sábado, 30 de julho de 2022

Teixeira de Queirós, Os Noivos


O romance Os Noivos, de Teixeira de Queirós, foi publicado, originalmente, em 1879. A segunda edição, a de 1896, foi, segundo o autor, completamente refundida, sendo definitiva. Hoje em dia, exceptuando os iniciados na história da literatura portuguesa, ninguém conhece o autor. No entanto, desenvolveu uma importante obra literária no último quartel do século XIX e nas primeiras duas décadas do século XX. É um nome marcante do realismo naturalista português, tendo sido considerado por Óscar Lopes e António José Saraiva “o melhor realizador, em Portugal, do romance tal como o concebeu Balzac”. Os Noivos apresenta-se como um romance crítico, considerada a melhor forma literária para exprimir “a complicada vida moderna”. A obra é a primeira de um amplo conjunto de romances – oito ao todo – a que o autor deu o nome, de clara inspiração balzaquiana, de Comédia Burguesa. Tanto na edição de 1879 na de 1896, o romance é apresentado em dois volumes.

Há no título escolhido por Teixeira de Queirós uma aparente inconsistência com o próprio romance que acompanha a vida de casados de Arminda e Gustavo, os principais protagonistas desta Comédia Burguesa. Existe, contudo, nesta decisão uma avaliação dessa instituição social que é o casamento. No prólogo da edição de 1896, referindo-se às suas personagens, o autor escreve: Não eram bons, nem eram maus; mas não cumpriram com o seu dever como elementos sociais. Gozaram um fausto reles, e desuniram-se sem ódio. Nunca chegaram a conceber o que fossem virtudes com que se resistisse à adversidade; não tiveram abnegação, nem paciência, nem heroísmo na pobreza… tudo despreocupação e fatuidade. O romance mais do que uma crítica à instituição casamento é uma análise minuciosa dos motivos que conduzem à sua derrocada. O casamento é um dever social e não um mero direito dos indivíduos. Esse dever exige um conjunto de virtudes que provam a maturidade de mulher e homem que se empenham na sua realização. Um casamento exige capacidade de resistir à adversidade – na língua-de-pau do psicologês que invadiu a sociedade actual, dar-se-lhe-ia o nome de resiliência – exige abnegação, paciência e heroísmo, uma qualidade dos espíritos nobres. Tudo isto faltou na vida de casados de Arminda e Gustavo. Na verdade, nunca chegaram a ser, no pleno sentido da palavra, marido e mulher. Apesar de casados, não eram mais do que noivos incapazes de consumar um casamento, não no plano sexual, entenda-se, mas no plano da instituição social.

Há, em Os Noivos, duas linhas fundamentais que ajudam a compreender essa efectiva não consumação matrimonial. Por um lado, a desadequação de ambos à sua situação social e económica. Provenientes de uma pequena/média burguesia do funcionalismo, sem fortuna, eram tentados por uma vida de fausto que a sua realidade não suportava. Teixeira de Queirós faz um retrato desapiedado desses meios, daquilo que move homens e mulheres, tornando patente como, por exemplo, a inveja desencadeia comportamentos miméticos que levam à perda dos protagonistas. De certa maneira, muito antes de a dissolução do casamento se ter tornado uma banalidade, o autor faz um retrato preciso daquilo que está na base de um casamento destruído. Uma segunda linha de compreensão é a da influência de uma visão do mundo romântica. O amor romântico é agora alvo não de uma recepção apoteótica, mas objecto de uma crítica rigorosa. Isso torna-se patente durante a lua-de-mel do casal, passada em Sintra. Não apenas o romantismo do lugar é um sinal, como as sessões de leitura a que os noivos se entregavam e lhes enchiam a alma. Liam, melhor, Gustavo lia para Arminda o romance de Alphonse de Lamartine, Graziela, um dos expoentes do romantismo francês. A modelação dos sentimentos encontrava nesse romance a sua ideia reguladora. O facto de não ter contribuído, pelo contrário, para fortalecer a união dos dois é o sinal de que o autor considerava esse romantismo uma forma ideológica incapaz de produzir nos noivos a atitude virtuosa que lhes permitiria a levar a bom termo o compromisso que o casamento representaria à época.

