domingo, 30 de junho de 2019

Crónicas Normandas VI - Here rests in honored glory

JCM, Campa de soldado desconhecido no cemitério americano na Normandia, 2007

Here rests in honored glory a comrade in arms known but to God. São estas as palavras que ocupam, nas cruzes plantadas no cemitério americano, o lugar do nome, posto, local de origem e data de morte daqueles que já ninguém reconheceu aquando da entrega dos restos mortais – nunca o termo terá sido tão apropriado – à terra que os acolhe para o descanso eterno.

As narrativas sobre o soldado desconhecido sempre me impressionaram, mas há que reconhecer que todas elas assentam num equívoco: não há soldados desconhecidos. Enquanto soldados, são conhecidos, possuem identidade, fazem parte de uma comunidade, melhor, de uma fraternidade militar. É a morte que os torna desconhecidos, mas já não são mais soldados, o combate não os espera, e a vitória ou a derrota perante o inimigo deixou de lhes interessar. Expressões como soldado desconhecido ou comrade in arms known but to God são tentativas desesperadas de os integrar numa ordem que lhes é radicalmente estranha e de lhes dar uma última aparência de identidade.

Não será a morte apenas e só a perda efectiva da identidade? Na morte deixa-se de ser o que se é. As referências biográficas são coisas de vivos, uma forma de mitigar a dor, talvez de apaziguar a consciência. Morrer é desidentificar-se, abolir os limites impostos pela personagem social balizada pelas referências espácio-temporais que lhe couberam e pelos dados biográficos, dos quais o bilhete de identidade é o supremo resumo. Aquele a quem chamam soldado desconhecido, ou comrade in arms known but to God, é o que assume a morte na sua radical integralidade e deixa a sua identidade de vivo no desconhecimento dos que não o acompanharam na morte. Estes mortos trilharam a senda radical para o nada e tornaram-se, em consonância com esse desígnio, em ninguém. Apagaram os vestígios, limparam as pistas, confundiram os traços do caminho que foi o deles. Abandonaram sobre o campo de batalha a máscara. «Quem és tu Romeiro?» – «Ninguém.»

O culto do soldado desconhecido é o sintoma da culpabilidade sentida pelos vivos, uma tentativa desesperada de manter com aqueles restos, onde um dia se moveu uma forma humana, um laço, uma ligação que faça deles um resquício de humanidade. Nada nos garante, porém, que os mortos queiram permanecer humanos e manter com os vivos algum laço, seja de que natureza for. A honored glory em que descansa o soldado desconhecido já não lhe diz respeito, é um problema da consciência de terceiros. Ele encontrou a saída, o lugar onde todos os problemas da vida se dissolvem para não mais voltar. Dispensa inclusive a memória dos outros. Basta-lhe o descanso e, talvez, o known but to God. Os vivos, caso não fossem dados a exageros e traumas emocionais, deveriam apenas sussurrar requiem aeternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis.

[Termina a republicação, no ano em que o desembarque na Normandia fez 75 anos, destas Crónicas Normandas, escritas em 2007, após uma visita aos campos de batalha e cemitérios militares.]

sábado, 29 de junho de 2019

Villa Cardillio 30. Réstia do passado

Vila Cardílio, Torres Novas

30. Réstia do passado

Perdido entre a ruína das pedras,
vejo homens e animais,
oliveiras, os sobejos da vida
nos cansados campos do Outono.

Sobre o luto, uma flor efémera
canta, réstia do passado,
presa ao tremor da terra,
devorada pelas vísceras do cio.

1979

sexta-feira, 28 de junho de 2019

Descrições fenomenológicas 42. Um homem passa

Albert Rafols Casamada, Civitas Aurea, 1990

Um homem avança pela rua molhada. Na cabeça, um chapéu de feltro, como aqueles que se usavam nos anos trinta do século passado, e uma gabardina, comprida e de cor indefinida, descai-lhe dos ombros. Não são inseguros os passos. Pisa a pedra do passeio com firmeza, quase com o ritmo militar. A chuva, que parou há pouco, continua suspensa de um céu enegrecido. Ao longe, um aqueduto, envolto em neblina, faz lembrar uma ruína fantasma, daquelas que habitam as telas de certos pintores românticos. As varandas dos prédios estão desertas. Uma tabuleta anuncia andares para arrendar, mas o homem não parece interessado. O seu olhar, sem denotar ânsia, está preso à rua. Um carro passa lentamente, cruza-se com ele e segue o seu caminho, desaparecendo numa curva. Outro carro, de um modelo já em desuso, está parado em cima do passeio do lado de lá da rua. Logo a seguir, um cartaz, encostado a um pilar de um prédio, avisa para não estacionar de quarta-feira a sábado. O homem continua o caminho, a gabardina aberta, enfunada pelo vento, faz lembrar uma grande asa. A todo o momento se espera que o homem levante voo, mas parece bem agarrado à terra. Os braços vão e vêm, sincronizados com as pernas. Um autocarro aproxima-se, abranda a marcha e pára. O homem dá uma corrida, a porta abre-se e ele entra. Tira o chapéu e senta-se. O autocarro retoma o caminho. A chuva, fria e batida pelo vento, recomeça. Na rua, não se vê ninguém. Pacientes, as varandas esperam os seus futuros habitantes.

quinta-feira, 27 de junho de 2019

Controlar o Ministério Público

Paul Huet, El abismo; Paisaje, 1861
Apesar de derrotada, a recente tentativa dos grupos parlamentares do PS e do PSD de produzir um esquema para tornar possível o controlo político do Ministério Público merece atenção. Não porque os dois maiores partidos o queiram fazer, parece que está na sua natureza, mas porque a tentativa mostra que eles ainda não compreenderam nada do que está a acontecer nas democracias. Uma acção dessas há 20 anos passaria despercebida à opinião pública. Hoje em dia, porém, seria mais um factor - e não pequeno - de descredibilização da democracia representativa. A cegueira é de tal ordem que, estando à beira do abismo, esta gente não hesita em dar um passo em frente. Os partidos ainda se julgam senhores absolutos do espaço político e pensam possuir poder suficiente para contornar a opinião pública. Estão enganados. As democracias estão sob ataque e as elites políticas sob vigilância popular. Se Portugal ainda não produziu o seu movimento populista, há muita gente nos partidos do poder apostada, por arrogância e incúria, em criar condições para que ele apareça. Como diz o ditado popular, o pior cego é aquele que não quer ver.

