JCM, Viagem na Normandia, 2007
O mar ao fundo, não o de esmeralda da nossa costa, mas um
mar de cinza e névoa, a lembrar, por instantes, o betão. O vento frio bate nas
faces e há à minha frente um campo imenso de destroços e crateras. Um lugar
quase inacessível a quem vem do mar, impossível de tomar, pensavam os alemães.
Passados mais de 60 anos, a razão tenta adoçar o espaço, torná-lo visitável,
recuperá-lo, em forma de memorial, para o turismo, para o insólito turismo de
guerra.
Aproximo-me da falésia e espreito a praia, as águas escuras
do mar normando e imagino o desembarque dos homens lá em baixo, 225 Rangers norte-americanos,
e penso nos homens cá em cima. Tudo está já demasiado civilizado para se
perceber a natureza militar da operação, o fogo dos alemães sobre os
americanos, estes a escalar a falésia, aqueles sob o bombardeamento da aviação
aliada. A respiração quase se suspende e caminho, vou campo fora. Aquilo não
foi um filme. Os homens bateram-se até à morte, até à suspensão da respiração,
ao explodir das entranhas. É um campo de crateras, vestígios dos
bombardeamentos da aviação, um mapa lunar, como o imaginamos a partir dos
nossos sonhos mais nocturnos. Estranhas covas cobertas de erva e, sabe-se lá
por quê, atravessadas ao centro por um carreiro, como se os transeuntes seguissem
os caminhos de uma geografia sagrada, pontuada por estações onde os crentes
descem para se recolher no sítio onde a bomba explodiu. Lugares de hierofania,
penso.
Entre crateras, há ruínas das instalações militares
alemãs, bunkers destruídos
pela força das bombas. Quantos alemães ali teriam morrido? Não digo nazis,
custa-me, perante o espectáculo, pensar aqueles soldados como nazis. Quantos
dos que aqui morreram seriam mais novos do que os meus filhos? O cimento armado
permanece em silêncio. Sim, em silêncio, pois o memorial canta a glória
dos Rangers vitoriosos. Inclino-me perante o feito desses homens, mas
como poderei esquecer os outros, os que retrospectivamente sei que eram meus
inimigos. Tinham corpo e alma como eu, e espírito e desejos e fantasias como
eu. Vieram ali para morrer. No meu coração há um eterno reconhecimento aos
americanos, mas que homem serei se esquecer os derrotados?
Fogo e aço terão caído por todo o lado. Um corpo dilacerado,
um corpo incendiado, que diferença fará a língua que falou. A morte caiu sobre
ele e roubou-o à glória dos dias. Olho a praia e o meu coração treme, é uma
praia ambígua feita de luz e trevas. A luz normanda que incendiou a imaginação
dos impressionistas e as trevas que habitam o coração desesperado dos homens.
Lá em baixo há mar e areia e gaivotas. Não vejo homens, apenas as sombras do
passado se erguem e estendem-me a mão. Oiço-as surpreso, estás aqui, dizem-me
os americanos, porque morremos para que viesses. Olham-me com gratidão, toda a
gratidão que lhes devo. (22/09/2007)
[Nos próximos dias, embora de forma intercalada, republicarei a série de seis Crónicas Normandas escritas em 2007, após uma visita aos locais do desembarque das tropas aliadas no chamado Dia D. Estas crónicas já foram publicadas num outro blogue, encerrado há muito.]
Em boa hora nos traz este texto.
ResponderEliminarAbraço
Hoje faz uma data redonda, 75 anos, e lembrei-me que tinha isto esquecido.
EliminarAbraço