Influenciado por Honoré de Balzac, Teixeira de Queirós empreende, com Os Noivos, um conjunto de estudos fisiológicos e sociais – A Comédia Burguesa – da classe actualmente dominante. Ele observa-a nas suas diversas manifestações. Desde o duro homem de negócios, passando por militares, por funcionários bem colocados e por pessoas que sendo burguesas pela sua condição de classe, não o são, como Gustavo e Arminda, pela fortuna, herdada ou adquirida. Em torno do drama conjugal, o autor mostra em acção essa gente que está já em fase adiantada de relegar a velha aristocracia – ainda reverenciada – para o lugar onde se coleccionam relíquias históricas. Não deixa de ser sintomático, porém, que o ciclo seja iniciado por um caso claro de fracasso, um fracasso de burgueses em consumarem não apenas o seu casamento, mas a sua própria condição social. Não será inútil, para uma interpretação do romance – e, porventura, de todo o ciclo – a distinção feita por Aristóteles entre tragédia e comédia. A tragédia imita a acção dos homens superiores, dos heróis; a comédia, a dos homens inferiores. Contudo, o filósofo acrescenta relativamente aos homens inferiores imitados na comédia: (imitação) não, todavia, quanto a toda a espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo. Gustavo e Arminda não eram bons nem maus. Não eram heróis e seres nobres. Eram apenas ridículos no modo como se relacionavam com a sua própria realidade.

quinta-feira, 28 de julho de 2022

Nocturnos 84

Thomas Joshua Cooper, Cabo de São Vicente (meia-noite), 1994

Noite e mar fundem-se numa pradaria de escuridão. Quem por eles entra enfrenta o dragão incendiado da loucura, onde os cheiros a mar se transmutam em trevas habitadas por anjos maléficos, também eles temerosos que o sol rasgue o horizonte e exponha à luz a amarga maldade que lhes nasce da solidão a que para sempre foram condenados.

terça-feira, 26 de julho de 2022

A Garrafa Vazia 96

Jesús de Perceval, Hasta que se aniquile, 1965

Garimpo a luz do dia

em busca

de prata ou ouro.

 

Encontro lama negra,

detritos,

pedras aguçadas

 

com que apedrejo

os sonhos

até o sangue escorrer

 

e a memória viva

se entregar

no porão da morte.

 

Julho de 2022

domingo, 24 de julho de 2022

Descrições fenomenológicas 68. Mulheres na praia

Pier Luigi Lavagnino, Estate, 1963

Uma das jovens mulheres, flectindo ligeiramente as longas pernas, inclinou-se sobre os pés. Soltava das fivelas as correias das sandálias, para que os pés, livres daquilo que os oprimia, pudessem enterrar-se ligeiramente na areia escura. A outra olhava o horizonte, na direcção de onde soprava o vento. O cabelo parecia querer fugir-lhe da cabeça e a toalha que segurava com ambas as mãos revolteava como se fosse uma bandeira açoitada pelo chicote da ventania. O sol trespassava a fina camada de nuvens e brilhava com uma luz esbranquiçada, anémica, incapaz de aquecer corpos e almas. Nenhuma delas trazia óculos escuros. O barulho do vento confundia-se com o rumorejo das ondas. Naqueles lugares, as águas do mar nunca são azuis ou verdes, mas cor de cinza, espalhando na paisagem uma melancolia difusa, uma tristeza que contrastava com o riso aberto e alegre daquelas mulheres, ainda tão novas. Tinham ambas a elegância do Norte, o corpo alongado, os seios nem pequenos nem grandes, como se aqueles corpos procurassem um equilíbrio, uma medida que lhes permitisse, em qualquer circunstância, evitar que a graça que deles emanava fosse posta em perigo. Condoído, o vento amainou por instantes, os cabelos delas repousaram sobre as cabeças, sem revoltear, sem insinuar fugir para longe dos corpos. Aproveitaram a condescendência dos elementos e estenderam as tolhas sobre a areia. Sentaram-se de imediato e tiraram as túnicas que as cobriam. Sobre o corpo, tinham um fato-de-banho preto, que lhes realçava a brancura da pele e lhes dava um ar sóbrio. O mar fora tomado por uma estranha placidez. As ondas formavam-se ainda longe da linha de rebentação, deslizavam lentamente e desfaziam-se como se estivessem exaustas, como se a energia lhes tivesse sido roubada. Não havia mais ninguém na praia. Elas deitaram-se nas toalhas. Falaram ainda alguns minutos. Palavras entrecortadas por um riso jovial, até que adormeceram. Um bando de gaivotas pousou não longe delas.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

A persistência da memória (16)

W. Eugene Smith, A Welsh town, 1950
Vinda de um passado remoto, a velha carroça atravessa-se diante de um carro que se dirige para o futuro. Puxada por um cavalo, roda com lentidão, como se ainda fosse possível deter o tempo, evitar que as coisas que povoaram a vida entrem no reino da obsolescência, desapareçam sem deixar vestígio no quotidiano e transponham a porta da triste categoria de objectos presos à reminiscência etnográfica.