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Beatitudes 10. Um instante

Bernd Heyden, Berlin - Ecke Prenzlauer, 1966-1980

Existem momentos na vida em que um prazer ínvio nos faz coincidir plenamente connosco. No desafio a uma regra ou na ignorância de um aviso, a vida mostra-se como puro gozo, sem que a consciência macule a felicidade do instante. Nunca a inocência será tão inocente como nesses momentos em que se julga estar a deixá-la para trás.

terça-feira, 25 de junho de 2019

Alma Pátria 49: Quarteto 1111, Partindo-se



Em 1968, Partindo-se fazia parte de um EP (disco de vinil de 45 rotações, com quatro temas) cujo título principal era Balada para D. Inês, uma canção levada pelo Quarteto 1111 ao Grande Prémio TV da Canção Portuguesa. O tema Partindo-se é uma canção de autoria de José Cid a partir do poema de João Roiz de Castelo Branco, um dos mais belos poema  da lírica portuguesa. A temática da partida está longe de ser politicamente inocente. A partida dos soldados portugueses para a guerra colonial era uma constante que se erguia como uma ameaça para as jovens gerações da época. A metonímia dos olhos que partem, proveniente dos finais do século XV ou inícios do século XVI, é transferida, ainda com uma forte capacidade de expressão e  intervenção social, para os finais dos anos sessenta do século XX. José Cid e o Quarteto 1111 têm, para além da sua função modernizadora da música popular portuguesa, um destacado papel de intervenção política, num registo diferente dos cantores de intervenção, contra a ditadura, papel esse castigado rispidamente pela censura.

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Villa Cardillio 29. Canção estival

Maenad in silk dress, Casa del Naviglio, Pompeii,1st century AD

29. Canção estival

A estrada de pedra em Setembro,
folhas abandonadas aos dias,
à erva gasta pelo calor do Estio.
No restolho, ainda cantam
de Avita os passos incendiados,
as mãos no exorcismo da espera,
a ferida a doer no ardor da alma.

1979

domingo, 23 de junho de 2019

Crónicas Normandas V - The Gold Medal

JCM, Veteranos de guerra no cemitério americano na Normandia, 2007

No cemitério americano, junto a um daqueles mapas de betão e azulejo que orientam o olhar sobre o horizonte, ao lado de inúmeros visitantes, estão uma meia dúzia de veteranos de guerra, gente que participou, do lado vitorioso, nos acontecimentos do Dia D. O vigor que fora o deles terá sido, há muito, substituído pelo cansaço da vida, pelas artroses e, talvez mais de que todo o resto, pelo exercício intérmino da memória. Ali estavam, não sei se de passagem ou se a sua vida se terá tornado, com o funesto turismo de guerra, apenas numa sombra memoriosa que vagueia sempre por aqueles campos onde, com o terror inscrito no centro do ser, se bateram até à vitória. A morte nada quis, então, deles, apenas os deixou enredados na sua sombra e os prendeu ao passado, até que o tempo a disponha à ceifa.

São homens condecorados e que exibem as suas condecorações em vestes militares anacrónicas. Fazem-no como se o tempo tivesse parado ou se tivesse esquecido deles. Um, quando chegou, ao ver as pessoas a olhar aquele mapa e a perscrutar horizontes e linhas de combate, indica um ponto, talvez signo de território escarpado, e diz que foi ali que combateu e obteve a sua gold medal. Havia nele a inocência de uma criança, a irrisão de quem se tinha portado bem e, por isso, ganhara o mais apetecido dos brinquedos. Exibia-o agora, nesse orgulho que nasce da confusão da infância com a senilidade, a uma pequena multidão de basbaques que olhavam, talvez sem perceber o que significaria aquele adorno militar.

Há nos homens que combateram e sobreviveram uma humanidade diferente da que existe naqueles que, como eu, nunca passaram pelo campo de batalha. Aqueles dias de trevas e de loucura, onde o sangue, a dor e a morte eram companheiros assíduos, iluminaram-nos e mostraram-lhes um mundo desconhecido dos outros. A guerra estabelece estranhos laços de camaradagem entre pessoas que, em quaisquer outras circunstâncias, se ignorariam. Mesmo entre inimigos que, na altura do combate, se teriam morto sem qualquer razão pessoal, nasce, chegada a paz, um espírito secreto de partilha e de comunhão que os aproxima e torna irmãos, numa fraternidade que não conhece já a frágil linha que separa amigos e inimigos.

Naquela gold medal, não vi o heroísmo daquele homem, a bravura com que enfrentou o fogo inimigo, o acto pelo qual se «libertou da lei da morte». Aquela medalha, assim exibida, reluziu para mim como uma fronteira que separa duas humanidades, a dos homens livres que nunca desceram ao campo de batalha e a dos que hipotecaram a sua liberdade e se enredaram nas cadeias da memória dos combates, para que os outros fossem livres. Descobri, naquele instante, como a minha liberdade assenta no sacrifício de uma outra humanidade, que a necessidade dos tempos fez desprezar a sua própria vida e a sua própria liberdade. É essa humanidade que reconstrói ainda, passados tantos anos, o seu mundo como se tecesse um tapete de sombras, feito de clarões e gritos, odor a sangue e uma nostalgia sem fim, onde os não iniciados jamais penetrarão. The gold medal é apenas uma porta que a vida nunca me obrigou a transpor.

