O pequeno romance Sonechka, da escritora russa Liudmila Ulitskaya, foi publicado originalmente em 1992, na revista Novyi Mir (Novo Mundo). Como todas as boas obras de arte, esta abre-se a uma pluralidade de interpretações, que realçarão este ou aquele aspecto, organizando, a partir daí, uma estratégia hermenêutica para apropriação da obra. Aquela que se propõe aqui sublinha, como ponto fulcral do romance, a relação entre a vida e a literatura. Qual o lugar desta e como se relaciona com aquela? A ligação da protagonista – Sonechka (diminutivo russo de Sónia) – com a literatura – mais especificamente, a literatura russa – é o ponto fulcral deste primeiro romance de Ulitskaya.
Poder-se-á ler a narrativa a partir de uma perspectiva política, como uma denúncia do regime soviético. Poder-se-á sublinhar o questionamento do papel da mulher na sociedade russa. Poder-se-á, ainda, partir do confronto entre o espírito individualista do artista – o marido de Sonechka é um artista, um pintor – e a concepção soviética de arte subjugada ao estado, de arte ao serviço de uma causa que ocupou o poder político e se tornou uma perspectiva totalizante. Contudo, estes pontos – ainda que presentes no romance – são meramente instrumentais e não essenciais.
Liudmila Ulitskaya preocupa-se em contar uma história, melhor, em contar várias histórias que se entrelaçam, criando o enredo que conduz do ponto de partida, a situação em que se encontrava, no princípio, Sonechka e aquele aonde chegou, quando o romance acaba. A autora conta a história de Sonechka, mas também do seu marido, Robert Viktorovich, Tânia, a filha de ambos, e de Jasia, uma jovem polaca que acaba por se tornar amante de Robert e, ao mesmo tempo, protegida como uma filha por Sónia, que sentiu a vinda de Jasia como uma dádiva generosa do destino para a velhice do seu amado Robert.
Apesar de ser claramente uma autora pós-soviética, não foge, na concepção do romance, a uma estruturação dialéctica, talvez uma reminiscência de uma concepção do mundo proveniente da educação a que a juventude da URSS foi, durante décadas, submetida. Esta dialéctica da narrativa tem como primeiro momento a intensa relação da protagonista principal com a literatura russa. O segundo momento, o da negação do primeiro, acontece quando Sónia conhece, numa biblioteca onde trabalhava, Robert e casa com ele, constituindo uma família. O terceiro momento da dialéctica dá-se com a morte do marido, o que constitui a negação dessa negação e um retorno do primeiro momento, mas de modo completamente transformado.
A jovem Sonechka – movida por uma relação difícil com o corpo e a realidade envolvente – entrega-se a uma paixão devoradora pelos livros e pela literatura russa. As personagens dos grandes autores russos são, para ela, tão ou mais reais do que as pessoas com quem contacta. Para ela (Sonechka), o sofrimento de Natasha Rostova (personagem de Guerra e Paz, de Tolstói) à cabeceira do moribundo conde Andrei (idem) era tão autêntico como a dor lancinante da sua irmã mais velha, que perdera a filha de quatro anos por um descuido estúpido. Esta afirmação de si como grande leitora é feita por uma espécie de alienação, um estranhamento ao curso da realidade, uma imersão num universo simbólico e onírico, uma forma ligeira de loucura (reminiscência, por certo, desse leitor compulsivo de novelas de cavalaria conhecido como D. Quixote). É a partir desse lastro que consegue encontrar uma justificação e um sentido para a sua existência. O seu self constituiu-se pela absorção desse mundo de papel. Ali, ganhou elasticidade e capacidade de perceber a vida muito para além daquilo que poderia aspirar caso a paixão pela leitura não existisse.
O segundo momento dialéctico é o da vida real, com um inesperado amor, um casamento, uma filha e tudo o que isso supõe na Rússia da segunda guerra mundial e dos tempos que se lhe seguem. Este é um momento de negação daquela ligeira loucura que a levava a confundir a vida real e a ficcional. Esta negação, porém, não é uma aniquilação do self anteriormente construído no contacto com os livros, mas a oportunidade de o pôr à prova, de lhe dar carne no dia-a-dia. Sem esse self construído no mundo da ficção nunca teria casado com Robert Viktorovich, um artista plástico bem mais velho, que tivera grande êxito em Paris, mas que regressado à Rússia, acabou num campo de concentração. Esta negação dialéctica é uma reapropriação de si e um mergulho na torrente da existência, que a prepara para as peripécias que essa vida de casada lhe trará.
Quando o marido morre, dá-se a segunda negação, a negação dessa vida quotidiana e uma reafirmação do interesse pela literatura. Ela recusa sair da sua casa para se juntar, na Suíça, à sua filha Tânia, ou ir para Paris, para junto de Jasia, que para ela era como uma segunda filha. À noite, colocando uns óculos suíços no nariz em forma de pêra, ela mergulha nas profundezas doces, nas alamedas escuras, nas águas primaveris… Deste modo, Ulitskaya afirma a literatura como forma de dar um sentido final à existência. Não nega a vida, mas nega que esta tenha sentido fora da arte, que é esta, em última análise, que integra o heteróclito das vivências numa unidade da qual se pode contar uma história e, desse modo, retirá-la do sepulcro do esquecimento.
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