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Ludmila Ulitskaya, Sonechka

O pequeno romance Sonechka, da escritora russa Liudmila Ulitskaya, foi publicado originalmente em 1992, na revista Novyi Mir (Novo Mundo). Como todas as boas obras de arte, esta abre-se a uma pluralidade de interpretações, que realçarão este ou aquele aspecto, organizando, a partir daí, uma estratégia hermenêutica para apropriação da obra. Aquela que se propõe aqui sublinha, como ponto fulcral do romance, a relação entre a vida e a literatura. Qual o lugar desta e como se relaciona com aquela? A ligação da protagonista – Sonechka (diminutivo russo de Sónia) – com a literatura – mais especificamente, a literatura russa – é o ponto fulcral deste primeiro romance de Ulitskaya.

Poder-se-á ler a narrativa a partir de uma perspectiva política, como uma denúncia do regime soviético. Poder-se-á sublinhar o questionamento do papel da mulher na sociedade russa. Poder-se-á, ainda, partir do confronto entre o espírito individualista do artista – o marido de Sonechka é um artista, um pintor – e a concepção soviética de arte subjugada ao estado, de arte ao serviço de uma causa que ocupou o poder político e se tornou uma perspectiva totalizante. Contudo, estes pontos – ainda que presentes no romance – são meramente instrumentais e não essenciais.

Liudmila Ulitskaya preocupa-se em contar uma história, melhor, em contar várias histórias que se entrelaçam, criando o enredo que conduz do ponto de partida, a situação em que se encontrava, no princípio, Sonechka e aquele aonde chegou, quando o romance acaba. A autora conta a história de Sonechka, mas também do seu marido, Robert Viktorovich, Tânia, a filha de ambos, e de Jasia, uma jovem polaca que acaba por se tornar amante de Robert e, ao mesmo tempo, protegida como uma filha por Sónia, que sentiu a vinda de Jasia como uma dádiva generosa do destino para a velhice do seu amado Robert.

Apesar de ser claramente uma autora pós-soviética, não foge, na concepção do romance, a uma estruturação dialéctica, talvez uma reminiscência de uma concepção do mundo proveniente da educação a que a juventude da URSS foi, durante décadas, submetida. Esta dialéctica da narrativa tem como primeiro momento a intensa relação da protagonista principal com a literatura russa. O segundo momento, o da negação do primeiro, acontece quando Sónia conhece, numa biblioteca onde trabalhava, Robert e casa com ele, constituindo uma família. O terceiro momento da dialéctica dá-se com a morte do marido, o que constitui a negação dessa negação e um retorno do primeiro momento, mas de modo completamente transformado.

A jovem Sonechka – movida por uma relação difícil com o corpo e a realidade envolvente – entrega-se a uma paixão devoradora pelos livros e pela literatura russa. As personagens dos grandes autores russos são, para ela, tão ou mais reais do que as pessoas com quem contacta. Para ela (Sonechka), o sofrimento de Natasha Rostova (personagem de Guerra e Paz, de Tolstói) à cabeceira do moribundo conde Andrei (idem) era tão autêntico como a dor lancinante da sua irmã mais velha, que perdera a filha de quatro anos por um descuido estúpido. Esta afirmação de si como grande leitora é feita por uma espécie de alienação, um estranhamento ao curso da realidade, uma imersão num universo simbólico e onírico, uma forma ligeira de loucura (reminiscência, por certo, desse leitor compulsivo de novelas de cavalaria conhecido como D. Quixote). É a partir desse lastro que consegue encontrar uma justificação e um sentido para a sua existência. O seu self constituiu-se pela absorção desse mundo de papel. Ali, ganhou elasticidade e capacidade de perceber a vida muito para além daquilo que poderia aspirar caso a paixão pela leitura não existisse.

O segundo momento dialéctico é o da vida real, com um inesperado amor, um casamento, uma filha e tudo o que isso supõe na Rússia da segunda guerra mundial e dos tempos que se lhe seguem. Este é um momento de negação daquela ligeira loucura que a levava a confundir a vida real e a ficcional. Esta negação, porém, não é uma aniquilação do self anteriormente construído no contacto com os livros, mas a oportunidade de o pôr à prova, de lhe dar carne no dia-a-dia. Sem esse self construído no mundo da ficção nunca teria casado com Robert Viktorovich, um artista plástico bem mais velho, que tivera grande êxito em Paris, mas que regressado à Rússia, acabou num campo de concentração. Esta negação dialéctica é uma reapropriação de si e um mergulho na torrente da existência, que a prepara para as peripécias que essa vida de casada lhe trará.