[Agora que fez 75 anos o desembarque aliado na Normandia, republico a série de seis crónicas normandas escritas em 2007 e publicadas num outro blogue.]

sábado, 22 de junho de 2019

Ensaio sobre a luz (64)

Ansel Adams, Mount Williamson, Sierra Nevada, from Manzanar, California, 1944
As pedras aguardam que a luz rompa a densa barreira das nuvens. Então, ao refulgir tocadas pelos raios solares, mostrarão a natureza que lhes é própria. Espelhos onde o frio universo se reflecte e se contempla no seu inacabável ensimesmamento.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Autarquias, professores, padres casados e futebol


PODER AUTÁRQUICO. Depois da operação Teia, uma nova operação contra detentores – ou ex-detentores – do poder autárquico. Não faço ideia o que pensam presidentes de câmara e vereadores sobre a reputação das autarquias. Qualquer cidadão percebe que essa reputação está muito longe de ser a melhor. Poderão os autarcas fazer alguma coisa pelo poder municipal e, através dele, pela democracia? Podem. Devem exigir a criação – ou criá-los, se para isso tiverem poder – de mecanismos de completa transparência nos concursos públicos e na gestão da coisa pública. Mecanismos a que os próprios cidadãos possam aceder. Devem ter uma gestão dos municípios e das suas condutas políticas absolutamente frugal. Isso ajudaria em muito à reputação das autarquias.

PROFESSORES. Saiu o calendário escolar do próximo ano lectivo. Os jornais anunciam três semanas de férias de Natal. Nas caixas de comentários dos jornais online não tardou a habitual campanha contra o professorado. Ninguém quis saber que a pausa lectiva do próximo ano é praticamente igual à dos anos anteriores. Há mais um dia sem aulas. Porquê? Porque o dia habitual de recomeço das aulas, 3 de Janeiro, é uma sexta-feira e o governo achou sensato fazer o recomeço na segunda-feira seguinte. O caso serviu para uma pequena fronda contra os professores. Isto diz muito do país que somos.

ORDENAÇÃO DE HOMENS CASADOS. A Igreja Católica vai discutir a possibilidade, na Amazónia, de serem ordenados como padres homens casados. A expectativa de alguns, porém, é que este seja o primeiro passo para que o processo seja replicado noutros lugares do mundo, onde a Igreja enfrenta o mesmo problema da falta de sacerdotes. A abertura ao mundo moderno feita pelo Concílio Vaticano II foi seguida pelo declínio das vocações e pelo abandono do sacerdócio por muitos padres. Os conservadores vêem o concílio como a causa do problema. No entanto, ninguém pode afirmar que mantendo-se a Igreja fiel ao espírito tridentino a situação não seria a mesma ou pior. Vamos assistir, por certo, a novos confrontos entre tridentinistas e adeptos do Vaticano II.

FUTEBOL. A transferência do jogador João Félix para o Atlético de Madrid, por 120 milhões de euros, por muito que adeptos compradores e vendedores se alegrem, mostra que o futebol é, há muito, um jogo cujo centro reside no dinheiro. Sem este, o futebol tal como existe desabaria. O que impressiona, porém, é os adeptos confundirem o peso do dinheiro com o mérito desportivo dos seus clubes. O mérito dos vitoriosos reside em grande parte no dinheiro que têm.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 20 de junho de 2019

A esquerda e a educação como balda pós-moderna

Giorgio Chirico, Gladiadores y león, 1927
Por vezes, ainda consigo ter um breve momento de esperança relativamente à forma como a esquerda vê a educação. Eu sei que são apenas breves instantes, mas é consolador ver alguém de esquerda, Raquel Varela, dizer: Não acredito que o processo educativo ou cultural seja uma democracia em que todos conversamos e todos damos opinião – como se quer fazer nas escolas públicas hoje. Uma balda pós-moderna que está a destruir liceus e faculdades. A actual política educativa não passa de uma "balda pós-moderna", originada pelo PS, mas que tem como cúmplices activos o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português. É desesperante, para alguém que se situa politicamente à esquerda, ver o que acontece na educação em Portugal, ver como os alunos das escolas públicas vão ser trucidados pelos das escolas privadas, observar como se impõem - a palavra é mesmo esta - práticas absurdas e ideias erradas aos professores, violando a sua consciência. É isto que a esquerda está a fazer na educação.

O texto de Raquel Varela põe, por outro lado o dedo na ferida, numa ferida que a esquerda não quer enfrentar, culpabilizando os professores pela sua existência. A autora do texto diz: O que é um facto – indiscutível – é que somos muito melhores professores quando temos alunos que querem aprender. Quando morre a vontade de aprender, a de ensinar perde-se paulatinamente também. Este enunciado traduz uma realidade que as políticas educativas nacionais - e as da esquerda em primeiro lugar - escondem, invertendo-o. Na prática, as políticas educativas estão fundadas na crença - raramente reconhecida em público - de que a culpa dos alunos não quererem aprender é dos professores, das suas metodologias arcaicas, etc. Esta crença, porém, não permite enfrentar o verdadeiro problema. Nem sequer deixa formulá-lo: por que razão parte muito significativa da população escolar não gosta de aprender, não possui curiosidade pelo saber, entra já assim no ensino?  Por uns instantes, Raquel Varela reconciliou-me com a esquerda em matéria educativa. O problema é que para a esquerda a opinião de Raquel Varela não conta para nada. A esquerda educativa prefere as suas ilusões e tem sempre à mão um bode expiatório, os professores.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Villa Cardillio 28. Sentença

Sileno tocando la lira, Villa de los Misterios. Pompeya

28. Sentença

Em ti, em tua cabeça, Cardílio
abateu-se o peso do plátano,
a sentença selvagem do deus,
o dia preso ao rumor diáfano.

