jean Paulhan, com quem mantinha um caso. Este era um admirador de
Marquês de Sade e ela, perante o desafio e o espanto de Paulhan, escreveu um
romance sadiano em forma de uma série
de cartas de amor. Há três coisas que são absolutamente inúteis para a leitura
do texto de Anne Desclos. A primeira é a classificação segundo o género
literário. Por norma, classifica-se História
d’O como literatura erótica. Ora a literatura é literatura e nada mais do
que isso. A segunda é o culto que a subcultura BDSM (Bondage/Discipline,
Sadism/Masochism) presta ao livro. A terceira é a crítica feroz que a obra
recebeu dos movimentos feministas.
Uma abordagem possível do livro seria confrontá-lo com uma das mais
importantes obras de filosofia política. Uma obra escrita em 1548 (quatro
séculos antes) e que analisa o mecanismo de submissão ao tirano. O Discurso da Servidão Voluntária, de Étienne
de La Boétie, sustenta que aquilo que mantém um político (e um político, seja
qual for a forma como ascendeu ao poder, é sempre um tirano) no poder nunca é a
boa governação, nem sequer é o medo da violência, mas o hábito de servidão, estruturado
pela religião e pela superstição, existente no povo. Este grau de obediência é
superficial e diz respeito aos ignorantes. O segredo de toda a dominação
reside, contudo, em fazer participar voluntariamente os dominados na sua
dominação. É o que acontece com aqueles que envolvem (a corte) o tirano. Estes
têm o dever não apenas de obedecer como de antecipar os desejos do tirano (para
uma visão geral aqui; a
obra em francês aqui;
a obra em inglês aqui).
O que a História d’O faz é
explorar o desejo de submissão e tornar evidente a natureza sexual desse desejo
de servidão voluntária. Note-se que não há na obra a mais leve referência à
política ou a uma meditação sobre esse fenómeno. Esta ausência completa do
fenómeno político é absolutamente suspeita. O
é uma fotógrafa parisiense que é levada, com o seu consentimento, para um palácio
em Roissy, onde é sujeita a uma dura aprendizagem da submissão e da
disponibilidade. Submissão e disponibilidade para um conjunto de homens,
aparentemente pertencentes a elite social, mas também aos criados. A educação passa
por vários estágios onde é amarrada, amordaçada, chicoteada, mas também onde
está disponível, para qualquer um, solitário ou em grupo, praticar com ela (seria
mais exacto dizer praticar nela) sexo vaginal, oral, anal.
Está-se perante uma verdadeira ascese, decalcada, de certa forma, das
asceses monásticas que visavam a mais perfeita obediência do monge ao seu
superior. A vertente religiosa do texto não deve ser posta de lado. O que O procura é o total abandono de si e a
entrega a um senhor. Quando vai para Roissy é o desejo de se submeter a René, o
seu amante. Mas quando sai de Roissy (onde, digamos assim, foi iniciada nos
pequenos mistérios), René dá-a, literalmente, a Sir Stephen, um senhor mais
dominador e exigente na submissão. Esta dominação e esta exigência é sempre
reforçada pela anuência de O. O clímax da submissão é o momento em que, em casa
de Anne-Marie, é treinada para ser marcada a ferro quente, como os animais, e
receber, nos lábios vaginais, uma espécie de piercing onde consta as iniciais
de Sir Stephen. Ela agora é pura coisa, puro objecto (iniciação aos grandes
mistérios).
Leituras que sublinhem o masoquismo da personagem ou a sua
transformação em puro objecto de satisfação do desejo masculino, tal como nós os
entendemos, são possíveis, mas julgo que pouco pertinentes. Não é o prazer de
sofrer que move O, nem o desejo de
promover o prazer dos homens. É algo mais fundo e fundamental. A vontade tem o
projecto de se autodestruir. Tornar-se coisa ou objecto é renunciar a ser
pessoa, é renunciar a ser agente, é entregar-se à pura passividade. Mas há mais
do que isso, há algo mais escandaloso do que isso. Para o compreendermos
teremos de recuar às concepções tradicionais que o Iluminismo obliterou.
Na generalidade das tradições religiosas e sociais, a essência do
homem é vista como sendo activa e a mulher como passiva. O escândalo do texto
de Anne Desclos (Pauline Réage) está na reivindicação desse estatuto
tradicional para mulher. A pura
passividade perante o homem. Que essa reivindicação seja feita por uma ascese
particularmente violenta abre para uma discussão entre duas possíveis
interpretações. A primeira interpretação (uma interpretação progressista)
dir-nos-ia que a passividade da mulher tradicional seria um exercício de uma
longa violência consentida. Mas a segunda interpretação (uma interpretação
tradicionalista) permite pensar num outro sentido. As sociedades modernas são
incapazes de perceber a essência passiva das mulheres e só o exagero da
violência consentida e da dominação requerida permite acordar os modernos para
a verdadeira natureza da mulher (não admira que as feministas se sentissem
indignadas).
Podemos voltar à servidão voluntária de La Boétie. O poder político é possível
porque há nos seres humanos uma passividade fundamental que não apenas permite
a existência do poder como o requer. Essa passividade reside na renúncia da
vontade a si própria, reside na vontade da não vontade, para que um princípio
activo, uma potência, possa fecundar a terra e a vida brotar daquilo que, por
vontade própria, se aniquilou. É por isso que a ideia de que o soberano é o
povo é sentida, apesar de toda a retórica em contrário, como uma incongruência.
O que a História d’O sublinha, por
outro lado, é que a natureza da sexualidade dos seres racionais implica uma
potência activa e uma passividade fundamental. No campo do amor, não há lugar
para o Iluminismo nem para a complacência. É preciso que haja poder e a
servidão voluntária da mulher é ainda um estratagema da natureza para que esse
poder se manifeste e a vida triunfe. Mas isto é um discurso que nós, os
modernos, já não entendemos.
Pauline Réage (2012). História d'O. Alfragide: Edições Asa. Tradução de de Luísa Saraiva.
A análise perfeita, digo eu que ainda não o li e tenho-o por perto.
ResponderEliminarAbraço
Obrigado. Vale a pena pegar no livro e meditá-lo. Ali encontra-se um desafio fundamental.
EliminarAbraço
Uma analise muito interessante!
ResponderEliminarEstou lendo o livro, gostaria de trocar e-mails se possivel. Meu e-mail é: janarsimoes@hotmail.com
ResponderEliminarNão veria inconvenientes em trocar ideias sobre o livro através desta mesma caixa de comentários.
EliminarMuirt obrigado pela visita e pelos comentários.