JCM, Cemitério americano na Normandia, 2007
Li algures que todas as campas deste cemitério estão
voltadas para a América. Como se um dia fosse possível estes homens abandonarem
o reino dos mortos, caminhar sobre as águas tenebrosas do Atlântico, chegar à
terra prometida, onde abraçariam pais e filhos, as mulheres, as jovens
namoradas que por lá deixaram. Nesta simbologia patriótica há um trágico
desígnio. Voltados para ocidente, para as terras americanas, não é para a luz
que eles olham, mas para o crepúsculo do poente. É nesse continente longínquo que,
para quem vive na Europa, está o lugar onde a luz do dia vai morrer. Ironia
funesta, o sítio de luz e redenção afinal não é mais do que um espaço de trevas
e morte. Os mortos para a morte estão voltados.
São pomares de cruzes brancas, aqui e ali salpicados por
estrelas de David, pomares cujo fruto foi colhido e não mais retornará.
Percorrem-se as áleas, pisa-se a relva, olham-se os nomes no mármore frio de
amargura, tocam-se as flores que por lá foram deixadas. A brisa marítima
fustiga as faces. Há gente, muita gente, por todo o cemitério, estamos no lugar
dos vencedores, mas aqueles que estão debaixo da terra, esses há muito que
perderam, por mais que digamos a heroicidade dos seus gestos, a dádiva da vida
para nos livrar do horror, eles perderam, transviaram-se do caminho da vida,
encontraram a fria glória e o aconchego na terra húmida de um país estrangeiro.
Penélope não os acolherá.
Há famílias que procuram, ainda hoje, a campa dos seus,
recolhem-se perante a voraz pedra da morte, rezam uma oração, deixam flores,
enquanto o vento continua a soprar gélido e cortante. Às vezes, chuvisca;
outras, porém, o Sol rompe e ilumina por instantes as gotas de água que crescem
nas folhas verdes da relva. Ainda há gente que chora, mas há muitos que apenas
excursionam por ali, gente inoportuna, gente a coleccionar locais, paisagens,
igrejas, cemitérios, recordações turísticas de quem perdeu a alma ou a vendeu
num saldo de fim de estação. Aqueles mortos não são os seus, mesmo se a
liberdade que ora usufruem foi comprada com a vida dos que dormem sob o peso da
pedra.
Aqui e ali surgem velhos soldados fardados, trazem no peito
o peso das condecorações tidas e, na memória, o horror da metralha
incandescente, o sorriso de não saberem como não são eles a quem se visita, o
esgar perplexo de terem escapado daqueles campos e de retornarem, como Ulisses,
à pátria e aos níveos braços de Penélope, que no tear teceu os dias, os longos
dias, que haveriam de trazer o bem amado daquela Tróia ignota. Agora, antes que
a luz da vida se apague, vêm visitar o campo sagrado da morte; é um campo de
glória para os que morreram e uma bênção para os vivos, vivos que caminham
entre as sombras dos que, no fundo da terra, chamam por eles. (07/10/2007)
[Agora que fez 75 anos o desembarque aliado na Normandia,
republico a série de seis crónicas normandas escritas em 2007 e publicadas num
outro blogue.]
O culto dos soldados mortos sempre me fez muita confusão sejam eles conhecidos ou desconhecidos.
ResponderEliminarExcelente crónica.
Um abraço
Obrigado e bom fim-de-semana.
EliminarAbraço