No fulgor do triste tribunal,
mataram as estrelas ao vento,
apagaram-te a aurora dos olhos,
a cólera cruel, a luz do sentimento.

Canções de erva ecoam ainda
no visco da noite, no sal da terra.
A tua mão presa pelo tempo
abriu a névoa, a morte a encerra.

1979

terça-feira, 18 de junho de 2019

Crónicas Normandas IV - A razão no cemitério

JCM, Cemitério americano na Normandia, 2007
O que me surpreendeu, ao entrar nos cemitérios militares alemão e americano, na Normandia, foi o excesso de racionalidade da sua concepção. Não sabia o que deveria esperar, tinha algumas imagens do cemitério americano construídas com base no ouvir dizer, mas nada me preparara para o espectáculo de racionalidade que, em ambos, se espraiou perante o olhar. É possível que todos os cemitérios, pelos menos os modernos, obedeçam a princípios de ocupação racional do solo. Mas não é essa racionalidade arquitectónica a que me refiro. Falo de uma estranha racionalidade geométrica, um zelo decorativo, ao mesmo tempo simples e aberto, tranquilo e grandioso, do espaço onde repousam os militares mortos em combate.

Naqueles cemitérios, a morte é mais asséptica do que nos civis, pensei mal entrei no cemitério alemão. Confirmei a sensação no americano. Há uma clara encenação de qualquer coisa. Todos aqueles espaços, belos espaços, constituem o cenário de uma mistificação. Há ali uma razão que oculta a realidade, que a esconde dos olhos ímpios dos visitantes, que oferece uma imagem suave e leve da carnificina real que levou para ali os despojos humanos que lá repousam.

No reverso do cenário, debaixo de cruzes e lápides, velados pela relva verde tão bem cuidada, estão corpos fragmentados, ossos de onde os músculos voaram pela força das bombas, restos de gente a quem a morte chegou na precipitação do combate. Quem está ali não morreu de morte natural, nem a doença, prolongada ou súbita, assinalou para o trânsito final. A ceifeira chegou atarefada, cansada de tanta colheita, e apanhou os corpos como pôde. Na guerra, não há tempo para preparar a morte, para escolher os eleitos, para lhes dar um último sinal. É obscura a razão que opera nos campos de batalha, uma razão fincada no acaso, em jogos aleatórios, na desrazão do que acontece. Rios de sangue, vísceras a céu aberto, crânios estilhaçados, corpos dilacerados, gritos sem fim, o roncar dos carros de combate, as metralhadoras que crepitam, a explosão de bombas e granadas. Ali antegoza-se o inferno.

Quando olhamos estes campos relvados, as campas perfiladas sob um céu de cinza, já não vemos nada do que levou aqueles homens a escolherem-nos para morada eterna. Repousam tranquilos, como se amanhã pudessem sair das suas campas e correr por ali fora, conversar com outros mortos, aspirar o ar marítimo tão próximo. A razão geométrica que comanda estes espaços é uma mentira piedosa, uma mentira que visa apaziguar não a revolta dos que morreram, mas a consciência dos que vivem. Que tranquilos são estes espaços, dizemos, e pegamos nos nossos corpos, ainda inteiros, e seguimos viagem. Ali nada aconteceu. A razão não passa de uma grande actriz.

[Agora que fez 75 anos o desembarque aliado na Normandia, republico a série de seis crónicas normandas escritas em 2007 e publicadas num outro blogue.]

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Perante o espelho

Ingmar Bergman - Gunnar Fischer, Morangos Silvestres, 1957

Uma coisa é vermo-nos ao espelho pela manhã ou quando nos preparamos para ir a algum lado. Outra é sermos confrontados por um espelho que alguém, de súbito, nos coloca à frente. No primeiro caso, já sabemos o que vamos encontrar. No segundo, é um momento de revelação. O uso quotidiano do espelho é um exercícios de fuga à nossa realidade. Ser colocado perante um espelho por outra pessoa, porém, é como ser posto entre a espada e a parede. Um momento de verdade.

domingo, 16 de junho de 2019

Ensaio sobre a luz (63)

Edward Steichen, The Flatiron, 1904

O crepúsculo precipita-se para a escuridão, a noite acaba de vencer o dia. Como uma vela de um devoto perante o santo da sua predilecção, os homens acendem a luz pública como uma prece para que as trevas se vão e o sol regresse triunfante.

sábado, 15 de junho de 2019

Beatitudes 9. Na clareira

Josef Sudek, Promenade from Kolin island, 1923

Davam na clareira demorados passeios, protegidos pela leve penumbra, não pelo amor da arte de passear, mas para serem vistos e, naturalmente, para verem. Há nesse acto de ver e ser visto uma necessidade cuja realização é inegociável. O estar na clareira, nesse sítio aberto à visão, é a porta da felicidade, pensa-se. Um encontro súbito, uma revelação inopinada, e a vida que até aí era destituída de sentido, ganha um horizonte e promete um destino. Por isso, os seres humanos precipitam-se para lá, ávidos e esperançosos. Sem quimeras, a vida seria insuportável.

sexta-feira, 14 de junho de 2019

Crónicas Normandas III - No cemitério americano

JCM, Cemitério americano na Normandia, 2007

Li algures que todas as campas deste cemitério estão voltadas para a América. Como se um dia fosse possível estes homens abandonarem o reino dos mortos, caminhar sobre as águas tenebrosas do Atlântico, chegar à terra prometida, onde abraçariam pais e filhos, as mulheres, as jovens namoradas que por lá deixaram. Nesta simbologia patriótica há um trágico desígnio. Voltados para ocidente, para as terras americanas, não é para a luz que eles olham, mas para o crepúsculo do poente. É nesse continente longínquo que, para quem vive na Europa, está o lugar onde a luz do dia vai morrer. Ironia funesta, o sítio de luz e redenção afinal não é mais do que um espaço de trevas e morte. Os mortos para a morte estão voltados.

