JCM, Cemitério americano na Normandia, 2007 |
O que me surpreendeu, ao entrar nos cemitérios militares alemão
e americano, na Normandia, foi o excesso de racionalidade da sua concepção. Não
sabia o que deveria esperar, tinha algumas imagens do cemitério americano
construídas com base no ouvir dizer, mas nada me preparara para o espectáculo
de racionalidade que, em ambos, se espraiou perante o olhar. É possível que
todos os cemitérios, pelos menos os modernos, obedeçam a princípios de ocupação
racional do solo. Mas não é essa racionalidade arquitectónica a que me refiro.
Falo de uma estranha racionalidade geométrica, um zelo decorativo, ao mesmo
tempo simples e aberto, tranquilo e grandioso, do espaço onde repousam os
militares mortos em combate.
Naqueles cemitérios, a morte é mais asséptica do que nos
civis, pensei mal entrei no cemitério alemão. Confirmei a sensação no
americano. Há uma clara encenação de qualquer coisa. Todos aqueles espaços,
belos espaços, constituem o cenário de uma mistificação. Há ali uma razão que
oculta a realidade, que a esconde dos olhos ímpios dos visitantes, que oferece
uma imagem suave e leve da carnificina real que levou para ali os despojos
humanos que lá repousam.
No reverso do cenário, debaixo de cruzes e lápides, velados
pela relva verde tão bem cuidada, estão corpos fragmentados, ossos de onde os
músculos voaram pela força das bombas, restos de gente a quem a morte chegou na
precipitação do combate. Quem está ali não morreu de morte natural, nem a
doença, prolongada ou súbita, assinalou para o trânsito final. A ceifeira
chegou atarefada, cansada de tanta colheita, e apanhou os corpos como pôde. Na
guerra, não há tempo para preparar a morte, para escolher os eleitos, para lhes
dar um último sinal. É obscura a razão que opera nos campos de batalha, uma
razão fincada no acaso, em jogos aleatórios, na desrazão do que acontece. Rios
de sangue, vísceras a céu aberto, crânios estilhaçados, corpos dilacerados,
gritos sem fim, o roncar dos carros de combate, as metralhadoras que crepitam,
a explosão de bombas e granadas. Ali antegoza-se o inferno.
Quando olhamos estes campos relvados, as campas perfiladas
sob um céu de cinza, já não vemos nada do que levou aqueles homens a
escolherem-nos para morada eterna. Repousam tranquilos, como se amanhã pudessem
sair das suas campas e correr por ali fora, conversar com outros mortos,
aspirar o ar marítimo tão próximo. A razão geométrica que comanda estes espaços
é uma mentira piedosa, uma mentira que visa apaziguar não a revolta dos que
morreram, mas a consciência dos que vivem. Que tranquilos são estes espaços,
dizemos, e pegamos nos nossos corpos, ainda inteiros, e seguimos viagem. Ali
nada aconteceu. A razão não passa de uma grande actriz.
[Agora que fez 75 anos o desembarque aliado na Normandia,
republico a série de seis crónicas normandas escritas em 2007 e publicadas num
outro blogue.]
Mais um excelente texto.
ResponderEliminarUm abraço
Muito obrigado.
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