Quando o marido morre, dá-se a segunda negação, a negação dessa vida quotidiana e uma reafirmação do interesse pela literatura. Ela recusa sair da sua casa para se juntar, na Suíça, à sua filha Tânia, ou ir para Paris, para junto de Jasia, que para ela era como uma segunda filha. À noite, colocando uns óculos suíços no nariz em forma de pêra, ela mergulha nas profundezas doces, nas alamedas escuras, nas águas primaveris… Deste modo, Ulitskaya afirma a literatura como forma de dar um sentido final à existência. Não nega a vida, mas nega que esta tenha sentido fora da arte, que é esta, em última análise, que integra o heteróclito das vivências numa unidade da qual se pode contar uma história e, desse modo, retirá-la do sepulcro do esquecimento.

segunda-feira, 18 de julho de 2022

A Garrafa Vazia 95

Jackson Pollock, Grayed Rainbow, 1953

A massa de sílica

turva-te

a linha do horizonte.


O puro quartzo,

montanha

diante dos olhos.


A tudo te curvas

e no cristal

descobres-te cego.


Logo, pegas na esponja

e bebes

o vinagre até ao fim.


Julho de 2022

sábado, 16 de julho de 2022

Os rankings e escolas públicas e privadas


Já com o calor de Julho saíram os rankings dos exames nacionais do ano anterior. Sempre que são publicados, geram uma árdua batalha entre os defensores da sua não publicação, argumentando que não se pode comparar o incomparável, e os que defendem que se deve tornar manifesto quais as escolas que tem mérito e aquelas que não o têm e, numa perspectiva liberal, argumentar sobre a superioridade do ensino privado sobre o ensino público.

A divulgação dos rankings é importante, pois é um indicador seguro da desigualdade social, dá-nos uma visão objectiva sobre quem tem mais oportunidades e quem tem menos, deixa-nos perceber quão longe a igualdade de oportunidades, a que todos os portugueses deveriam ter acesso. Existem múltiplos factores para explicar estas disparidades. Factores sociais, económicos, culturais. Factores ligados à organização e cultura das escolas.

O que raramente se tem em conta, como um factor diferenciador dos resultados entre o ensino público e o ensino privado, é o papel do Estado – através do Ministério da Educação – na promoção destas desigualdades. Se olharmos para algumas entrevistas a responsáveis dos colégios privados, perceberemos de imediato que estão concentrados numa única coisa: obter os melhores resultados possíveis nos exames nacionais. É para isso que estão organizados e é para isso que preparam desde muito cedo os seus alunos, eliminando tudo o que se torna obstáculo a esse objectivo.

À escola pública – e de forma mais acentuada desde que António Costa se tornou primeiro-ministro – são-lhe atribuídas tantas funções que a preparação dos seus alunos para exames é apenas mais uma e – no que parece ser o discurso ministerial – não das mais importantes. Com as actuais políticas educativas, acentuou-se o afastamento da escola pública em relação ao objectivo principal que anima os colégios privados: preparar os alunos para obterem grandes resultados nos exames nacionais e, desse modo, acederem aos cursos que lhes interessam.

Aquilo que seria importante estudar era o impacto das ideologias governativas no afastamento dos resultados entre escolas públicas e privadas. O Ministério da Educação acha que a escolarização da população está muito para além dos resultados obtidos em exame. Contudo, estes resultados são cruciais para o destino dos alunos. O que fará um pai que tenha disponibilidade económica e viva num lugar onde existam colégios privados que enxameiam os primeiros lugares dos rankings? Vai colocar o filho na escola pública? Todos sabem o que faria a maior parte dos pais.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Cadernos do esquecimento 47 Adicções