São pomares de cruzes brancas, aqui e ali salpicados por estrelas de David, pomares cujo fruto foi colhido e não mais retornará. Percorrem-se as áleas, pisa-se a relva, olham-se os nomes no mármore frio de amargura, tocam-se as flores que por lá foram deixadas. A brisa marítima fustiga as faces. Há gente, muita gente, por todo o cemitério, estamos no lugar dos vencedores, mas aqueles que estão debaixo da terra, esses há muito que perderam, por mais que digamos a heroicidade dos seus gestos, a dádiva da vida para nos livrar do horror, eles perderam, transviaram-se do caminho da vida, encontraram a fria glória e o aconchego na terra húmida de um país estrangeiro. Penélope não os acolherá.

Há famílias que procuram, ainda hoje, a campa dos seus, recolhem-se perante a voraz pedra da morte, rezam uma oração, deixam flores, enquanto o vento continua a soprar gélido e cortante. Às vezes, chuvisca; outras, porém, o Sol rompe e ilumina por instantes as gotas de água que crescem nas folhas verdes da relva. Ainda há gente que chora, mas há muitos que apenas excursionam por ali, gente inoportuna, gente a coleccionar locais, paisagens, igrejas, cemitérios, recordações turísticas de quem perdeu a alma ou a vendeu num saldo de fim de estação. Aqueles mortos não são os seus, mesmo se a liberdade que ora usufruem foi comprada com a vida dos que dormem sob o peso da pedra.

Aqui e ali surgem velhos soldados fardados, trazem no peito o peso das condecorações tidas e, na memória, o horror da metralha incandescente, o sorriso de não saberem como não são eles a quem se visita, o esgar perplexo de terem escapado daqueles campos e de retornarem, como Ulisses, à pátria e aos níveos braços de Penélope, que no tear teceu os dias, os longos dias, que haveriam de trazer o bem amado daquela Tróia ignota. Agora, antes que a luz da vida se apague, vêm visitar o campo sagrado da morte; é um campo de glória para os que morreram e uma bênção para os vivos, vivos que caminham entre as sombras dos que, no fundo da terra, chamam por eles. (07/10/2007)

[Agora que fez 75 anos o desembarque aliado na Normandia, republico a série de seis crónicas normandas escritas em 2007 e publicadas num outro blogue.]

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Villa Cardillio 27. Confissão

Diana caçadora com arco e flecha


27. Confissão

Se luz e ruína se erguem
e em campo raso demoram,
se uma flecha de sombra
meus dias, Avita, trespassa,
se a porta onde o desejo mora
fosse branca e a noite lívida,
entre tuas mãos molhadas
o destino ou a vida deporia.

1979

terça-feira, 11 de junho de 2019

Curzio Malaparte, O Sol é cego


Ao acabar de ler o romance O Sol é cego fiquei a olhar para a capa da edição portuguesa e para o título, tradução literal do original italiano Il Sole è cieco (1947). Depois pensei que aquele título serviria muito bem para fazer uma introdução a um curso de tropologia, tal a densidade expressiva desviante do sentido literal que ali se encontra. Atribuir a cegueira ao Sol é de imediato, se não uma personificação, um animismo. No entanto, enunciado o Sol é cego interpretada a partir da experiência de leitura do romance mostra-se como uma expressão metafórica, onde a cegueira é o indício da indiferença com que o Sol presenceia a desgraça humana da guerra. Por outro lado, o Sol é uma sinédoque, através da qual o todo da natureza é dita por uma das suas partes. É a natureza que é cega perante as idiossincrasias da humanidade, é ela que fecha os olhos e, assim, permite que os homens se batam e se matem. Esta natureza, todavia, não será mais que uma máscara dessa figura trágica que é o destino Por que razão o autor condensará no título um tão grande arsenal retórico?

Falar da guerra – ainda por cima de uma guerra considerada inútil – talvez só seja possível pelo abandono da literalidade da língua, pelo recurso a uma hipertrofia expressiva que transforma o prosaico em poético e, desse modo, sublinha o patético do enfrentamento entre os homens. A guerra não é a norma da experiência quotidiana da humanidade. Ela é um estado de excepção que exige uma linguagem que vá para além da literalidade prosaica. O título é um indício da linguagem que o leitor vai encontrar. O romance é criado a partir da experiência de Malaparte como correspondente de guerra, na Batalha dos Alpes, em Junho de 1940. O autor não é propriamente um pacifista. Aos 16 anos foge do colégio onde estudava em Itália e vai oferecer-se ao exército francês para combater na primeira guerra mundial. No entanto, o combate que agora acompanha está marcado por dois pecados que ele não perdoa. Em primeiro lugar, o facto de a Itália ter declarado guerra a França, estando esta já enfraquecida pelo ataque alemão. Depois, porque o batalha alpina vai pôr frente a frente italianos e franceses, habitantes dos Alpes, que sempre mantiveram relações de amizade. A declaração de guerra italiana ultrapassa os limites da honradez que, uma antiga tradição guerreira, colocava entre beligerantes.

