Os grandes nomes da literatura portuguesa formam uma espécie
de cortina opaca que acaba por ocultar a realidade da vida literária nacional. Atrás
dessa cortina, porém, esconde-se um vasto território colonizado por habitantes
que, apesar de não merecerem a honra do cânone, possuem mérito e cuja leitura
é, pelo menos, instrutiva do país em que vivemos e dos valores que guiam a
sociedade portuguesa. Isto vem a propósito do romance Paixão de Maria do Céu, de Carlos Malheiro Dias, publicado em 1902.
Trata-se de um romance histórico, cuja acção se situa no tempo das invasões
francesas. Por melhores e mais bem informadas que sejam estas narrativas sobre
o tempo e os modos de vida da época que pretendem retratar, elas acabam por
falar mais do tempo, dos valores e dos temores da sociedade em que vive o autor
do que da sociedade onde a narrativa é situada. No fundo, utiliza-se o passado
para falar do presente e para se dirigir ao futuro.
A trama romanesca gira à volta de duas figuras modelo, a de
D. António Sepúlveda, senhor do morgadio do Corgo, e a da sua filha Maria do
Céu. Ele é o arquétipo do fidalgo intrépido e patriota dos tempos antigos. Ela,
o modelo trágico da inocência corrompida pela paixão amorosa.
O morgado provinciano é apresentado em contraponto com a pusilanimidade
da corte e de parte da nobreza que se submete aos invasores. As virtudes
heróicas de Sepúlveda, contudo, são mostradas como intemporais, como se ele
encarnasse valores universais de uma casta que o tempo jamais dissolveria. É
preciso não esquecer a situação política nacional no início do século XX.
Depois do ultimato britânico, a monarquia encontra-se em dissolução e a nobreza
nacional, por certo, está bem longe dos modelos viris encarnados pela
personagem de Malheiro Dias. Perante a calamidade das invasões napoleónicas, só
a decisão de homens como António Sepúlveda permitiu reverter a situação. E este
é o modelo de homem que poderá fazer frente à dissolução dos velhos valores que
o liberalismo monárquico já representava. O aniquilamento da monarquia
(acontecerá em 1910) e a queda da aristocracia na irrelevância só poderão ser
evitados por homens cujas virtudes emulem as do senhor do Corgo.
O destino de Maria do Céu, com as suas peripécias amorosas,
parece ser mais uma história banal de sedução e embuste, onde a inocência,
impotente pelo limitado conhecimento que possui da vida, se perde na trama de
um conquistador – um jovem coronel francês – que junta às vitórias militares as
conquistas amorosas. É um facto que a rendição de Maria do Céu ao militar
invasor não deixa de ser uma metáfora da sedução que os ideias da Revolução Francesa
exerciam sobre parte do país. No entanto, ela é ainda uma outra coisa. Ela é um aviso e um reforço
do modelo de mulher que deve aliar a virtude moral e a perspicácia do
espírito, para se precaver das tentações do coração. Caso contrário, à paixão amorosa sucederá a paixão entendida como sofrimento e dor. Não deixa de ser
interessante que seja este o modelo que, através da
visão trágica do destino de Maria do Céu e do uso ambíguo da temática da paixão, seja proposto como ideal feminino para o século XX, o século onde as mulheres adquiriram, entre outros direitos, o direito às suas paixões.
Do ponto de vista literário, tanto o senhor do Corgo como a
sua filha valem mais pela natureza arquetípica – ele positiva e ela
negativa – do que pela complexidade psicológica. Malheiro Dias é excelente a
criar ambientes, descrever situações, pintar com palavras os quadros onde se
desenrola a acção romanesca. Somos conduzidos de um solar de província e da
vida provinciana dos inícios do século XIX até ao turbilhão da capital do reino,
na mesma época, com a sua vida multifacetada, ocupada pelo exército invasor. A
riqueza das descrições está ancorada num léxico riquíssimo – certamente, léxico
em uso no período onde a acção romanesca se situa –, algum dele incompreensível
nos dias de hoje, mesmo para leitores cultos. As personagens, porém, são
previsíveis e fiáveis. Por imprevisíveis que sejam os acontecimentos, o destino
de cada uma das principais figuras é antecipável, pois elas são, na verdade, modelos
e não pessoas concretas, com as suas hesitações, incertezas, aprendizagens,
metamorfoses. Estamos perante um romance de intervenção. Não que ele transporte
uma visão política estrita. Traz, porém, uma cosmovisão e, enquanto obra
literária, é uma forma de se bater por essa visão do mundo, que – o autor não o
poderia saber – haveria de morrer definitivamente na grande guerra de
1914-1918.
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