JCM, Campa de soldado desconhecido no cemitério americano na Normandia, 2007 |
Here rests in honored glory a comrade in arms known
but to God. São
estas as palavras que ocupam, nas cruzes plantadas no cemitério americano, o lugar
do nome, posto, local de origem e data de morte daqueles que já ninguém reconheceu
aquando da entrega dos restos mortais – nunca o termo terá sido tão apropriado –
à terra que os acolhe para o descanso eterno.
As narrativas sobre o soldado desconhecido sempre me impressionaram,
mas há que reconhecer que todas elas assentam num equívoco: não há soldados desconhecidos.
Enquanto soldados, são conhecidos, possuem identidade, fazem parte de uma comunidade,
melhor, de uma fraternidade militar. É a morte que os torna desconhecidos, mas já
não são mais soldados, o combate não os espera, e a vitória ou a derrota perante
o inimigo deixou de lhes interessar. Expressões como soldado desconhecido ou comrade in arms known but to God são tentativas
desesperadas de os integrar numa ordem que lhes é radicalmente estranha e de lhes
dar uma última aparência de identidade.
Não será a morte apenas e só a perda efectiva da identidade?
Na morte deixa-se de ser o que se é. As referências biográficas são coisas de vivos,
uma forma de mitigar a dor, talvez de apaziguar a consciência. Morrer é desidentificar-se,
abolir os limites impostos pela personagem social balizada pelas referências espácio-temporais
que lhe couberam e pelos dados biográficos, dos quais o bilhete de identidade é
o supremo resumo. Aquele a quem chamam soldado desconhecido, ou comrade in arms known but to God, é o que
assume a morte na sua radical integralidade e deixa a sua identidade de vivo no
desconhecimento dos que não o acompanharam na morte. Estes mortos trilharam a senda
radical para o nada e tornaram-se, em consonância com esse desígnio, em ninguém.
Apagaram os vestígios, limparam as pistas, confundiram os traços do caminho que
foi o deles. Abandonaram sobre o campo de batalha a máscara. «Quem és tu Romeiro?»
– «Ninguém.»
O culto do soldado desconhecido é o sintoma da culpabilidade
sentida pelos vivos, uma tentativa desesperada de manter com aqueles restos, onde
um dia se moveu uma forma humana, um laço, uma ligação que faça deles um resquício
de humanidade. Nada nos garante, porém, que os mortos queiram permanecer humanos
e manter com os vivos algum laço, seja de que natureza for. A honored glory em que descansa o soldado desconhecido
já não lhe diz respeito, é um problema da consciência de terceiros. Ele encontrou
a saída, o lugar onde todos os problemas da vida se dissolvem para não mais voltar.
Dispensa inclusive a memória dos outros. Basta-lhe o descanso e, talvez, o known but to God. Os vivos, caso não fossem
dados a exageros e traumas emocionais, deveriam apenas sussurrar requiem aeternam dona eis,
Domine, et lux perpetua luceat eis.
[Termina a republicação, no ano em que o desembarque
na Normandia fez 75 anos, destas Crónicas Normandas, escritas em 2007, após uma
visita aos campos de batalha e cemitérios militares.]