domingo, 23 de dezembro de 2018

Isabel da Nóbrega, Viver com os Outros



O romance Viver com os Outros, de Isabel da Nóbrega, recebeu, no ano da sua publicação, 1964, o Prémio Camilo Castelo Branco e é, por certo, a obra mais conhecida da escritora nascida em 1925. O tempo e o espaço da narrativa concentram-se num apartamento da classe média-alta lisboeta, num serão, que prolongou um jantar de amigos. Um retrato de uma burguesia citadina que se ia libertando da cosmovisão tradicionalista, que dava forma à sociedade portuguesa da altura, e onde se juntavam admiradores do Estado Novo com aqueles que, de alguma forma, se distanciavam, quer politicamente, quer pelo gosto ou interesses culturais. É significativo o facto da autora apresentar Fernando Lopes Graça – um dos mais importantes compositores portugueses do século XX e militante comunista – como pertencente à esfera de relações do casal anfitrião, Ana e Henrique.

O romance usa, em toda a sua extensão e de forma intercalada, apenas duas técnicas. O diálogo e a exposição da corrente de consciência das várias personagens que se encontram naquele apartamento. O narrador ouviu as conversas e leu os pensamentos, e partilha-os com o leitor, sem se imiscuir com qualquer tipo de consideração sobre as personagens e as suas ideias. O uso destas técnicas não pretende explorar uma possível dissonância entre o que é dito para os outros escutarem e o que é pensado no foro da própria consciência. Elas tornam antes patente uma espécie de paralelismo entre o dito e o pensado, paralelismo esse que, aqui e ali, se vai quebrando, fazendo com o que é dito seja prosseguido no diálogo interior ou que certas intervenções sejam o resultado daquilo que, no momento, perpassa na consciência de quem fala. O efeito pretendido é o de usar uma reunião social entre amigos, onde a conversação está sempre policiada pela etiqueta e as boas maneiras, como uma situação de revelação da verdade dos presentes.

A corrente de consciência, a de cada um dos protagonistas, torna-se o lugar onde parte da verdade se revela. Raramente essa verdade conflitua com a verdade do discurso, com as palavras trocadas no diálogo social. Não se trata de utilizar a revelação feita pela descrição dos pensamentos para mostrar uma duplicidade, um falseamento ou uma distância acentuada entre a máscara social e um eu interior e autêntico. Trata-se antes de criar um efeito de complementaridade entre o eu íntimo e a persona social. Trata-se também de mostrar a essência da arte de conviver, marcada pelo jogo da revelação, através da fala, e da ocultação daquilo que só pode habitar a intimidade do pensamento.

Tudo isto nos coloca perante o título da obra. Viver com os outros é um jogo marcado pelo equilíbrio entre o que se diz e o que se pensa, entre o que pode e o que não  pode ser partilhado e tornado público. A Tia Leopoldina, por exemplo, pôde rememorar uma aventura amorosa de uma noite ocorrida há muitas anos atrás, no início da sua vida de casada, enquanto o marido, Vladimiro, se encontrava ausente. Ou pôde deixar correr na sua consciência o que pensava  de duas das suas antigas amigas, mães de dois dos homens ali presentes. Não pôde, porém, tornar público cada um destes pensamentos. Seria de uma inconveniência imperdoável. E como a Tia Leopoldina, cada um dos presentes é percorrido por pensamentos que a arte de viver com outros  impede que se transformem em palavras. Os desejos, as apreciações, as pequenas aversões, tudo isso se mantém secreto, embora como um elemento que, juntamente com o que é dito, revela a verdade de cada um.

Este vulgar jantar de amigos – estão presentes dez convivas – é uma pequena encenação doméstica de um salão burguês do tempo das Luzes. Ana, a anfitriã, comporta-se como uma animadora de um desses salões, onde, em França, germinou a morte do Ancien Régime, morte em nome de uma razão cuja carácter central é a sua natureza pública e a oposição ao segredo, ao não manifestado. O que o pequeno salão da Lisboa do início dos anos sessenta do século XX nos mostra, através do jogo narrativo que alterna a palavra pública  e o pensamento secreto e privado, é que a arte de viver com os outros só é possível numa situação de compromisso entre as luzes e as sombras, entre o público e o privado, entre o manifestado e o secreto. A verdade não está nem no segredo, como pretendia a tradição pré-iluminista, nem no que vem à luz, como exigiam as Luzes. A verdade de cada personagem manifesta-se nas palavras e nos pensamentos, tanto seus como dos outros. Uma verdade que, através da fala, se manifestasse plenamente à luz do dia, teria uma natureza luciferina. As boas maneiras, a arte do convívio social, são um exercício de precaução que, não fazendo renascer o paraíso, evitam que a vida se torne num inferno.

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