sábado, 15 de dezembro de 2018

Knut Hamsun, Victoria


Publicado em 1898, Victoria é um pequeno romance de Knut Hamsun com cerca de 120 páginas, na tradução portuguesa, de Carlos Aboim de Brito, para a Cavalo de Ferro. Aparentemente, é mais uma história de amor contrariado. Na verdade, é uma bela e encantada meditação sobre as obscuras forças que superintendem a vida dos homens, e que a uns concedem a felicidade e a outros, a desventura. Isto sem que a conduta moral e até a posição social de  cada um se relacionem com o quinhão de fortuna ou de infortúnio que lhe cabe. Por isso a obra ultrapassa os limites do romance moderno, sem negar essa pertença, para estabelecer laços sólidos com as velhas e tradicionais narrativas míticas. Talvez não se possa falar de amor sem esse recurso ao pensamento mítico e à dimensão encantatória deste.

Não se pense, contudo, que vamos encontrar seres transcendentes a manipular os destinos dos dois apaixonados. O que vemos são as forças sociais, as decisões individuais ou a própria dinâmica biológica a ganharem uma dimensão tal que parecem ser agentes de poderes que ultrapassam a limitada capacidade dos homens. A história gira à volta dos destinos de Victoria, a filha do castelão, uma importante personagem local, e Johannes, o filho do moleiro. Desde crianças que se sentem atraídos um pelo outro. O obstáculo principal não vem tanto da diferença social entre ambos, mas do facto do pai de Victoria se encontrar arruinado. A sua única salvação é o casamento da filha com alguém que possua muito dinheiro e que possa assim contribuir para equilibrar a situação financeira do castelão. E a filha, sentindo ser esse o seu dever moral, condescende com a pretensão paterna.

Os obstáculos centrais à consumação do amor entre os apaixonados – a diferença social e a existência real de um pretendente que satisfaz os anseios do pai de Victoria – acabam por desaparecer. O pretendente morre num acidente de caça, na altura em que é anunciado o noivado. A situação social também se tinha invertido, de algum modo. Victoria é filha de um castelão arruinado e Johannes, que chegou à universidade,  tornou-se num poeta famoso, ainda jovem. Um homem importante que, como tal, chega a ser recebido no Castelo, precisamente no dia em que é anunciado o noivado de Victoria. A inversão da situação social e o desaparecimento dos obstáculos – a morte do pretendente e a posterior morte do próprio castelão – não foram suficientes para que desaparecesse aquilo que desde o início separara os dois jovens.

O que o romance revela, assim, é que as questões sociais, por importantes que sejam, não são em última análise as mais decisivas. Os obstáculos sociais, esses ainda podem ser ultrapassados, ou porque são enfrentados e derrotados ou porque, como no romance, o destino os faz desaparecer. E é neste fazer desaparecer, quase por milagre, dos obstáculos sociais de um amor e, mesmo assim, este não encontrar um caminho para a sua consumação, que está a arte de Knut Hamsun. A eliminação das barreiras não significa a supressão da tensão dramática e a transformação do romance numa espécie de conto de fadas. Outras forças mais inquietantes e mais obscuras cerceiam o desejo e limitam a finita vontade humana.

A realidade é mais ampla do que a mera dimensão social, e mais sombria. O autor sublinha-o sem nunca o afirmar e sublinha-o de várias maneiras. A mais surpreendente é através do contraste. A essa realidade humana umbrosa, contrapõe descrições luminosas da paisagem norueguesa. Não são as paisagens que são em si luminosas, são as descrições que sublinham a beleza dos campos onde se desenrola a infância  das personagens e que são o enquadramento do seu amor, se não mesmo um dos seus detonadores. Esta luz, porém, sublinha a sombra que se projecta nos destinos de Victoria e de Johannes, gerando um efeito de encantamento mítico, que o leitor sente na leitura de uma história aparentemente banal e de leitura fácil, mas que é tecida por um complexo e difícil jogo narrativo, que o autor tem o condão de esconder para que tudo pareça transparente ao leitor. Uma pequena obra prima.

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