domingo, 9 de junho de 2019

Crónicas Normandas II - No cemitério alemão

JCM, Cemitério alemão na Normandia, 2007

É um cemitério quase vazio, pontuado apenas pela silhueta fugaz de alguns visitantes. Dos que perdem, a memória desvanece-se velozmente. O silêncio da derrota, matizado pela luz da manhã e pela névoa sombria que do mar chega, entranha-se no visitante, abre-lhe o espírito à angústia, dá-lhe uma sensação de compunção inexplicável. Há um estreito caminho de lajes rodeado de campos relvados. Nestes, aos mortos, os caídos em combate, foi dada a última morada. Na sua companhia silenciosa, caminha-se em direcção a um monumento em louvor do soldado desconhecido, um hossana para aqueles que, além da vida, perderam o nome, o segredo da identidade, o fio ténue que os ligava a uma história, a uma tradição, à terra longínqua onde nasceram, para virem morrer, em nome de uma causa pestífera, nos campos da Normandia.

Todo o cemitério está pensado segundo uma racionalidade geométrica, como se, depois da aventura da desrazão nazi, os alemães tivessem sentido a necessidade de voltar aos fundamentos da razão moderna, à natureza matemática que a habitava. É um cálculo vindo das trevas o que ali se encontra, o produto de uma ilusão, a transformação da violência do combate e do pânico da morte – sim, entre todos os que ali estão sepultados, haveria algum que, no mais fundo de si, não sentisse esse pânico? A falência da ordem normal da vida, que todo o combate traz, não acenderia nas suas almas uma angústia inexplicável, mesmo se esquecida na hora de mostrar a coragem? – numa paisagem de recolhimento meditativo, num jardim onde o visitante espera, a todo o instante, descortinar monges a passear lentamente, de espírito recolhido, enquanto aguardam a revelação do deus.

Por vezes, há uma flor deixada na campa que ostenta um nome, um nome que ainda alguém reconhece como sendo de família. Talvez um amigo querido que por ali ficou, um companheiro de escola, um namorado que não chegou nunca ao tempo das núpcias. Mas tudo é tão raso, um mar de campas, muitas delas ocupadas por dois viajantes, que juntos, quem sabe se não se odiariam, entraram para a expedição eterna de onde nunca retornarão. O barqueiro que a todos recolhe não faz acepção de nomes, nem de ódios ou amores. Movido pela lei do capricho que habita no frio coração que é o seu, junta amigos e inimigos, conhecidos e desconhecidos. Aqui e ali, segundo um obscuro desígnio arquitectural, erguem-se conjuntos de cruzes de Malta, cinco cruzes, sublinhando a esperança da ressurreição ou o mero anúncio do retorno silente dos alemães à casa da cristandade, esquecidas as pulsões heróicas da mitologia bárbara que os animava durante a guerra. Nem Odin, nem as valquírias, apenas a humilhante cruz do Cristo.

Quando saio, deparo com dois enormes livros. São, à maneira de um apocalipse judaico, suprema ironia, os livros dos mortos. Neles se inscreve o nome daqueles que ali estão sepultados e ainda lhes restaram os traços caligráficos da identidade. Namenbuch, o livro dos nomes, diz cada um deles. Tremo perante a visão e olho-os de longe. Tenho vontade de os folhear, acariciar as capas, mas a mão pára. Uma voz diz-me: e se lá estiver o teu nome? (28/09/2007)

[Agora que fez 75 anos o desembarque aliado na Normandia, republico a série de seis crónicas normandas escritas em 2007 e publicadas num outro blogue.]

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