Chris Killip, Glue sniffers, Whitehaven, Cumbria, 1980

O peso da vida é de tal modo desmesurado que só através do recurso contumaz à adicção se torna possível viver. Gostamos, com a tendência com que somos educados para moralizar facilmente, de colocar a adicção no território das coisas malfazejas e que, para o bem de si e dos outros, convém evitar, custe o que custar. Esta técnica moral, todavia, esquece uma coisa. A existência de múltiplas adicções. Estas vão muito para lá das que são biológica e socialmente negativas. Há outras que, pelo contrário, são consideradas positivas, pois têm um efeito benéfico para o indivíduo ou para a sociedade. Condena-se o adicto ao jogo, mas não o que está viciado no trabalho. Condena-se o adicto a drogas ou ao álcool, mas não os que o estão ao desporto ou à comida saudável. A estas adicções, e são inumeráveis, dá-se o nome de hábitos, aos se atribui o qualificativo de bom. Oculta-se, todavia, a linha de continuidade que existe entre maus e bons hábitos, entre vícios e virtudes, entre más e boas adicções. Visam sempre um estado alterado de consciência que permita ao indivíduo suportar a existência. Para um animal dotado de pensamento, a vida só parece suportável se poder evitar enfrentá-la na sua crueza e nudez.

terça-feira, 12 de julho de 2022

Augusto Abelaira, A Cidade das Flores


Concluído em 1957 e publicado em 1959, o romance A Cidade das Flores é a primeira obra de Augusto Abelaira. A trama – melhor, as diversas tramas que compõem o discurso romanesco – desenrola-se em Florença, num período em que o regime fascista de Benito Mussolini estava consolidado e a Itália preparava-se para entrar na segunda guerra mundial. As personagens – jovens – pertencem à classe média de Florença e vivem o drama de uma consciência dilacerada perante a situação que o país vive, os seus valores morais e a sua impotência para agir. O autor terá deslocado o espaço romanesco para um lugar fora do território nacional para iludir a censura, naquilo que seria, também, um questionamento da situação portuguesa, do regime autoritário de Oliveira Salazar, e de uma geração de portugueses oposicionistas ao regime, provenientes da classe média, mas com um pathos muito diferente daquele que habita os protagonistas do romance neo-realista em voga desde a década de quarenta.

O que ocupa o espírito daqueles jovens não será tanto os problemas da igualdade e da justiça social, mas o da liberdade que lhes era negada. Esta questão orienta o romance para o problema das subjectividades, da sua construção e do confronto dessas subjectividades com o peso da realidade. São subjectividades questionadoras mais, muito mais, do que subjectividades actuantes ou militantes. Questionam-se sobre o sentido da vida, sobre o amor, sobre a acção política, sobre a moralidade e o dever fazer. Não têm certezas, mas dúvidas. Esta natureza das personagens conduz a uma situação paradoxal que está no centro do romance. Todos os protagonistas provêem de famílias burguesas, com conhecimento da arte, da literatura, da música erudita. Ora, o que marca a burguesia europeia – o terceiro estado – é o seu dinamismo, a iniciativa, o facto de terem elegido a acção para se afirmarem contra a aristocracia e, posteriormente, ocuparem o poder no mundo. Para compreender o romance não basta sublinhar a inércia dos resistentes, é necessário considerar o paradoxo central que atravessa os jovens burgueses. A tensão entre a acção (a não acção) e as preocupações morais e filosóficas que essas personagens encarnam. Essa tensão traz para o centro do romance o velho conflito entre a acção e a contemplação, entre a praxis e a theoria.

A solução que o romance de Abelaira oferece parece ser aquela que não agrada a ninguém, nem aos homens práticos, nem aos contemplativos. Naquele grupo de jovens, apenas um se engaja no combate político, vive na clandestinidade. O problema é que a sua acção é marcada por um terrível equívoco. Ao perpetrar um atentado contra um comboio, confunde aquele que transportava pessoas com o que transportava combustível para fornecer o exército nazi. Este facto não é uma mera peripécia na narrativa, mas um juízo cruel sobre o poder da acção na transformação do mundo, aproximando de forma perigosa um acto político e um acto meramente criminal. Por outro lado, os jovens contemplativos conduzem as suas existências a becos sem saída, como se tivessem absorvido um pathos ético que vem do spleen de Baudelaire, até à náusea de Sartre, passando pelo absurdo de Camus. Na economia romanesca, nenhum destes partidos – o da acção e o da contemplação – sai vitorioso.

Mais do que um libelo antifascista – ou anti-salazarista – o romance de Abelaira explora a situação extrema posta por um regime autoritário para testar a humanidade, os seus valores morais, a força das suas convicções e o poder das suas ilusões. Não toda a humanidade, mas aquela que se filia na tradição da subjectividade, da consciência de si, na afirmação do indivíduo. No fundo, é um questionamento daquilo a que se pode chamar a tradição liberal. Como é que os indivíduos que lhe pertencem podem lidar com situações de extrema opressão, como podem conjugar os seus valores morais e a realidade que lhes é adversa? Giovanni Fazio, a personagem principal do romance, tem uma solução. Escrever um romance utópico, precisamente A Cidade das Flores. Esta ideia nunca concretizada, apenas esboçada, permite, todavia, compreender uma outra questão, a denominada reterritorialização presente no romance.

