Ao acabar de ler o romance O Sol é cego fiquei a olhar para a capa da edição portuguesa e para
o título, tradução literal do original italiano Il Sole è cieco (1947). Depois pensei que aquele título serviria
muito bem para fazer uma introdução a um curso de tropologia, tal a densidade
expressiva desviante do sentido literal que ali se encontra. Atribuir a
cegueira ao Sol é de imediato, se não uma personificação, um animismo. No
entanto, enunciado o Sol é cego
interpretada a partir da experiência de leitura do romance mostra-se como uma
expressão metafórica, onde a cegueira é o indício da indiferença com que o Sol
presenceia a desgraça humana da guerra. Por outro lado, o Sol é uma sinédoque,
através da qual o todo da natureza é dita por uma das suas partes. É a natureza
que é cega perante as idiossincrasias da humanidade, é ela que fecha os olhos
e, assim, permite que os homens se batam e se matem. Esta natureza, todavia,
não será mais que uma máscara dessa figura trágica que é o destino Por que
razão o autor condensará no título um tão grande arsenal retórico?
Falar da guerra – ainda por cima de uma guerra considerada
inútil – talvez só seja possível pelo abandono da literalidade da língua, pelo
recurso a uma hipertrofia expressiva que transforma o prosaico em poético e,
desse modo, sublinha o patético do enfrentamento entre os homens. A guerra não
é a norma da experiência quotidiana da humanidade. Ela é um estado de excepção
que exige uma linguagem que vá para além da literalidade prosaica. O título é
um indício da linguagem que o leitor vai encontrar. O romance é criado a partir
da experiência de Malaparte como correspondente de guerra, na Batalha dos
Alpes, em Junho de 1940. O autor não é propriamente um pacifista. Aos 16 anos
foge do colégio onde estudava em Itália e vai oferecer-se ao exército francês
para combater na primeira guerra mundial. No entanto, o combate que agora acompanha
está marcado por dois pecados que ele não perdoa. Em primeiro lugar, o facto de
a Itália ter declarado guerra a França, estando esta já enfraquecida pelo
ataque alemão. Depois, porque o batalha alpina vai pôr frente a frente
italianos e franceses, habitantes dos Alpes, que sempre mantiveram relações de
amizade. A declaração de guerra italiana ultrapassa os limites da honradez que,
uma antiga tradição guerreira, colocava entre beligerantes.
A irracionalidade da guerra e daquela guerra em particular
ganha corpo na desrazão que atinge a personagem central, um capitão italiano
que tem por missão estabelecer ligações entre diferentes grupos do exército italiano,
percorrendo assim os Alpes, entabulando conversa aqui e ali, descrevendo os
homens confrontados com o terror e o temor. Essas descrições são entrecortadas
por outras, as que fazem ressaltar a beleza da paisagem que, indiferente,
assiste aos combates e à agonia dos homens e dos animais, que a guerra também
mobiliza. A perda de razão do capitão está ligada ao destino de um soldado,
Calusia, um pobre e inocente camponês alpino, um homem simples que ama as vacas
e que se passeia com um chocalho ao pescoço. Calusia está naquele limiar entre
o animal e o homem, sendo, na verdade, mais animal que homem. Essa condição
torna manifesto o que há de criminoso naquela guerra, onde, como referido
acima, a gente simples dos Alpes, que sempre tiveram laços de proximidade, se
vai agora matar.
A morte de Calusia atinge em pleno o capitão. A sua loucura
é o resultado da responsabilidade que sente perante o destino daquele ser tão
próximo de uma inocência primitiva. Esta insânia resgata a humanidade que as
máquinas de guerra tendem a destruir. Exércitos são dispositivos onde se
cumprem ordens, mas nos quais há uma irresponsabilidade pelo desencadear da
guerra e pelo destino dos que nela morrem devido ao acaso dos combates. Ao
perder a razão, ao sentir-se culpado daquilo que parece estar fora da sua
alçada, o capitão sublinha um princípio de solidariedade que vai muito para
além daquilo que formalmente é o seu dever. A natureza é indiferente aos
combates, o sol é cego perante a vilania, o destino parece inexorável, mas um
homem pode ainda enlouquecer porque se sente responsável pelo destino de outro.
Há, na desrazão que acometeu o capitão, um princípio de esperança que poderá
resgatar a humanidade afundada na loucura.
Muito interessante.
ResponderEliminarAbraço
Obrigado.
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