A irracionalidade da guerra e daquela guerra em particular ganha corpo na desrazão que atinge a personagem central, um capitão italiano que tem por missão estabelecer ligações entre diferentes grupos do exército italiano, percorrendo assim os Alpes, entabulando conversa aqui e ali, descrevendo os homens confrontados com o terror e o temor. Essas descrições são entrecortadas por outras, as que fazem ressaltar a beleza da paisagem que, indiferente, assiste aos combates e à agonia dos homens e dos animais, que a guerra também mobiliza. A perda de razão do capitão está ligada ao destino de um soldado, Calusia, um pobre e inocente camponês alpino, um homem simples que ama as vacas e que se passeia com um chocalho ao pescoço. Calusia está naquele limiar entre o animal e o homem, sendo, na verdade, mais animal que homem. Essa condição torna manifesto o que há de criminoso naquela guerra, onde, como referido acima, a gente simples dos Alpes, que sempre tiveram laços de proximidade, se vai agora matar.

A morte de Calusia atinge em pleno o capitão. A sua loucura é o resultado da responsabilidade que sente perante o destino daquele ser tão próximo de uma inocência primitiva. Esta insânia resgata a humanidade que as máquinas de guerra tendem a destruir. Exércitos são dispositivos onde se cumprem ordens, mas nos quais há uma irresponsabilidade pelo desencadear da guerra e pelo destino dos que nela morrem devido ao acaso dos combates. Ao perder a razão, ao sentir-se culpado daquilo que parece estar fora da sua alçada, o capitão sublinha um princípio de solidariedade que vai muito para além daquilo que formalmente é o seu dever. A natureza é indiferente aos combates, o sol é cego perante a vilania, o destino parece inexorável, mas um homem pode ainda enlouquecer porque se sente responsável pelo destino de outro. Há, na desrazão que acometeu o capitão, um princípio de esperança que poderá resgatar a humanidade afundada na loucura.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

O 10 de Junho


10 de Junho de 1966

Por mais voltas que se dê, o 10 de Junho nunca deixa de parecer um feriado irreal, uma espécie de pesadelo vindo dos tempos do professor Salazar. Marcado, no início, pela exaltação nacionalista do Estado Novo, depois, durante as guerras coloniais, transformado em cerimónia de preito às Forças Armadas e de condecoração de militares, alguns a título póstumo, sempre ostentou uma marca sombria, fúnebre. Por mais garridice que a democracia tenha introduzido no feriado, por mais que lhe tenha trocado a denominação, o 10 de Junho continua a ser um feriado postiço, que serve para o Presidente de serviço dar recados, distribuir condecorações e mostrar desvelo pelas comunidades emigrantes. Camões, claro, não tem culpa nenhuma e nunca teria imaginado que o seu nome iria ser usado para tais desideratos. Amanhã, será outro dia e ninguém mais se lembrará de Camões.

domingo, 9 de junho de 2019

Crónicas Normandas II - No cemitério alemão

JCM, Cemitério alemão na Normandia, 2007

É um cemitério quase vazio, pontuado apenas pela silhueta fugaz de alguns visitantes. Dos que perdem, a memória desvanece-se velozmente. O silêncio da derrota, matizado pela luz da manhã e pela névoa sombria que do mar chega, entranha-se no visitante, abre-lhe o espírito à angústia, dá-lhe uma sensação de compunção inexplicável. Há um estreito caminho de lajes rodeado de campos relvados. Nestes, aos mortos, os caídos em combate, foi dada a última morada. Na sua companhia silenciosa, caminha-se em direcção a um monumento em louvor do soldado desconhecido, um hossana para aqueles que, além da vida, perderam o nome, o segredo da identidade, o fio ténue que os ligava a uma história, a uma tradição, à terra longínqua onde nasceram, para virem morrer, em nome de uma causa pestífera, nos campos da Normandia.

Todo o cemitério está pensado segundo uma racionalidade geométrica, como se, depois da aventura da desrazão nazi, os alemães tivessem sentido a necessidade de voltar aos fundamentos da razão moderna, à natureza matemática que a habitava. É um cálculo vindo das trevas o que ali se encontra, o produto de uma ilusão, a transformação da violência do combate e do pânico da morte – sim, entre todos os que ali estão sepultados, haveria algum que, no mais fundo de si, não sentisse esse pânico? A falência da ordem normal da vida, que todo o combate traz, não acenderia nas suas almas uma angústia inexplicável, mesmo se esquecida na hora de mostrar a coragem? – numa paisagem de recolhimento meditativo, num jardim onde o visitante espera, a todo o instante, descortinar monges a passear lentamente, de espírito recolhido, enquanto aguardam a revelação do deus.

Por vezes, há uma flor deixada na campa que ostenta um nome, um nome que ainda alguém reconhece como sendo de família. Talvez um amigo querido que por ali ficou, um companheiro de escola, um namorado que não chegou nunca ao tempo das núpcias. Mas tudo é tão raso, um mar de campas, muitas delas ocupadas por dois viajantes, que juntos, quem sabe se não se odiariam, entraram para a expedição eterna de onde nunca retornarão. O barqueiro que a todos recolhe não faz acepção de nomes, nem de ódios ou amores. Movido pela lei do capricho que habita no frio coração que é o seu, junta amigos e inimigos, conhecidos e desconhecidos. Aqui e ali, segundo um obscuro desígnio arquitectural, erguem-se conjuntos de cruzes de Malta, cinco cruzes, sublinhando a esperança da ressurreição ou o mero anúncio do retorno silente dos alemães à casa da cristandade, esquecidas as pulsões heróicas da mitologia bárbara que os animava durante a guerra. Nem Odin, nem as valquírias, apenas a humilhante cruz do Cristo.