Lisboa dos anos cinquenta, com o seu ambiente oposicionista, terá sido reterritorializada em Florença, dos finais dos anos trinta, um ardil para iludir os censores portugueses. Contudo a reterritorialização romanesca é mais do que um estratagema. É um momento de transição para a desterritorialização. Colocar a acção romanesca em Florença – numa Florença já inexistente – é um passo que ganha o seu sentido pleno no desígnio de Fazio de escrever uma utopia. Qualquer utopia é uma desterritorialização, um aniquilamento do espaço real em proveito de um não-espaço, de um não-território. Considera-se, muitas vezes, as utopias como uma abertura dos possíveis mais próprios da humanidade, mas não se atenta que elas são confissões da dificuldade – senão da impossibilidade – de lidar com esse território de que fazemos parte e dos caminhos que nele estão inscritos. O romance de Abelaira, marcado por um apuramento técnico e estético longe dos cânones do neo-realismo, coloca-nos nessa encruzilhada em que a grande tentação é não escolher qualquer caminho possível, mas desejar um território e um caminho que não existem e não poderão existir. Na verdade, é entregar-se a uma visão pessimista da acção e procurar um refúgio que sirva de colírio à alma dilacerada pelo conflito entre o real e o possível.

domingo, 10 de julho de 2022

A Garrafa Vazia 94

António Areal, sem título, 1962

Entrelaço palavras

nos fios da dor,

retrós de chumbo

no pescoço,

estilete de aço

abre o espírito

ao vómito,

à vil devastação.

 

Julho de 2022

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Meditações melancólicas (88) A origem da melancolia

Alois Wismeyer, Wolkenspiegelung, 1908

Por vezes, o jogo dos elementos - a água, o céu, as nuvens, as árvores, a terra e a luz - abre no peito uma inesperada melancolia. O espectador olha a paisagem e sente-a como um promessa, mas não sabe de quê, embora sinta, com uma certeza de que ignora a origem, que nunca será cumprida, que jamais chegará a hora em que o prometido se revelará na sua verdade. Pensa, então que toda a melancolia nasce desse sentimento em que se cruza uma esperança nebulosa e o saber da impossibilidade da sua realização. 

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Italo Svevo, A Consciência de Zeno

Uma autobiografia publicada por vingança. É deste modo que o Doutor S., o psicanalista de Zeno Cosini, numa espécie de prefácio, apresenta o livro A Consciência de Zeno, de Italo Svevo, publicado em Bolonha, no ano de 1923. A intervenção prefacial do Doutor S., contudo, faz parte da trama romanesca. Ao paciente, Zeno (filho de um comerciante rico, que se sente inepto e doente, a quem o pai não confia, mesmo depois de morto, os seus negócios), é solicitado, como fazendo parte do método de tratamento, que escreva uma espécie de autobiografia. O ele que faz e entrega ao cuidado do psicanalista. Contudo, quando, segundo este, se aproximava da cura, Zeno abandona o tratamento. Como um amante traído, S. publica o texto do seu paciente. A obra explora a consciência do protagonista e é um dos textos fundamentais da literatura do século XX, com a sua exploração da consciência, com uma utilização rigorosíssima da linguagem comum, sem, no entanto, se deixar envolver pelo senso comum. É um dos grandes romances formalmente inovadores no tratamento da subjectividade, no uso da corrente de consciência, ao lado dos de James Joyce ou de Knut Hamsun.

O texto de Zeno estrutura-se em torno de seis pontos: 1. A relação com o tabaco; 2. A relação conflitual com o pai; 3. A história do seu casamento (melhor, do seu noivado); 4. A relação com a mulher e com a amante; 5. A relação comercial com um seu cunhado que, por acaso, casou com a mulher que Zeno amava e irmã daquela com quem, na realidade, casou; 6. Psicanálise e cura. Há na cultura ocidental uma longa tradição confessional, cujo ponto decisivo é Agostinho de Hipona e as suas Confissões, que emergiram na sequência da conversão ao cristianismo. Apesar de não haver uma relação directa entre o texto de Santo Agostinho e o de Svevo, pois o primeiro estabelece-se num processo narrativo que se pretende não ficcional, o que não se passa com o segundo, e ainda, no caso de Agostinho, haver uma reflexão filosófica em torno de problemas religiosos e metafísicos, o que não acontece na autobiografia de Zeno, há uma estreita relação entre o problema da conversão e o da cura. Toda a conversão é sentida como uma cura, a cura do modo como o sujeito se relacionava com o mundo, assim como toda a cura é uma conversão – pela persuasão – a um novo modo de ser, a um modo de ser saudável.

