O romance Viver com os
Outros, de Isabel da Nóbrega, recebeu, no ano da sua publicação, 1964, o
Prémio Camilo Castelo Branco e é, por certo, a obra mais conhecida da escritora
nascida em 1925. O tempo e o espaço da narrativa concentram-se num
apartamento da classe média-alta lisboeta, num serão, que prolongou um
jantar de amigos. Um retrato de uma burguesia citadina que se ia libertando da
cosmovisão tradicionalista, que dava forma à sociedade portuguesa da altura, e
onde se juntavam admiradores do Estado Novo com aqueles que, de alguma forma,
se distanciavam, quer politicamente, quer pelo gosto ou interesses culturais. É significativo o facto da autora apresentar Fernando Lopes Graça – um dos mais
importantes compositores portugueses do século XX e militante comunista –
como pertencente à esfera de relações do casal anfitrião, Ana e Henrique.
O romance usa, em toda a sua extensão e de forma intercalada, apenas duas técnicas. O diálogo e a exposição da corrente de consciência das
várias personagens que se encontram naquele apartamento. O narrador ouviu as conversas e leu os pensamentos, e partilha-os com o leitor, sem se imiscuir com qualquer tipo de consideração sobre as personagens e as suas ideias. O uso destas técnicas não pretende explorar uma possível dissonância
entre o que é dito para os outros escutarem e o que é pensado no foro da
própria consciência. Elas tornam antes patente uma espécie de paralelismo entre o dito e
o pensado, paralelismo esse que, aqui e ali, se vai quebrando, fazendo com o que é dito
seja prosseguido no diálogo interior ou que certas intervenções sejam o
resultado daquilo que, no momento, perpassa na consciência de quem fala. O efeito pretendido é o de usar uma
reunião social entre amigos, onde a conversação está sempre policiada pela
etiqueta e as boas maneiras, como uma situação de revelação da verdade dos presentes.
A corrente de consciência, a de cada um dos protagonistas,
torna-se o lugar onde parte da verdade se revela. Raramente essa verdade conflitua com a verdade do discurso, com as palavras trocadas
no diálogo social. Não se trata de utilizar a revelação feita pela descrição dos pensamentos para mostrar uma duplicidade, um
falseamento ou uma distância acentuada entre a máscara social e um eu interior
e autêntico. Trata-se antes de criar um efeito de complementaridade entre o eu íntimo e a persona social. Trata-se também de mostrar a essência da arte de conviver, marcada pelo jogo da revelação, através da fala, e da ocultação daquilo que só pode habitar a intimidade do pensamento.
Tudo isto nos coloca perante o título da obra. Viver com os
outros é um jogo marcado pelo equilíbrio entre o que se diz e o que se pensa,
entre o que pode e o que não pode ser
partilhado e tornado público. A Tia Leopoldina, por exemplo, pôde rememorar uma
aventura amorosa de uma noite ocorrida há muitas anos atrás, no início da sua
vida de casada, enquanto o marido, Vladimiro, se encontrava ausente. Ou pôde
deixar correr na sua consciência o que pensava
de duas das suas antigas amigas, mães de dois dos homens ali presentes.
Não pôde, porém, tornar público cada um destes pensamentos. Seria de uma
inconveniência imperdoável. E como a Tia Leopoldina, cada um dos presentes é
percorrido por pensamentos que a arte de viver com outros impede que se transformem em palavras. Os
desejos, as apreciações, as pequenas aversões, tudo isso se mantém secreto,
embora como um elemento que, juntamente com o que é dito, revela a verdade de cada um.
Este vulgar jantar de amigos – estão presentes dez convivas –
é uma pequena encenação doméstica de um salão burguês do tempo das Luzes. Ana,
a anfitriã, comporta-se como uma animadora de um desses salões, onde, em França,
germinou a morte do Ancien Régime, morte
em nome de uma razão cuja carácter central é a sua natureza pública e a
oposição ao segredo, ao não manifestado. O que o pequeno salão da Lisboa do
início dos anos sessenta do século XX nos mostra, através do jogo narrativo que
alterna a palavra pública e o pensamento
secreto e privado, é que a arte de viver com os outros só é possível numa
situação de compromisso entre as luzes e as sombras, entre o público e o
privado, entre o manifestado e o secreto. A verdade não está nem no segredo, como pretendia a tradição pré-iluminista, nem
no que vem à luz, como exigiam as Luzes. A verdade de cada personagem manifesta-se nas palavras e nos
pensamentos, tanto seus como dos outros. Uma verdade que, através da fala,
se manifestasse plenamente à luz do dia, teria uma natureza luciferina. As boas maneiras, a arte do convívio social, são um exercício de precaução que, não fazendo renascer o paraíso, evitam que a vida se torne num inferno.
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