Quando saio, deparo com dois enormes livros. São, à maneira de um apocalipse judaico, suprema ironia, os livros dos mortos. Neles se inscreve o nome daqueles que ali estão sepultados e ainda lhes restaram os traços caligráficos da identidade. Namenbuch, o livro dos nomes, diz cada um deles. Tremo perante a visão e olho-os de longe. Tenho vontade de os folhear, acariciar as capas, mas a mão pára. Uma voz diz-me: e se lá estiver o teu nome? (28/09/2007)

[Agora que fez 75 anos o desembarque aliado na Normandia, republico a série de seis crónicas normandas escritas em 2007 e publicadas num outro blogue.]

sábado, 8 de junho de 2019

Agustina, a crise na direita, a doença da social-democracia e a teia


AGUSTINA BESSA-LUÍS. O século XX português teve uma mão cheia de excelentes romancistas. A atribuição do Nobel a Saramago reconheceu isso. Se tivesse sido a Agustina, não teria ficado mal entregue. A sua obra é a mais desafiante de todas as obras romanescas portuguesas do século passado. A iluminação da natureza humana, a exploração das suas motivações mais recônditas, a capacidade de ver o real, tornam-na uma leitura obrigatória. Morreu na segunda-feira, ao 96 anos. Fará parte do cânone da literatura portuguesa. É preciso, porém, que os leitores continuem a ler os seus livros.

A CRISE NA DIREITA. O Presidente da República, saudoso do papel de comentador, decidiu perorar sobre uma eventual crise na direita. Rui Rio respondeu dizendo que se há crise, ela é do regime e não da direita. Centeno afiançou-nos que o regime está de saúde. É verdade que o regime tem tido capacidade para encontrar soluções políticas diferenciadas e sobreviver. Claro que o PSD e o CDS parecem viver uma crise, mas isso apenas se deve ao facto de estarem afastados do poder. Os partidos de vocação governativa sempre que estão na oposição parecem moribundos, mas se conseguem chegar ao poder, revigoram-se e tornam-se atletas de alta competição.

A DOENÇA DA SOCIAL-DEMOCRACIA EUROPEIA. Verdadeira crise é aquela que se abateu sobre a social-democracia europeia. Com exclusão dos socialistas portugueses e espanhóis, a tradição política social-democrata europeia está em estado comatoso. O desaparecimento do PS francês e as votações humilhantes dos trabalhistas ingleses e do SPD alemão, nas europeias, dão-nos um quadro clínico de prognóstico muito reservado. É possível que estas velhas instituições políticas, nascidas dos efeitos sociais da Revolução Industrial, comecem a não encontrar lugar no novo universo político gerado pela globalização e a revolução digital.

O PROBLEMA DA TEIA. O novo processo judicial que envolve autarcas socialistas do norte do país é, esse sim, uma péssima notícia para o regime. Independentemente da existência ou não de culpa por parte dos arguidos, este tipo de processos reforça a voz popular que tende a generalizar, de forma injusta, a ideia de que todos os políticos são corruptos. Aquele lugar-comum que os partidos propagam, quando são atingidos por casos de polícia, de que as questões de justiça são tratadas pela justiça, é um expediente inútil para não assumir que casos de justiça que envolvem políticos são também, aos olhos dos cidadãos, casos políticos. Não vale a pena tapar o sol com a peneira.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Villa Cardillio 26. Senhorio

Vila Cardílio, Torres Novas

26. Senhorio

Cardílio governava a terra,
o cortejo de sonâmbulos,
a inclemência de Agosto
sob o firmamento de cal.

A mão erguia um mundo,
uma paisagem de paciência,
o trabalho de tanger os dias
na obstinação da ordem.

1979

quinta-feira, 6 de junho de 2019

Crónicas Normandas I - Crateras e destroços (Point du Hoc Ranger Memorial)

JCM, Viagem na Normandia, 2007

O mar ao fundo, não o de esmeralda da nossa costa, mas um mar de cinza e névoa, a lembrar, por instantes, o betão. O vento frio bate nas faces e há à minha frente um campo imenso de destroços e crateras. Um lugar quase inacessível a quem vem do mar, impossível de tomar, pensavam os alemães. Passados mais de 60 anos, a razão tenta adoçar o espaço, torná-lo visitável, recuperá-lo, em forma de memorial, para o turismo, para o insólito turismo de guerra.

Aproximo-me da falésia e espreito a praia, as águas escuras do mar normando e imagino o desembarque dos homens lá em baixo, 225 Rangers norte-americanos, e penso nos homens cá em cima. Tudo está já demasiado civilizado para se perceber a natureza militar da operação, o fogo dos alemães sobre os americanos, estes a escalar a falésia, aqueles sob o bombardeamento da aviação aliada. A respiração quase se suspende e caminho, vou campo fora. Aquilo não foi um filme. Os homens bateram-se até à morte, até à suspensão da respiração, ao explodir das entranhas. É um campo de crateras, vestígios dos bombardeamentos da aviação, um mapa lunar, como o imaginamos a partir dos nossos sonhos mais nocturnos. Estranhas covas cobertas de erva e, sabe-se lá por quê, atravessadas ao centro por um carreiro, como se os transeuntes seguissem os caminhos de uma geografia sagrada, pontuada por estações onde os crentes descem para se recolher no sítio onde a bomba explodiu. Lugares de hierofania, penso.

Entre crateras, há ruínas das instalações militares alemãs, bunkers destruídos pela força das bombas. Quantos alemães ali teriam morrido? Não digo nazis, custa-me, perante o espectáculo, pensar aqueles soldados como nazis. Quantos dos que aqui morreram seriam mais novos do que os meus filhos? O cimento armado permanece em silêncio. Sim, em silêncio, pois o memorial canta a glória dos Rangers vitoriosos. Inclino-me perante o feito desses homens, mas como poderei esquecer os outros, os que retrospectivamente sei que eram meus inimigos. Tinham corpo e alma como eu, e espírito e desejos e fantasias como eu. Vieram ali para morrer. No meu coração há um eterno reconhecimento aos americanos, mas que homem serei se esquecer os derrotados?