O texto apresenta-se como uma rememoração, um trabalho sobre a memória de acontecimentos passados, já longínquos. Quando, em 1915, Zeno empreende o tratamento psicanalítico, é já um homem velho, segundo os padrões da época. Muitos dos acontecimentos narrados passam-se muitos anos antes. O trabalho sobre a memória tem sempre um risco, o da infidelidade. Isso é sublinhado pelo Doutor S. que ao acabar o seu pequeno texto inicial afirma: Se (Zeno) adivinhasse as surpresas que lhe reservava o comentário do monte de verdades e mentiras que acumulou nas páginas seguintes! Esta intervenção da mentira – isto é, da infidelidade da memória aos factos – coloca o romance de Svevo como uma metaficção, a ficção de uma ficção. O leitor, logo à entrada da obra, é avisado que uma parte do que vai ler é falso. Contudo, não sabe o que é verdadeiro e o que é falso. Esta é uma estratégia ousada para reforçar, no próprio leitor, a suspensão da descrença, a qual, como ensina Coleridge, é fundamental para seguir a trama narrativa de uma obra ficcional. A infidelidade memorial alimenta a crença do leitor na verdade da ficção que tem diante de si.

O romance do Svevo não deve ser desligado da aventura da modernidade ocidental. Do ponto de vista literário, podemos vê-la emergir com o Dom Quixote, de Cervantes. Do ponto de vista filosófico, todavia, o momento fundamental é o pensamento cartesiano. Pode estabelecer-se entre esses dois momentos proveitosas relações. Quixote sofria de um problema epistémico grave, confundia o que desejava ver com a realidade, mergulhado num universo de fantasias e ilusões. Descartes, por seu turno, pretendeu encontrar um caminho em que se eliminassem as ilusões, em que a verdade fosse possível. Ora, é este projecto cartesiano que, de um outro modo, a psicanálise recupera. A terapia psicanalítica pretende conduzir o paciente à descoberta das situações traumáticas (a descoberta da verdade que o inconsciente oculta) que dão origem a comportamentos anómalos. Ora, o facto de Zeno recusar terminar o tratamento e considerar-se curado, ao contrário da pretensão do psicanalista, é uma crítica frontal à psicanálise e à crença que ela encerra sobre a possibilidade de se chegar à verdade. Nos seus apontamentos finais, Zeno escreve: Julga ele (o Doutor S.) que vai receber a confissão dum doente, dum fraco. Pois engana-se! Receberá a descrição duma saúde sólida, perfeita – tanto quanto o permite a minha idade. Não só não quero entregar-me à psicanálise como já não tenho necessidade dela. E, se falo da minha saúde, não é só por sentir que sou privilegiado entre tantos mártires. Não é por comparação que digo que estou saudável, é de modo absoluto. Isto significa, também, uma crítica à tradição originada em Descartes e uma afirmação da filiação do romance na tradição romanesca nascida com Cervantes. Zeno estava saudável, porque se persuadiu que estava saudável: Há muito sabia eu que a saúde, para mim, não podia ser outra coisa além da convicção de estar perfeito e que é tolice digna dum sonhador hipnagógico querer «tratar-me» e não persuadir-me. A realidade não é outra coisa senão aquilo que dela fazem os dispositivos retóricos mobilizados para essa tarefa que é a persuasão. Dito de um outro modo, a verdade é aquilo de que me convenço ser a verdade.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Tempestade perfeita

Os resultados eleitorais das legislativas em França vieram acrescentar mais um sinal de que a Europa está à beira de uma tempestade perfeita. Por um lado, temos a guerra na Ucrânia. Na sequência desta, uma crise nos cereais e, com mais impacto na Europa, a crise dos combustíveis que afecta a economia e, quando chegar o Inverno, atingirá o bem-estar de muitos europeus. A isto somam-se os problemas introduzidos pelas alterações climáticas e as vagas de calor sentidas um pouco por todo o lado. Também a inflação não é visita que se queira receber, mas ela não apenas bateu à porta como já irrompeu casa dentro. Agora, um cenário de crise política sem solução à vista num dos dois principais países da União Europeia.