Fogo e aço terão caído por todo o lado. Um corpo dilacerado, um corpo incendiado, que diferença fará a língua que falou. A morte caiu sobre ele e roubou-o à glória dos dias. Olho a praia e o meu coração treme, é uma praia ambígua feita de luz e trevas. A luz normanda que incendiou a imaginação dos impressionistas e as trevas que habitam o coração desesperado dos homens. Lá em baixo há mar e areia e gaivotas. Não vejo homens, apenas as sombras do passado se erguem e estendem-me a mão. Oiço-as surpreso, estás aqui, dizem-me os americanos, porque morremos para que viesses. Olham-me com gratidão, toda a gratidão que lhes devo. (22/09/2007)

[Nos próximos dias, embora de forma intercalada, republicarei a série de seis Crónicas Normandas escritas em 2007, após uma visita aos locais do desembarque das tropas aliadas no chamado Dia D. Estas crónicas já foram publicadas num outro blogue, encerrado há muito.]

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Ensaio sobre a luz (62)

John Payne Jennings, England, c.1870

Ali, naquele lugar onde a luz se aquieta, o silêncio das águas acolhe a brancura das velas. Os barcos deslizam vagarosos e um homem aguarda a evidência que o ilumine e lhe trespasse o peito para que se recolha e se deixe tomar pelo mistério que se abre aos seus olhos.

terça-feira, 4 de junho de 2019

Sobre o êxito do PAN

Julio Gómez Biedma, En otros mundos

Uma das coisas que o êxito político do PAN (Partido das Pessoas, Animais e Natureza) torna manifesta, apesar de não ser tema de reflexão, é o fim da cosmovisão cristã nas sociedades actuais. Desde os séculos XV e XVI que essa cosmovisão está sob cerrado ataque. No entanto, durante muito tempo, esse ataque concentrou-se apenas na secularização dos grandes valores cristãos. Nas diversas doutrinas dos direitos humanos, ainda se sente a influência de uma cultura onde os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus, onde Deus, feito homem, morreu pela salvação da humanidade. Mesmo numa ideologia aparentemente tão antagónica ao cristianismo como o comunismo se ouve o ressoar nítido dos valores cristãos.

Não há nada de mais anticristão do que essa linha de continuidade “pessoas, animais, natureza” presente na própria designação do PAN. Se o cristianismo mostra alguma coisa, essa é que o homem não é um ser natural. A permeabilidade da sociedade a ideologias que não compreendem já uma linha de ruptura entre o homem e as outras espécies significa que ela deixou já de ser – ou está prestes a deixar de ser – culturalmente cristã, mesmo que de forma secularizada. A atracção que o PAN exerce não é uma coisa inócua. Nela revela-se algo de novo. Não se trata de um neopaganismo como, por vezes, se pensa, pois os deuses pagãos são um sinal da descontinuidade entre o homem e os outros animais. Trata-se antes de algo que ainda não compreendemos e muito menos conseguimos avaliar as consequências políticas e civilizacionais.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

Eleições europeias


Os portugueses são um exemplo típico de europeus não praticantes. Não se dizem politicamente anti-europeus, pelo contrário. Também não contestam os milhões de euros que entram no país através dos fundos estruturais, que os ajudam a não terem uma vida miserável, e até aceitaram com bonomia o castigo que, por mau comportamento, a União Europeia lhes impôs através da troika. Mas assim como os católicos não praticantes não vêem necessidade de ir à missa dominical, os portugueses têm mais que fazer do que ir votar nas eleições europeias. A União Europeia poderia ruir eleitoralmente e eles não mexeriam um dedo para pôr a cruz no boletim de voto. Esta é a primeira ilação das eleições europeias.

Do ponto de vista dos resultados nacionais, o dado mais saliente é o da fragmentação do sistema partidário. Até há poucos anos havia em Portugal quatro famílias políticas sólidas, apesar dos altos e baixos. CDS, PSD, PS e PCP. Depois chegou o BE, que consolidou o seu lugar nas opções dos portugueses. As eleições europeias deste ano trouxeram uma novidade, o PAN. Ecologia e redefinição do estatuto dos animais parecem encontrar em Portugal um espaço político em expansão. Se assim for, o sistema partidário institucional passa a seis partidos. Esta fragmentação indica-nos que será cada vez mais difícil a obtenção de maiorias absolutas. Os portugueses já fizeram a experiências diversas vezes, mas talvez não tenham apreciado particularmente o resultado. Outros dados importantes são a rejeição da extrema-direita, bem como a irrelevância das pretensões de Santana Lopes e da Iniciativa Liberal.

Na Europa, as coisas correram melhor do que se supunha e as sondagens anunciavam. Os soberanistas e a extrema-direita cresceram, mas de forma contida. No entanto, há uma novidade interessante no campo europeísta. Este deixou de ser comandado pelos acordos entre as famílias do PPE (centro-direita) e do S&D (centro esquerda). Intrometeram-se os liberais e os verdes, o que representa também uma tendência de fragmentação do mainstream europeísta. Olhando para o panorama político europeu, este tornou-se mais complexo e mais exigente. Há medos e preocupações relativos à identidade política que se manifestam no soberanismo, mas também as preocupações com as alterações climáticas e a liberdade encontram uma forte expressão no novo Parlamento Europeu. Estes resultados globais dão à União Europeia um momento para respirar. Veremos se há força e talento político suficientes para evitar a decadência do projecto europeu.

[A minha crónica em A Barca]

sábado, 1 de junho de 2019

Villa Cardillio 25. Memória

Vila Cardílio, Torres Novas

25. Memória

O vento desliza pelo rosto
e quase se soltam lágrimas
quando do olival chega
o aroma das azeitonas,
a súplica para que mãos
quebradas pelos anos
as colham com mansidão
e da ruína das pedras
tragam o azeite da vida.

1979