Parece que as circunstâncias estão todas a combinar-se para a emergência de um desastre de grande magnitude.  Como se chegou aqui? Não haverá explicações fáceis e prontas a servir, mas como acontece nas tragédias gregas a cegueira tem um papel determinante na sua eclosão. Os europeus – refiro-me às elites políticas que têm sustentado o projecto europeu – quiseram fechar os olhos para os preocupantes sinais que vinham de Leste. Permitia-lhes dormir descansados, enquanto desfrutavam do convívio com os oligarcas russos e o dinheiro destes, e não pensar em coisas aborrecidas como a questão da defesa, em que os gastos principais eram transferidos para os americanos, como se estes tivessem a obrigação de proteger os europeus. 

Por outro lado, também não quiseram abrir os olhos para a degradação das democracias, para a destruição das classes médias e o abandono das classes populares. Não quiseram ver que um excesso de liberalismo mata a democracia liberal. O resultado da cegueira conduziu ao Brexit e, agora, em França, ao ensanduichamento do governo entre duas fortes correntes radicais e populistas, uma de esquerda e outra de direita, que ameaçam levar França ao caos e com ela a União Europeia.

O terrível de tudo isto é que pode já ter passado o momento em que os acontecimentos poderiam ser geridos pelos homens e conduzidos a bom porto. Há situações, como reconheceu o velho pensador reaccionário Joseph de Maistre acerca da Revolução Francesa, em que os homens deixam de conduzir os acontecimentos e são estes que os empurram para onde eles nunca imaginaram ir. É possível que as elites políticas europeias continuem cegas e presas ao sonambulismo, mas quem olhar com atenção para os sinais não pode deixar de temer que o cavalo da História tenha já tomado o freio nos dentes.

sábado, 2 de julho de 2022

Um problema irresolúvel


1. A solidão de Macron. A coligação de apoio a Macron ganhou as eleições legislativas francesas, mas o governo ficou sem maioria no parlamento. O pior é que este reflecte a polarização política existente em França, onde as forças radicais e populistas, à esquerda e à direita, têm uma enorme influência, e o centro-direita não parece inclinado a estender a mão à maioria. A França está prestes a ficar numa situação de impasse político, onde os extremos vão tentando destruir o regime. Parece ser um caso exemplar onde uma abordagem liberal – a de Macron – está a matar a democracia liberal, a dar argumentos aos devaneios populistas de Mélanchon e de Le Pen para levarem a democracia francesa à derrocada e com ela a União Europeia.

2. As desculpas de Guterres. Numa reunião com jovens, uma espécie de prelúdio para a Conferência dos Oceanos, o secretário-geral das Nações Unidas pediu desculpa à geração que vai “herdar um planeta com problemas”. Este pedido de desculpas é uma confissão de impotência. Não de Guterres, mas da espécie humana em lidar com os problemas que ela própria cria. Isto contraria a avaliação de Marx que afirmou que a humanidade apenas coloca problemas que pode resolver. Não é que não existam condições materiais para resolver o problema ambiental. Existem, mas não parecem existir condições subjectivas para o fazer. A resolução desses problemas exigiria que a parte mais rica do planeta sacrificasse o seu modo de vida, e a parte mais pobre sacrificasse os seus sonhos de se tornar rica. Exigiria que os homens não fossem homens.

3. Uma viagem literária aos séculos XVIII e XIX. Tenho estado a ler os romances Lágrimas e Tesouros (1863), de Rebelo da Silva, e Salústio Nogueira (1883), de Teixeira de Queirós. O primeiro, um romance histórico, decorre no tempo de D. Maria I, o segundo situa-se no tempo de D. Luís. Quase cem anos separam os ambientes políticos do primeiro, marcado ainda pelas perseguições de Pombal, e do segundo, o da monarquia liberal. Contudo, há tal continuidade nas atitudes dos homens face ao poder que estas parecem ser coisa imutável na humanidade. É esta imutabilidade da relação dos homens com o poder que dá pouca esperança para se encontrar uma solução para o imbróglio em que a Europa está metida devido ao impasse francês ou para a catástrofe que espera a humanidade motivada pelo problema ambiental. A perspicácia de Marx choca com um dado fundamental. O principal problema com que o Homem se confronta não é posto por ele, mas é ele próprio. E este problema parece ser para a humanidade irresolúvel. Não consegue deixar de ser o que é.